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A música conecta

Maria compartilha conosco suas experiências de vida e profissão

Por Alan Medeiros em Troally 15.07.2016

Teoricamente, o que há de mais avançado em aspectos culturais dentro de um país extenso e multifacetado com o Brasil, está nas grandes capitais. É simples e fácil pensar dessa maneira por uma série de motivos: maior número de pessoas, facilidade na logística de eventos, maior número de profissionais trabalhando em prol de um objetivo comum.

Sim, boa parte dos principais projetos envolvendo a música eletrônica conceitual – principalmente os que possuem uma proposta além do puro entretenimento – está localizada em cidades como São Paulo ou Curitiba. Entretanto, fechar os olhos para o interior é algo como negar o trabalho de pessoas que criam uma cena linda e promissora convivendo com inúmeras adversidades. Em Pelotas, Maria e a crew da Crema estão desenvolvendo um trabalho realmente fora da curva para os padrões nacionais. Apenas para você ter uma ideia, o britânico Voigtmann encabeçou o line up do último evento, que já trouxe nomes como Ale Reis, Ney Faustini e DJ Koolt para a cidade. A edição 85 da Troally é um bate-papo bem especial com Maria, que falou abertamente conosco sobre diversos assuntos importantes, para ela e para a cena como um todo. Música de verdade por gente que faz a diferença!

1 – Olá, Maria! Obrigado por falar conosco. Você é gaúcha de Pelotas, certo? Como o Rio Grande do Sul e sua terra natal influenciaram em sua formação artística?

Olá! Obrigada a vocês 🙂

Certo! acredito que foi quando eu era bem menor. As raves começaram a chegar no RS e eu tinha apenas 14 anos. Meus pais trabalham no ramo de bebidas e começaram a patrocinar as “novas festas” que estavam acontecendo: as raves. Na época ninguém tinha muita idéia de nada (muito menos eu) e sempre tinha espaço para os patrocinadores e eu acabei indo em muitas. Os anos foram passando e comecei a ir sozinha e sempre gostei muito. As raves eram bem diferentes naquela época… Acredito que já veio impresso em mim alguma identificação com a música eletrônica, desde o primeiro contato me senti curiosa pelas coisas que vi. Depois me afastei, fui morar e trabalhar em Porto Alegre e comecei a frequentar o Warung e festas de SC em 2009. Tinha interesse em assistir os DJs, mas tocar aconteceu muitos anos depois. Acredito que passei por quase todas as festas eletrônicas aqui do sul na época. Vi um pouco de tudo e chegar aqui tocando o que toco foi uma jornada de livres experimentações.

Com 24 anos engravidei e estava trabalhando na criação de uma marca de skate em Novo Hamburgo e resolvi sair por ser uma fábrica e a presença de materiais tóxicos não era legal pro meu momento. Acabei voltando pra Pelotas para me dedicar de forma mais tranquila ao meu papel mais importante: ser mãe:)

Lá recomecei do zero. Foi uma fase difícil porém transformadora. Profissionalmente já tinha conquistado coisas legais pra minha pouca idade e tive que abrir mão de tudo. De inicio fiquei aborrecida e sem perspectivas e logo comecei a entrosar com a galera. Sabia que o Rafael (o Atrib meu sócio que fundou a Crema junto ao Gui) vinha trabalhando a cena house em Pelotas já há algum tempo e um dia encontrei ele tocando em um evento e senti: também quero tocar! Foi uma reação natural. Como já tinha dito, eu nunca pensei nisso antes. Isso virou minha terapia. Algo que ocupou o que eu já não tinha mais. Ali eu me encontrei, achei o caminho. Comecei fazendo eventos em lojas, lançamentos, etc… depois passei 1 ano tocando todas as semanas. Essas oportunidades fizeram eu amadurecer como pessoa e me sentir DJ. é super cansativo fazer evento e as pessoas não davam muita bola pros DJs de eventos aqui na cidade e nem aos detalhes que estão envolvidos. Nesses casos, ninguém tem idéia o que tu precisa pra tocar, se precisa de alguma ajuda pra carregar alguma coisa ou se tu faz algo concreto sendo DJ… Todo esse movimento e as suas diferentes etapas despertou muitos interessados e acabou se tornando uma profissão bem concorrida e ativa em Pelotas.

Sobre a Crema, toquei em todas edições, mas demorei algum tempo para me tornar uma das cabeças. Passei por várias descobertas, situações e claro, pessoas erradas, para finalmente chegar ao grupo afinado que formamos. “Para a mágica acontecer muitos elementos devem estar alinhados”. E eles demoram até ser encontrados… Felizmente, vivo com a certeza no coração que temos algo em família de verdade. Somos 4 e cada um é muito bom em alguma coisa e um ajuda o outro nos seus déficits. Levamos muito tempo para que isso ficasse redondo e por isso somos um grupo bem agarrado hoje em dia.

Minha formação artística está em cima do corre que venho fazendo e das coisas que passei desde então. Vem da disposição que eu tenho para fazer as coisas acontecerem desde o início, quando elas ainda não existiam por aqui e ao lado das pessoas certas que se empenham no mesmo nível para isso.

2 – Você é uma artista que desenvolve sets de maneira versátil, tanto para warm ups, quanto para peaktimes. Como funciona sua pesquisa musical? Atualmente, quem são os artistas e labels que possuem mais força em seu radar?

Minha pesquisa musical é diária. É importante saber onde e que horas você vai tocar. Saber o seu lugar. Saber o que está tocando e o que combina com o teu jeito de ser. Por isso a pesquisa tem que ser organizada exigindo além de dedicação, muita percepção para realizá-la. Ter consciência disso é o primeiro passo para obter sets bem definidos em diferentes ocasiões.

Ah, minha pesquisa começa em Perlon pra frente… [risos]

3 – Desenvolver trabalhos sólidos e de conceito musical definido fora dos grandes centros do Brasil sem dúvidas é um desafio difícil de ser encarado. Fale um pouco mais a respeito de seu trabalho frente a Crema. Principais desafios, histórico e novidades…

Todo trabalho sólido requer dedicação, paciência e a cima de tudo comprometimento. É dessa forma que trabalhamos na Crema. Sabemos quem somos e como queremos nos comportar e transferimos isso para tudo que fazemos. Não damos nenhum passo e nem mostramos algo que não faça parte da nossa rotina. Nada que não venha das nossas influências pessoais. Exercitamos diariamente a compreensão do que cada um é em busca do que acha melhor pra si, livre de preconceitos.

Um grande erro que observamos no convívio com pessoas é que muitas delas não acreditam em nada, nem em si mesmas, o que as leva a criticar o tempo todo e por não se encontrarem acabam virando copias das outras, formando um grande exército da mesmice. Definitivamente abominamos esse comportamento e é por isso que corremos em fuga, para o sentido contrário. “Se tu copiar algo do outro, isso não é parte de ti e então tu não estás construindo nada”.

Uma coisa é admirar algo ou alguém e se inspirar nele, buscando elementos próprios, outra coisa é reproduzir uma ideia alheia. Pode dar certo no ínicio, mas estará condenada porque a essência não estará lá para alimentá-la.

Eu realmente acredito em nós. Se algum dia algo não puder ser como acreditamos, a gente nem faz ou deixa para uma próxima. Sem pressa. Estar de acordo com a nossa realidade, se conhecer e fazer o melhor disso com os recursos que temos na volta é essencial. Existem infinitas referências, entretanto nós somos “assim” e queremos ser exatamente o que somos. Aceitamos o nosso tempo. Essa é nossa regra e um dos pilares da Crema, a partir daí o resto flui naturalmente. Isso parece ser um grande clichê, mas nos manter assim é o maior desafio dentro de tantas possibilidades que vem surgindo. E isso pra mim é o ingrediente principal da receita toda para construir algo sólido ao longo da caminhada. E ela é longa e estou engatinhando…

Já ouvimos falar que nos comportávamos assim porque não entendiamos nada sobre marketing e estratégias, etc. E que tudo era muito fácil porque faziamos festa pra poucas pessoas(?). Só que não entendem que o nosso movimento é justamente ao contrário. Não impomos nada a ninguém, fazemos o que acreditamos e naturalmente as coisas e pessoas vem. Nunca definimos padrões e tão pouco definimos que seria assim.Tudo está em movimento e em constante evolução. Seremos sonhadores para sempre. Mas o ponto principal é: um passo de cada vez. E principalmente, embora muito desafiador, dinheiro em segundo plano. Acreditando e com calma que os números e os bons resultados serão o reflexo de muito trabalho.

Hoje vemos a “crítica local” copiar nosso posicionamento e isso é louco por que se falamos ou pensamos tal coisa é porque levamos um tempo com varias experiências pessoais para chegar a tal definição… não foi copiado, foi vivenciado! E ai as pessoas vão lá e reproduzem aquilo sem ter ideia de onde veio, é engraçado!

Por isso transparência e comprometimento tem nos bastado cada vez mais. Nosso objetivo não é fazer espetáculos e sim proporcionar experiência musical para as pessoas que se juntam a nós e assim sempre será.

Nosso envolvimento maior agora está em dar início a rotina de um novo projeto nosso chamado: MQD. É um espaço cultural que vai ser como a nossa casa. Vamos tocar, produzir, receber as pessoas e DJs, proporcionar momentos, estar com artistas locais ou não de diferentes áreas, workshops, oficinas e até uma mini ramp e… qualquer coisa que nos der na telha! Queremos criar uma atmosfera que vai além da pista de dança que conversa com a nossa sonoridade e o nosso estilo de vida.

Gosto de pessoas que saibam onde está indo e valorizem o que estão escutando. E então isso requer uma reeducação em todos os aspectos.

Todas as edições da Crema recebemos DJs que do seu jeito transformaram a cena local. A última edição no final de semana passado, recebemos o Voigtmann da Toi.Toi de Londres e foi uma aula. Super DJ e super pessoa. Na próxima edição em setembro vamos receber o Lowris da Concrete de Paris. Mal posso esperar! 🙂

4 – Certamente você possui mulheres incríveis como referência dentro do mundo da música… quais são?

Yesss ! 🙂 referência pra mim é quando a combinação da música com a postura estão alinhadas. Tenho minhas referências universais como Vera, Maayan Nidam, Sonja Moonear. Tem DJs que tenho encontrado por aí tocando em lugares diferentes e viraram referências pra mim como a Vale Volpe do Uruguai que está começando e ta representando muito bem as DJs mulheres. No Brasil, gosto muito da Tati Pimont, colecionadora de vinil, super bom gosto musical e personalidade nota 10.

E tem a Isis Salvaterra que não é DJ e sim a cabeça da Toi.Toi, é referência pra mim no profissionalismo e compromisso em lidar com maestria em tudo que está envolvido na cena. Sempre me da bons conselhos.

5 – Na sua visão, falta espaço para as mulheres nos line ups? O que pode ser feito para melhorar esse quadro?

Não. Mulheres exigindo line-ups só de mulheres é o mesmo que exigir igualdade fazendo exclusão. Então pra mim não faz sentido. Eu acredito que DJ não tem gênero. Lugar tem pra quem é comprometido e leva a sério a profissão. Não é o sexo que define isso.

6 – Fale um pouco a respeito de suas principais referências dentro da música em geral.

Referências a nível geral tenho várias. Mas prefiro citar aqui referências que tenho a honra de ter por perto por que essas sim, me influenciam em me tornar uma DJ melhor diariamente por vários motivos e características distintas:

Ale Reis, Gui Ferreira, Atrib, Manglus, Dee Bufato, Lucas Doné (DoNeck).

7 – Para encerrar, uma pergunta pessoal. O que a música representa em sua vida?

como diz meu grande amigo Manglus: a way of life.

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