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A música conecta

Vitrola | O diggin pesado de Kenny Dope em Brazilica

Por Redação Alataj em Vitrola 18.07.2018

Por Chico Cornejo

Colecionar discos é um hábito dos mais dispendiosos, pois exige a paciência de um monge, a dedicação de um atleta e a sabedoria de um gênio, isso sem falar nos recursos de um magnata, para poder ser usufruído em sua plena capacidade de nos satisfazer. Por isso mesmo ele é uma atividade das mais perigosas, daquelas capazes de levar pessoas à penúria à paranoia com muita facilidade. Em suma, não é o tipo de passatempo a que qualquer um possa se dedicar, principalmente aqueles propensos a comportamentos obsessivos.

Embora esse jogo seja perigoso, ele sustenta e anima uma rica comunidade de apreço por esses artefatos fonográficos que carregam tanto sentimentos quanto significados e formam uma dimensão muito profunda da nossa relação com a música. O digging é um aspecto basilar da cultura do DJ e também incorpora muito da competitividade que marca suas origens bem fincadas no Hip Hop e na masculinidade em que se enraizou. A concorrência é parte essencial, assim como a astúcia, mesmo porque se a mera descoberta fizesse o mérito, o dinheiro determinaria o sucesso. Encontrar um disco raro é importante, mas fazê-lo por um valor abaixo do estabelecido no mercado é o que distingue os grandes garimpeiros do restante. Isso quando eles mesmos não reinventam ou resgatam um disco específico da poeira dos casulos e trazem seu conteúdo de volta às pistas ou rádios.

Bem no centro dessa dinâmica, há todo um cultivo do interesse e um certo preciosismo que visam valorizar não apenas o que é rarefeito, mas principalmente o que é bem-feito e é exatamente nesse cerne que a música brasileira encontra um lugar de elevada estima entre os caçadores de gemas. O que fomentou essa mobilização frenética em torno da nossa herança musical gravada, além de toda sua riqueza rítmica e sofisticação melódica, foi o extremamente injusto e centralizado sistema cultural no qual ela se formou e vicejou que acabou por relegar ao esquecimento uma imensa parte desse legado.

É aqui que entra alguém como Kenny Dope, um sabujo de preciosidades materializadas em vinil que sempre procurou desenterrar coisas as mais variadas com o intuito de recriá-las através do sampling em suas produções ou simplesmente balançar pistas com sua energia primeva. Em suma, tudo que conforma a essência revolucionária através da qual o Hip Hop transformou radicalmente nossa relação com o material sonoro e sua história. Mesmo por conta de suas raízes latinas, ele sempre se mostrou um ávido explorador e profundo conhecedor dos elementos que fazem da nossa musicalidade essa fonte inesgotável de inspiração para visionários como ele.

É neste ponto que as paixões de um seletor e digger se encontram com a de outro gringo apaixonado por nosso universo musical, o britânico Joe Davis, fundador da Far Out recordings. O selo em questão é parte de um valoroso grupo que conta gravadoras como BBE, Strut, Soul Jazz e tantas outras dedicadas a essa nobre tarefa de desenterrar e devolver à antiga glória alguns pedaços e vinil e especialmente, o que eles contêm. A Barely Breaking Even, nomeada em homenagem a uma um clássico da Disco da Universal Robot Band, se devotou desde seus primórdios a essa missão, concentrando seus esforços e catálogo especialmente à nossa sonoridade.

Embora seu quinhão principal seja essa atividade de resgate, a BBE não apenas fez isso, ela também serviu de plataforma a coisas originais e extremamente autênticas com artistas brasileiros de várias épocas. Foi assim que reuniram uma seleção gigantesca de artistas que engloba o baterista Mamão do Azymuth, a vocalista Nina Miranda do Smoke City, o guitarrista José Carlos e mais uma dezena e meia de nomes de veteranos e novatos para criar o megagrupo Friends from Rio, além de promover os talentos de gente tão diversa quanto a cantora Clara Moreno, os lendários Os Ipanemas e o sensacional Marcos Valle, além das experimentações do projeto Da Lata, fruto do fascínio de outro inglês pelos sons do Brasil, o DJ e apresentador Patrick Forge.

Brazilica viu essas duas forças unirem-se nas comemorações dos 10 anos do selo: de um lado o apetite e apreço de Kenny pelas brasilidades e, do outro, o elenco da Far Out contribuindo com peças exclusivas. O resultado é uma coletânea repleta de surpresas agradáveis e aparições até aquele momento raras de gente que andava bem sumida, tudo escolhido a dedo por Kenny e mixado com a malemolência que ele sabe imprimir em seus sets através da precisão que todo bom DJ de Hip Hop precisa ter para fazer o que faz. Uma trifecta, como dizem, esta coletânea é um clássico porque parte de um lugar muito sincero tanto o artista como do selo de valorização de um tesouro musical dos mais valiosos, o nosso.

Kenny Dope está em tour pelo Brasil. Saiba aonde encontrá-lo:

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