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A música conecta

Editorial | NFTs e a música eletrônica: o que esperar do mercado de arte criptografada?

Por Laura Marcon em Editorial 11.06.2021

Scaramanga Silk. Conhece? Em fevereiro deste ano, o maior Marketplace de discos do mundo – Discogs – anunciou, como de praxe, os 50 itens mais caros vendidos no ano anterior. Desta vez, contudo, quem atingiu o primeiro lugar na lista de 2020, também ocupou o pódio da venda mais cara de toda a história do website. O disco em questão chama-se Choose Your Weapon e foi vendido por US $41.095,89. Você leu isso mesmo. Este valor equivale ao brasileiro na data de hoje mais de duzentos mil reais. E quem era o autor dessa obra prima tão valiosa? 

Scaramanga Silk. Conhece? Possivelmente não. Eu não o conhecia. Nem o Discogs. Foram atrás dele para saber o que, como e porquê. Scaramanga conta que o disco faz parte de uma prensa promocional do single Choose Your Weapon, em 2008. Foram produzidas 20 cópias do disco. O artista, que não sabe quem realizou a compra, ficou muito surpreso com a venda e imagina que a natureza de edição altamente limitada deva ser um fator importante, além da pessoa ter uma ligação especial com a obra. Porém, se mostrou decepcionado em ver um item promocional atingir esse preço, quando o artista não vê nenhuma remuneração.

Eu imagino que você deva estar se perguntando como abriu um editorial para ler sobre o ápice da inovação digital da arte atualmente e caiu em uma história sobre a venda de discos de vinil, não é mesmo? Faz sentido. É que resolvi usar esse caso para tentar fazer um paralelo com esse novo e ainda pouco explorado universo, que tem potencial para mudar completamente a história do cenário da música. Isto porque, o que moveu a compra do disco também move o novo mercado que habita o universo virtual das blockchains e criptomoedas. Hoje, esse terreno digital vende cripto arte, que também pode ser conhecida como NFT – Non-fungible Token, ou Token Não-fungível. 

Entender rapidamente o que é um NFT sem que previamente se conheça sobre esse mundo não é uma tarefa tão fácil, mas vou tentar resumir da maneira mais simples que conseguir. Um Token Não-fungível é basicamente um certificado de autenticidade de que você tem a propriedade de um documento digital na internet. Pode ser um arquivo de diversos formatos. Jpg., txt., raw., pdf., a lista é grande, você sabe. Esse certificado fica registrado em um “livro” de dados público chamado blockchain, que anota todas as transações feitas com a moeda virtual daquele ambiente digital. No caso, hoje, a maioria das transações é feita em Ethereum

É uma introdução bem rasa no mundo das cripto artes, mas acho que com isso já dá pra gente seguir em frente, porque não teremos beabá do tema aqui. A questão é que o certificado te dá a certeza de que você adquiriu um produto não-fungível, ou seja, insubstituível. Ninguém poderá ter esse mesmo arquivo/produto com o mesmo número de série. A não ser que você permita, é lógico. Significa dizer que, quando você adquire uma cripto arte, você está lidando com algo altamente escasso e exclusivo. Agora, imagine um produto exclusivo e insubstituível criado e vendido diretamente do seu artista favorito ou com aquela carga emocional profunda. Quanto você pagaria por isso?

Foi mais ou menos o que aconteceu com Scaramanga Silk e o vinil valioso e é isso que também aconteceu no mundo digital nos últimos meses, mas com a pequena diferença de que os artistas das artes digitais tiveram finais bem mais felizes que Silk e, por terem poder total da arte que colocaram à venda, receberam boas quantias pelas suas obras. Tão boas que as NFTs se tornaram um dos grandes assuntos do mundo da inovação da arte ao redor do mundo e, ao que parece, marca o primeiro boom de uma nova era, pois abriram espaço para um mundo de novas possibilidades quando o assunto é o famigerado viver de arte.

Tá aí um tema complexo e só quem é artista sabe do que estou falando. Ser artista e se sustentar da sua criação em um mundo tão capitalizado em um mercado tão competitivo é uma barra. Especificamente quando falamos em música eletrônica, inúmeros são os percalços que norteiam a vida de um(a) DJ e/ou produtor(a) para que possa auferir renda somente através de sua música, principalmente pela falta de poder e controle que tem sobre ela. Hoje, quem detém a maior parte do dinheiro que circula no mercado são as gravadoras/distribuidoras, plataformas de streaming e outras grandes potências que controlam a comercialização legalizada de música (porque nem entrarei no submundo dos downloads piratas).

E é justamente por isso que, se você é artista e tem a intenção de viver da sua arte (ou continuar vivendo), você pre-ci-sa prestar atenção no que já está acontecendo nesse universo digital e os movimentos que podem surgir a partir dele. As cripto artes vem com uma ideia de descentralização que quebra completamente um sistema e mercado solidificados há muitas décadas, dando ao artista controle e poder total pela sua criação e novas formas de comercializá-la, além de mudar o valor da própria arte e ressignificar a relação entre artista, seus consumidores e, principalmente, sua base de fãs, estreitando a relação entre ambos e permitindo conexões e compartilhamentos de interesses de forma impensáveis.

Não conseguiu visualizar? Vou te dar algumas possibilidades e vantagens artísticas que já são vislumbradas através das NFTs e que podem brilhar seus olhos para esse novo mercado:

Contratos inteligentes: A venda de um NFT pode estar atrelada a um contrato personalizado para garantir que o(a) autor(a) da obra continue recebendo uma parcela dos valores de futuras negociações daquele produto. Significa dizer que o(a) artista pode, por exemplo, vender suas faixas ou até mesmo tools e samples para outras pessoas, assegurando os termos deste certificado digital de autenticidade, chamado de “contrato inteligente”, e permitindo que receba uma parte – em música, geralmente de 10% a 30% – de quaisquer revendas.

Revenue shares: Se esse é um conceito novo pra você, explico rapidão. Trata-se da distribuição do valor total da renda gerada pela venda de um produto entre as partes interessadas ou contribuintes. É como participação nos lucros, mas focando nos ganhos em que houve participação ativa na comercialização ou divulgação de um produto ou serviço. Quer um exemplo? Imagine que o(a) artista finalizou um álbum e agora quer comercializá-lo de forma independente, como NFT. É possível realizar uma campanha de venda através dos próprios fãs, onde cada um deles pode lucrar com a venda deste produto, aumentando ainda mais o alcance da arte pelo mundo.

Venda de itens colecionáveis ou experiências únicas: As pessoas possuem um grande interesse em ter produtos que são limitados ou edições oficiais. Isso traz um valor emocional para quem o compra – como o disco de prensa especial/limitada que comentei no início. E mais, as pessoas pagam caro por isso. Sabemos que o mercado hoje vai muito além da música por si só. Através das NFTs, artistas e labels podem criar e vender artigos exclusivos, bem como shows privados, sets personalizados… as possibilidades são infinitas. A Suara Records, comandada por Coyu, já entrou nesse mundo e está vendendo seu primeiro NFT, uma escultura em parceria com os designers da GaAs onde parte da renda será revertida para a Fundação Suara, que cuida dos gatos de rua da cidade de Barcelona.

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Atenção ao lado B e a liberdade criativa: Estamos falando de um mercado completamente novo e, sendo assim, buscar mais do mesmo não é o padrão por aqui. As transações realizadas em blockchain dão grandes sinais de que o público que está ali busca por algo que, além de exclusivo, é diferenciado. Quem sabe não é a hora de tirar da cartola e colocar no DAW aquela linha sonora experimental que você gostaria, ou aquele projeto que pensava não existir ninguém interessado? 

O artista e seus fãs em uma relação jamais vista: Todas essas possibilidades citadas acima e muitas outras que o mercado das NFTs podem proporcionar são baseadas principalmente na relação entre o artista e sua base de fãs, buscando uma aproximação entre eles, o auxílio mútuo e a venda da arte diretamente para quem as consome. A partir dessa premissa, o(a) artista ou projeto pode criar uma comunidade para troca de interesses e experiências. E se os fãs da Nina Kraviz dissessem à ela que gostariam muito de vê-la ao menos uma vez saindo da zona de conforto e tocando outra linha sonora diferente do Techno? E se a Nina desse essa oportunidade a pouquíssimos fãs disponibilizando ingressos através de NFTs para uma live exclusiva? É apenas uma ideia que surgiu na minha mente, mas trouxe para mostrar o poder do contato direto com quem admira e compra sua arte.

A catarinense Aninha se interessou profundamente pelo mundo das NFTs e já lançou seu primeiro trabalho, sendo a primeira produtora brasileira a apresentar um release neste formato. Em uma conversa com o Alataj, Aninha conta: “vi uma chance de mostrar algo além do que costumo lançar. De me explorar mais como artista. Posso lançar todo tipo de arte digital, sons mais abstratos, fotos, animações, etc. A experiência tem sido interessante, já que tenho desenvolvido habilidades que estavam paradas há alguns anos (como desenhar) e outras que não tinha interesse em aprender no passado (como animação gráfica). O público que consome é 99% formado por pessoas que não me conhecem, que consomem arte digital e se comunicam através do twitter (que reativei a pouco tempo)”.

Aninha acredita que “esse tipo de comercialização descentralizada irá impactar de forma positiva os artistas que dependiam de gravadoras e outros intermediadores para expor ou vender suas músicas. Além do valor monetário da tua obra ser livre, você estará vendendo ela para um colecionador que, por sua vez, poderá vendê-la se quiser, pagando a você uma comissão. (…) O legal disso tudo é que estamos falando de algo que parece novo, mas que não surgiu agora. O primeiro NFTart foi criado em 2014 e muitos artistas no Brasil estão nessa desde 2019, ou seja isso veio pra ficar”.

É claro que, pensando apenas nestas possibilidades, já surgiram várias dúvidas e também alguns argumentos que impedem o mundo das NFTs de ser essa maravilha toda. É verdade. Estamos falando de um universo completamente novo, que explodiu principalmente por conta da pandemia e que ainda gira em torno de apostas e é muito restrito em termos de participantes. Compras de artes em valores gigantescos foram realizadas por investidores pesados de criptomoedas e os autores das obras são do calibre de Steve Aoki, Richie Hawtin e 3LAU, que possuem uma base de fãs muito bem formada e que está inserida no mundo do blockchain.

Também estamos falando de negociações em um mundo digital, que ainda encontra muitas lacunas em sua validade no “mundo real”, abrindo margem para muitas divergências ao longo das negociações. Mas o ponto mais negativo das NFTs diz respeito ao impacto ambiental causado pelo consumo massivo de energia fóssil para viabilizar toda essa operação virtual, fator que tem gerado muita discussão, não apenas entre seus operadores, mas também entre artistas e seus fãs.

Todas essas questões já estão sendo amplamente questionadas ao redor do mundo e, sem sombra de dúvidas, veremos muitas transformações ao longo dos próximos anos. O que não dá para acreditar é que esta é apenas uma modinha que desaparecerá em pouco tempo. Pode ser que se mude o processo, a moeda, as negociações, alguns termos, mas a ideia mais importante e revolucionária foi plantada: existe uma real possibilidade do artista ter propriedade e controle de distribuição da sua arte no futuro e conseguir auferir renda justa através dela. 

A ideia de “futuro” que a gente tinha como algo muito distante já não é mais a mesma, então, mesmo que você, artista ou profissional do mercado, não tenha em seus planos investir em criptomoedas nos próximos tempos (e eu te entendo) e criar NFTs para comercializar, já é possível pensar em movimentos importantes que farão a diferença no futuro. A que eu acredito ser a principal é: observe e trate com muito mais carinho as pessoas reais que apoiam sua arte. Você sabe de fato quem são as pessoas que compartilham seus materiais nas redes sociais? Tem contato frequente com quem sabidamente consome suas músicas? Sabe o que seus fãs esperam de você ou o que mais gostam no seu trabalho? Sugestões e críticas, recebe de mente aberta?

Em um mundo onde muita arte é criada para satisfazer algoritmos e marcas, é sempre imperioso lembrar que, digital ou física, a arte só existe de fato a partir de um ser humano de carne e osso, que compartilha seus sentimentos com outros seres humanos. 

A música conecta.

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