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A música conecta

Radiosfera | Episódio 1: Rádio Flight

Por Redação Alataj em Radiosfera 16.08.2019

Por Chico Cornejo

O final dos oitenta e o começo dos noventa marcaram um período de inflexão profunda em muitas dimensões comportamentais, causando profundas mudanças que se manifestaram pelo mundo todo através de movimentos e fenômenos culturais.

É em seu interior que vemos uma polarização político-econômica extrema chegando a seu fim, acarretando inúmeros fenômenos que atingem a população jovem da época como uma tempestade de proporções cataclísmicas, varrendo preconceitos, dizimando expectativas, abrindo novas paisagens sonoras e reorientando os horizontes de toda uma geração carente de perspectivas e sedenta por novas experiências.

As raves explodiam em popularidade na Europa tendo o Reino Unido como ponto focal, o Greenpeace alcançava uma de suas mais expressivas conquistas, muros caíam, certezas econômicas se recrudesciam enquanto as políticas dissipavam. Em meio a essa atmosfera tão volátil e diversa, a música eletrônica dançante encontrava um terreno fértil pelo mundo todo com sua estrutura musical extremamente adaptável que se sustentava na abstração instrumental, principalmente rítmica, e num ethos de hedonismo e liberdade individual.

Haçienda, Manchester, 1990. Foto: Patrick Harrison

Em terras brasileiras ela encontrou aficionados de diversas extrações socioeconômicas que tinham em comum a afinidade por esses espaços de convívio noturno que conseguiam congregar gente de todo tipo e, claro, os sons que os animavam. Muitos clubs abriram e fecharam as portas, especialmente nas grandes metrópoles, tecendo as narrativas que mais tarde formariam a lenda da noite dessas cidades e estabelecendo a fundação de suas respectivas cenas.

Claro que tudo isto se tornou parte do tecido histórico que hoje em dia é rememorado e comemorado por muitos dos que fizeram parte dessas ocorrências, mas há uma parcela dessa história que é normalmente relegada a um certo esquecimento, não figurando sequer nas margens ou nas notas de rodapé e que operou um papel tão essencial quanto esses lugares e eventos: a rádio.

Especialmente aquelas estações mais populares que povoavam a faixa de frequência modulada, como a Nova FM, a Jovem Pan e a Transamérica, elas compunham a única alternativa de usufruto musical para jovens (como este autor) que, ainda impedidos de frequentar aqueles locais pela idade, dependiam de um meio para poder apreciar a riqueza dessa musicalidade que tanto os atraía.

Estúdio da Nova Onda FM nos anos 90: Kléber Cesana, João Batista Lopes, Néris José, Edivaldo Alves, Norito, Sabrini Narciso e Flavio Vidoto.

E é nesse mundo que muito de nossa cultura floresceu, em grande parte devido aos esforços de DJs, programadores e aficionados que aproveitavam todo o potencial dessa imensa plataforma para mostrar aos ouvintes algo de novo ou diferente de acordo com sua visão. E, por boa parte do século passado, ela se estabeleceu como o terreno mais fértil para a promoção de ritmos, ideias e tudo mais que pudesse ser transmitido por ondas radiofônicas.

Esta série procura relembrar alguns projetos memoráveis que animaram essa esfera de disseminação cultural tão vital, feita de valentes iniciativas que tinham como seu foco principal um quinhão musical por vezes mais específico, mas que também se mostrou fundamental para a formação das vários talentos e cenas locais que ajudaram a compor o rico mosaico da música eletrônica nacional em seus estágios iniciais.

Hoje em dia isso pode até parecer jurássico, já que a internet modificou profundamente esse universo de comunicação e ampliou de forma vertiginosa o alcance de qualquer proposta, mas aqueles esforços seminais influenciaram e inspiraram toda uma geração criada sob seu ímpeto transformador.

Guaraci no estúdio da Rádio Cultura FM 95,5 – Disco Night na Web

E é justamente a relevância desses influencers avant la lettre que procuramos recuperar nesses breves relatos feitos de memórias daqueles que estavam à frente desses projetos. Vale lembrar que aqui buscaremos não tanto ressuscitar algo já vivido, experimentado ou tentado, mas suscitar algo que pode ser aprendido ou mesmo repensado.

Começamos então com o Radio Flight, cria de Julinho Mazzei, um profissional tão respeitado quanto estimado por seus colegas e que fez de sua jovial presença no microfone um veículo apaixonado de divulgação de muito do melhor que poderíamos ter acesso nesse época de tantas transições.

Ele utilizou todo o privilégio de estar no epicentro do furacão musical nova-iorquino em seu auge para disseminar a riqueza sendo gerada em seu interior para um público ainda em formação no seu país natal, uma missão também levada adiante por lendas da radiodifusão brasileira como o carioca Big Boy. Contudo, à época de sua primeira empreitada nesse quinhão com o programa Big Apple, o foco era especialmente a música dançante de cepa afro-americana que então encontrava seu zênite em termos de popularidade global.

Julinho Mazzei

Julinho também fazia parte de um time brilhante de brasileiros residentes na cidade que contava seu parceiro Tuta Aquino, que se tornaria um dos sócios de Mark Kamins — o cara que simplesmente deu o primeiro break fonográfico para uma menina talentosa de Detroit chamada Madonna — e muitos outros entre seus luminares, aproveitando de todas as benesses discográficas geradas na sociabilidade de um grupo tão trunfado em termos de inserção e conhecimento nesse universo cultural tão exuberante de NY naquele momento.

Aqui segue uma breve entrevista com seu criador falando mais especificamente sobre o projeto, que é apenas um dos capítulos mais relevantes de uma história de devoção integral não só a todo esse material bruto e tão valioso que nos move e comove, mas especialmente ao seu acesso amplo por todos os aficionados, prováveis e possíveis, dentro e fora das pistas e que pode ser vista aqui em toda a sua glória.

Chico Cornejo: Quando e onde nasceu o Radio Flight e qual foi a ideia original que estimulou o projeto?

Julinho Mazzei: Tudo começou ali em 1988 com o que tinha em mãos… 1989 na verdade! Eu já estava na Jovem Pan, trabalhando. Cuidava do horário da tarde que cobria o período das 15 às 19h. Naquela época a Transamérica estava para lá e para cá, rolava aquela briga acirrada pelo primeiro lugar e o Tutinha querendo novas ideias.

Certo dia me encontrei com ele e, como sempre fui fanático por aviões e verdadeiramente aficionado pela aeronáutica, apresentei a ideia de um programa de rádio que fosse como uma volta ao mundo passando pelas capitais e trazendo os sons locais de cada cidade. Ele, a princípio, não curtiu muito a ideia, mas eu fiz um piloto e ele acabou pondo na programação. Ele foi ao ar inicialmente aos sábados, das onze à meia-noite, e foi o único horário que bateu o primeiro lugar na Pan naquela disputa com sua maior rival.

Ela se manteve desde o início até o final? Aliás, quando foi que as atividades se encerraram oficialmente?

Eu permaneci com o programa até o final de 1990 e ele foi mantido na grade até então. Daí, no início de 1991, me mudei para os EUA e aqui me encontro até hoje. Posso dizer que tudo permaneceu bastante estável por toda sua existência.

Há momentos especiais na trajetória do programa dos quais se recorde com algum carinho especial?

Claro que existem inúmeros, mesmo nessa breve existência do Radio Flight e, por mim, eu colocaria cada episódio como sendo especial do seu próprio modo. É inegável que aqueles em que nos posicionamos na liderança de audiência, naquele horário da capital paulista, guardam uma carga emocional bastante forte na memória. Essa foi uma conquista importante e não nos esquecemos de algo assim com facilidade.

Mas, para mim, todos os momentos em que estivemos no ar foram extraordinários, porque esse contato com o público é algo muito importante, o encontro com os fãs. Quando estamos ao vivo falando com a galera, tentando compartilhar emoções e coisas positivas, trabalhando a imaginação, é sempre especial.

Também tem todo o lance de disseminar um certo bom gosto musical que eu acho imprescindível. Eu acredito que, se você oferecer algo de qualidade com dedicação, as pessoas vão parar para te ouvir.

Você acha que ele teria condições de ser feito de uma maneira semelhante hoje em dia?

Olha, eu acho que sim, evidentemente. Ou até melhor, por quê não? Hoje em dia você tem um maior acesso a informação, mais amplo e mais rápido, então acho que é bem possível fazer algo semelhante nos dias de hoje.

Algumas pessoas me perguntam se eu não tenho vontade fazer isso novamente, mas acho que o momento passou. A ideia foi criada e realizada pelo tempo que rolou, o projeto conquistou o que merecia e tudo tem um tempo de vida, não? Tudo tem um começo, meio e fim e agora é hora de partirmos para novas ideias e novos projetos.

Pessoalmente, me lembro distintivamente de um fim de tarde no qual eu ouvi “Always There” do Incognito remix do David Morales pela primeira vez e aquele momento ficou gravado na minha memória até hoje como algo mágico, indelével. Há faixas que você se orgulha de ter lançado para o Brasil naquela plataforma?

Veja bem, naqueles tempos demorava para um disco chegar ao Brasil já que as distâncias eram imensas. Era em torno de uns seis meses em média quando eu fazia o Big Apple, lá pelos idos de 1978.

E dado o acesso que tínhamos aos artistas naqueles tempos, toda essa turma tão talentosa de NY como o David Morales que sempre mandava suas produções, como aqueles remixes da Donna Summer que ele lançou e tocamos em primeira mão. Acho até que essa música que você menciona surgiu num período final do programa ou até depois, se não me engano…

Modéstia à parte, colocamos muita coisa boa no radar, são incontáveis músicas inesquecíveis e eu sinceramente tenho muita dificuldade em destacar apenas uma. É impossível citar uma favorita ou muito menos a “melhor” ou predileta…

Se pudesse dar algum conselho ou palavra encorajadora para as gerações atuais e futuras que querem se envolver com isso, daí do topo de sua experiência pioneira, qual seria?

Acho que o principal é saber que rádio não se faz com a boca, se faz com o coração. E acredito que seja algo que não se basicamente não se aprende, você meio que nasce com um dom e o desenvolve com o passar do tempo. Não tem como se aprender isso numa escola, por mais que você tente.

Então aqui o essencial é falar do coração, com sinceridade, ter sua voz. Ela é essencial para que se destaque do restante, já que com a abundância atual de canais e plataformas, você precisa se sobressair na multidão.

Também é muito importante desenvolver um discurso cativante, falar coisas interessantes, especialmente o que não estão falando em outras rádios, isto você precisa ter sempre em mente quando começar a trabalhar nesse meio.

A música conecta.

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