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A música conecta

Radiosfera | Episódio 4 – BPM em Porto Alegre: quando humor polêmico, fervor dançante e amor musical se encontram

Em tempos muitos distintos dos nossos, nos quais a internet ainda não era forrada por uma vasta flora de webradios, uma colorida fauna de podcasts e uma imensidão de mixes online, esses canais de divulgação que procuramos resgatar nesta série eram fundamentais para a disseminação de qualquer produto musical. O papel dos programas de rádio, afinal, era tornar musicalidades obscuras acessíveis para um público mais amplo, sendo essencial para que artistas estabelecessem e mantivessem contato com ele.

Porto Alegre sempre foi um bastião cultural brasileiro e, ainda que sua reputação seja vilipendiada por alguns que insistem em focar no seu duvidoso legado para o Rock brasileiro, também foi um ponto constante de inserção novas musicalidades quando adentravam o país. A capital gaúcha recebeu um dos primeiros shows dos Racionais MCs fora de São Paulo; abrigou uma das etapas da primeira “rave” nacional com atrações estrangeiras; ofereceu a um ainda crescente drum and bass brasileiro sua primeira quarta-feira fixa no calendário… feitos não faltam para provar que a mais cosmopolita das capitais sulistas sempre fez jus a sua vocação.

Quando o BPM foi adicionado à grade da Radio Ipanema, subsidiária local da Rede Bandeirantes, a cena eletrônica noturna porto alegrense já era bastante vívida e consolidada. Isto se deu de modo quase concomitante ao que rolava em São Paulo através de lugares, nomes e projetos nativos que animavam aquilo que, segundo nossa fonte, poderia ser chamado de um “underground funcional”. Aqui, nossa testemunha auditiva e ocular é ninguém menos que Nando Barth, um dos capitães do programa e figura presente nos diversos focos de transformações que mantiveram o cenário musical da cidade em constante desenvolvimento.

Nando Barth

O DJ e produtor começou sua carreira naquele momento tão prenhe de possibilidades que marcou a virada dos oitenta para os noventa e, como muitos outros que se lançaram na descoberta dos arcanos do fazer musical, teve em uma figura seminal do DJing da cidade seu primeiro mentor. Eduardo Herrera era uma personalidade notória do cenário LGBTQ naqueles tempos em que o Bar Ocidente era o ponto focal da vanguarda de Porto Alegre, oferecendo uma panorâmica vista da Oswaldo Aranha, uma de suas principais vias e, obviamente, a mais fervida.

Bar Ocidente em Porto Alegre

Educado nesse momento de inflexão e efervescência que marcou as duas últimas décadas do século passado, Nando logo apurou seu estilo e forjou sua personalidade artística em meio à primeira leva da eletrônica de vanguarda que então aterrissava no país através de uma modesta, porém significativa residência no epicentro da contemporaneidade da cidade que ele chama com toda a intimidade de alguém nascido, criado e estragado nela, de “uma grande cidade do interior” perfeita para aquele tipo de cidadão que, segundo ele “é bastante egocêntrico e até um pouco arrogante”.

Mas foi seu ímpeto pioneiro que o manteve à frente das vogas e imune aos modismos que normalmente acometem espaços de sociabilidade mais provinciana enquanto dava aulas de informática e produção musical bem quando os recursos transitavam do analógico para o digital. Este foi o período inicial dos noventa, no qual o programa Dancing Express, comandado pelo seu mentor, inaugurava a era dos programas de música eletrônica nas emissoras de FM gaúchas através de uma rádio universitária, a Unisinos de São Leopoldo.

Em 2002, já com a música eletrônica alcançando seu primeiro apogeu em âmbito nacional, Nando é convidado a assumir uma fatia bastante erma do dial gaúcho numa subsidiária da Band FM chamada Radio Ipanema. Já estabelecido como um dos principais movimentadores da cena local nas mais diversas frentes, além de também possuir um estúdio próprio no qual podia gravar os episódios, ele conseguiu criar algo original entre as pressões de uma diretoria extremamente controladora, mesmo face a uma audiência então inexistente.

Esta oportunidade se deu por conta de outro convite de um veterano da cena gaúcha, Beto Kraas, que viu nele um potencial disseminador das sonoridades que então ganhavam a proeminência merecida na região após tantos anos fomentando o underground local. Beto estava incumbido de manter um programa de música eletrônica às sextas na emissora desde 2000, porém se viu incapaz de poder cumprir as demandas de um compromisso destes enquanto sua carreira como DJ deslanchava em Gramado e cada vez mais exigia sua atenção e dedicação fora de Porto Alegre.

Nando assumiu o período e, sob sua direção criativa, os programas se atreviam a adentrar nos terrenos inexplorados fora do mainstream, aventuras que, à época, eram permitidas dentro de regras e convenções estritas (alguns chamariam de censura hoje em dia, mas lembremos que eram outros tempos) acerca do que podia ou não podia ser tocado: nos noventa era o Drum and Bass ou qualquer outra coisa mais “barulhenta”, já nos 2000 era House sem “aquela gritaria vocal”, e assim por diante. Entretanto, mesmo entre essas restrições estéticas um tanto limitantes, ele utilizou bem o espaço de manobra que possuía num horário relativamente inóspito.

E, foi assim, aproveitando a liberdade que isto lhe provia em termos de anunciantes – e, portanto, de qualquer módico de responsabilidade direta com a emissora – que ele criou um ambiente de permissividade opinativa completamente inédito que servia de acompanhamento perfeito para a musicalidade refinada que era privilegiada durante o programa. O BPM em seu formato clássico tomava forma e uma nova era da eletrônica nas FMs gaúchas era inaugurado, tanto pelo conteúdo musical como pela forma pela qual ideias eram expressas e discutidas abertamente em seu decorrer.

O molde era simples: convidados ocupavam uma mesa redonda e intercambiavam suas opiniões livremente, sem qualquer tipo de contenção. O resultado naturalmente foi um ambiente no qual discussões foram estimuladas e polêmicas foram criadas, ainda que tudo bem azeitado por uma forte e constante dose de humor e guiadas pelo bom senso de um anfitrião que, afinal de contas, conhecia todos os convidados e os deixava à vontade para se expressarem.

Ipanema FM – Andre Sarate, Everson K Schroeder, Mozart Riggi, Rodrigo Superti, Jason Bralli, Eduardo Herrera, Beto Kraas, Gaudencio Francisco e Nando Barth

O que se sucedeu foi um aumento notório na audiência da rádio naquele horário das 22 às 23, escalando de dois para nove pontes de audiência, um fenômeno que pode ser tanto creditado à compatibilidade da proposta musical com o horário no qual todos se preparavam para sair e curtir, quanto ao fator incendiário que o conteúdo humorístico carregava. Previsivelmente, este último elemento criou notoriedade e problemas de modo proporcional e, à medida em que o sucesso começava a ser afirmar e o palavreado começava a pesar, os riscos para um programa que então passava ser feito ao vivo aumentavam.

E foi em meio aos inúmeros ônus que essa liberdade inevitavelmente traz em seu bojo que o programa foi eliminado em um tempo relativamente curto após sua estreia, mesmo tendo inspirado até cópias em outras emissoras (ainda que não necessariamente preocupadas com a mesma qualidade musical) e chegando a atingir um público cativo tão amplo que se estendia por um território que alcançou cidades da vizinhança como Canoas, São Leopoldo e Novo Hamburgo. Mas, de alguma forma, o espírito de desafio de convenções e gostos permaneceu, dentro de fora da proposta do BPM, e se estende até os dias atuais, seja de modo discreto no interior dos programas que hoje povoam as faixas da FM gaúchas ou suas encarnações mais recentes criadas pelo próprio Nando nas redes sociais e abraçadas por muitos que fizeram sua história.

A música conecta.

+++ Radiosfera | Episódio 1: Rádio Flight

+++ Radiosfera | Episódio 2: TóIN, um sinal de Belém

+++ Radiosfera | Episódio 3: Sound Factory, the best party in São Paulo

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