Skip to content
A música conecta

Alataj entrevista Maria Rita Stumpf

Por Salomão Augusto em Entrevistas 29.05.2020

A voz de Maria é como uma força da natureza, imensa e extremamente potente. Maria Rita, gaúcha da serra, é uma artista que nos refresca sempre na memória o porque a música e a cultura brasileira são potências nacionais que temos que preservar e investir sempre.  Daquelas que dão um orgulho gigantesco de ser brasileiro e ter vindo desta terra.

Pra quem não chegou a conhecê-la,  Maria Rita Stumpf é um tesouro da música eletrônica do Brasil na década de 1980 que recentemente, há menos de três anos, passou por um resgate atemporal guiado pelas seis mãos e percepções espertas de um DJ íbero-britânico e dois DJ brasileiros.

Em 2017, John Gomez (o íbero-britânico) trouxe a luz duas faixas da cantora em uma compilação que saiu pelo selo Music From Memory chamada Outro Tempo: Eletronic And Contemporany Music From Brazil 1978-1992, que também conta com vários outros sons que são verdadeiros banquetes para qualquer pesquisador em qualquer nível.  Mais tarde, porém no mesmo ano, o duo Millos Kaiser e Augusto Trepanado, conhecidos pelo excelente trabalho exercido como engenheiros de pista na festa/projeto Selvagem, entraram em contato com John Gomez através da compilação lançada, especificamente pelo interesse em dar uma releitura para a faixa Cântico Brasileiro Nº 3 – Kamaiurá. Maria os autorizou e coordenou todo o processo até o lançamento do EP Brasileira Remixes em outubro de 2017 pelo selo Selva Discos, criado pelo duo de DJs brasileiro específico para o lançamento do EP na época. O EP também conta com um remix, indicado por ela, do francês Joakim para a faixa Lamento Africano/Rictus.

Ponte feita, a obra de Maria entrou em erupção novamente. 

Desde então Maria Rita retornou aos palcos de todo o Brasil assim como o fez nas décadas que passaram. Fez uma apresentação memorável na edição brasileira do festival Dekmantel em SP no ano de 2018 e passou por outros palcos como Kino Beat e vários outros em um passeio pelo Brasil-origem cantado por ela em suas letras.

Voltando um pouco as casas, Maria Rita é uma artista de vanguarda em vários aspectos. Em seus últimos álbuns de estúdio é evidente a presença de melodias e construções sonoras bem a frente de seus anos de lançamento. Nos seus últimos capítulos de estúdio Brasileira (1988) (que a rendeu uma indicação de álbum do ano pelo Prêmio Sharp em 1989) e Mapa das Nuvens (1993), Maria Rita mostrou duas fases em que suas experiências e desejos de vida traduziram em forma de letras musicais e bases fortes com um background eletrônico muito autêntico,belíssimas canções transcendentes em ‘tupi-português’, que nos trazem a uma longa viagem interna por meio de inspirações trazidas da origem e do todo.

Com um significado tão potente quanto as melodias, no terceiro capítulo dessa brilhante história, Maria trouxe ao mundo Inkiri Om, o seu terceiro trabalho de estúdio. Em função da pandemia referente ao surto de Coronavírus pelo mundo, o álbum foi lançado somente pelas vias digitais até o momento, mas os planos são múltiplos.

Com o poder de criar e transformar a música em um momento clássico-vanguardista, esse disco é uma verdadeira ‘Obra De Álbum’, pendurados na mesma galeria que os outros dois estão expostos. O álbum traz 11 novas faixas que passeiam pelas iluminações indígena, africana, indiana, latina e outras referências e vivências que ela mostra através de composições de Maria Rita , Milton Nascimento , Taiguara , Vinícius Cantuária e Evandro Mesquita , Nelson Ângelo , Fernando Brant , os gaúchos Nando D’ Ávila e Zé Caradípia numa parceria com Maria Violeta Parra. Nos arranjos nomes como Ricardo Bordini que esteve no LP Brasileira, Lui Coimbra que assina a produção musical com Maria Rita, o violonista Sergio Assad que com Odair, seu irmão, forma um duo de fama internacional, e arranjos de Matheus Câmara, o mais jovem integrante do elenco de Inkiri Om, conhecido no mundo eletrônico como Entropia-Entalpia, do coletivo Mamba Negra em parceria com Maria Rita Stumpf. Instrumentistas do calibre de Marcos Suzano, Paulo Santos , fundador do grupo Uaktí, e Jovi Joviniano respondem pela percussão. Bordini toca acordeão, violino, clarineta, sitar indiano…. O arranjo de Sete Cenas de Imyra foi criado pelo jovem pianista Danilo Andrade , integrante da banda de Gilberto Gil, que Maria Rita conheceu junto com Kassin Kamal, no lançamento da coletânea Outro Tempo no Red Bull Music Academy Festival em São Paulo em 2017. Kassin toca baixo em quatro músicas e foi parte importante das finalizações do disco. Philippe Ingrand, conhecido no meio musical como Doudou, seu apelido francês, foi o engenheiro de som com Bruno Tavares, no seu Estudio Aprazível, em Santa Teresa, Rio de Janeiro.

Transbordando arte desde a sua capa e personalidade visual assinada pelo designer Juliano de Oliveira Moraes, a partir de pintura de Julio Saraiva e obra de Miguel Gontijo (também presente por todo o encarte original da obra), o álbum de Maria Rita é um convite irrecusável a uma viagem intensa de pouco mais de 40 minutos que parecem dias e anos dentro dos contextos apresentados e representados em suas letras e melodias infinitas. As faixas são poesias declamadas com mensagens que vão de cânticos semitas em Aavoth, até a citação de denominações indígenas do nosso Brasilsão em Inkiri Om, faixa que abre o álbum.  Ao fim, Maria volta ao Brasileira em Canoa Canoa como se os dois álbuns fizessem parte de um mesmo organismo, dando uma outra impressão na audição do álbum, o que claramente foi o motivador de ouvi-lo outras dezenas de vezes.   

Diante dessa imensidão, convidamos a própria Maria Rita para um papo sobre o processo de criação desse álbum incrível e ela gentilmente nos recebeu. Afinal de contas, ninguém melhor que o criador para falar sobre a criação. Se ajeite na cadeira, coloque o fone dos dois lados, dê o play e acompanhe a prosa abaixo:

Alataj: Olá Maria! Obrigado por nos receber. Qual foi a maior força motivadora para a produção deste álbum, 27 anos de distância do seu último trabalho de estúdio?

Maria Rita Stumpf: Na verdade, foi a força da criação que vive em mim e que, apesar de eu ter me afastado de palco e estúdio, seguiu sempre acesa. Mas foi exercida de outra forma, através do trabalho que fiz trazendo inúmeros artistas para o Brasil na área de dança e de música ao longo deste hiato entre o CD Mapa das Nuvens, de 1993.  E também de outra maneira, através da volta com a coletânea Outro Tempo, o LP Brasileira e os Remixes lançados no ano de 2017. 

A composição das suas letras nos remete sempre a uma temática voltada para a origem indígena que temos dentro de nós, desde o Brasileira. Como é sua ligação com o tema?

Parte das músicas do Brasileira e parte do Inkiri Om levam, sim, a esta origem indígena, mas não somente, pois há uma presença negra forte também. Parte do disco, se a gente quiser colocar desta forma, leva a uma origem branca que é a cor que está na minha carteira de identidade? As populações nativas, indígenas ou negras são simbólicas da origem e sempre me atraíram por seus ritmos e por seus saberes. A raça branca parece ter perdido a noção de sua origem, pois certamente em algum momento da história esta raça também teve uma origem, mas aparentemente não a reverencia. Honro em várias músicas esta porção em mim também, em todos os trabalhos e shows que fiz. Há uma tendência de notar mais a indígena e a negra, parece. Sou a favor da união, jamais da separação, para todos os seres, pois é o que nos salvará da tragédia anunciada e provocada pela própria humanidade.

Em algumas das faixas você tem colocado palavras e dialetos variados em línguas indígenas. Você consegue nos explicar melhor esse seu processo de composição em ‘tupi-português’? 

Cantei Lamento Africano em quimbundo, língua africana, no LP Brasileira. É uma canção tradicional de Angola, onde as crianças chamam as mães que estão no campo trabalhando. Quando ouvi pela primeira vez, me tocou profundamente e sabia que iria cantar por muito tempo. Fui mudando o arranjo e todo mundo se encanta com esta música. 

No álbum Inkiri Om, compus o Cântico Brasileiro No 7 que completou uma oitava de cânticos e onde reverencio as nações indígenas brasileiras. Estou dizendo na letra o nomes de nossas nações indígenas. Não todas, porque para isso a música teria que durar o dobro do tempo ou o triplo. A palavra ‘Inkiri’ vem de uma tribo extinta do sul da Bahia, massacrada no século XVI, e significa o que eu queria oferecer com este novo disco, “o amor em mim saúda o amor em ti”, muito parecido com o Namastê dos hindus. Então juntei com ‘Om’, o mantra raiz do hinduísmo e que, segundo o Vedanta, cria todos os sons do Universo. As palavras cantadas em português que são ‘todos’ e ‘origem’ representam o cerne do disco todo.

A música Aavoth, que está no novo álbum, é cantada em uma língua que, segundo me disseram quando conheci este canto, também tradicional,  seria semita e considerada língua morta. Conheci num grupo de estudos de cabala e fui modificando, harmonizando, incluindo outros sons, percussões. Agora ela surge num mix maravilhoso de instrumentos orgânicos como o sitar de Ricardo Bordini, que toca qualquer instrumento que passe por sua mão, o derbak de Paulo Santos e a tabla do Marcos Suzano; tudo costurado por eletrônicos e sintetizadores do Matheus Câmara – mais conhecido como Entropia-Entalpia, do coletivo Mamba Negra – que conheci em 2019 e nunca mais nos separamos. Resumindo, eu canto o que me toca profundamente e vou incorporando até que vire uma coisa minha, pois é a única forma de ser sincera cantando. Canto Aavoth desde os anos 90 em shows e decidi gravar neste álbum. Fui pesquisar na internet e várias palavras aparecem como tendo origem Gujarat, região do sul da Índia. Mas também aparecem no hebraico. As línguas de nossa Babel são uma inspiração para cantar, pois são a expressão humana e, mesmo que as pessoas não entendam o significado literal, a música cumpre o papel de traduzir os significados mais profundos que, afinal, são comuns a todos os seres. 

O nome que o álbum leva se refere a duas palavras bem poderosas, de origens completamente diferentes. O que você entende que a fusão delas representa?

Representa a fusão da Índia com os índios. Observe que, porque os portugueses acharam equivocadamente tinham chegado às Índias, deram aos nativos da nossa Terra Brasilis o nome de índios. Em todos os países da América Latina, os nativos são chamados de indígenas (índio em espanhol é quem nasceu na Índia) e mesmo nos Estados Unidos são indigenous apesar de que se use indians. Essa fusão de uma palavra indígena de um povo nativo brasileiro, o Inkiri, com uma palavra sânscrita, que é uma língua considerada sagrada por muitos povos e foi porta-voz de imensa sabedoria, carrega a intenção de mostrar que somos todos um. 

Formando o corpo de músicos em colaboração no coletivo do seu álbum, tem um time muito extenso e importante para a formação de cada uma das faixas. Como aconteceram esses encontros entre os destinos de vocês no passado?

Esta resposta levaria mais de 30 anos. Ricardo Bordini, que conheci por volta dos 18 anos, sempre traduziu em diferentes instrumentos e arranjos o que eu compunha na maioria das vezes na voz. Algumas poucas vezes compus no violão, que comecei a tocar intuitivamente e nunca estudei formalmente. Esteve no Brasileira, no Mapa das Nuvens e agora no Inkiri Om. 

Paulo Santos, fundador do maravilhoso grupo Uaktí – que infelizmente acabou – conheci em 1987 e esteve em todos os meus trabalhos. Jovi Joviniano, Lui Coimbra e Marcos Suzano, desde o Mapa das Nuvens. Eduardo Neves também participou do CD de 1993. Mauricio Carrilho conheci quando cheguei em 1985 ao Rio de Janeiro, onde morei até 2011. 

Philippe Ingrand, conhecido no meio musical como Doudou, francês mais brasileiro que já conheci, fez som de shows, trabalhou sonorizando espetáculos internacionais que eu trouxe ao Brasil pela minha produtora Antares e levou quase vinte anos para construir o estúdio Aprazivel. Nós dois passamos todos estes anos falando em gravar um novo disco, até que finalmente se concretizou.  

João Lyra, viola caipira de primeira grandeza, conheci na gravação em fevereiro de 2019,  trazido pelo Maurício Carrilho. Ayran Nicodemo, violinista da Orquestra do Theatro Municipal do Rio e João Senna, viola, que formaram o quarteto com Lui e Ricardo para gravar o arranjo de Ricardo para a música de Violeta Parra (Run Run se fué pal Norte) para o qual não tenho adjetivo que defina suficiente, também conheci no estúdio e foram indicados por Sonja Figueiredo, amiga de muitos anos que trabalhou na Antares e no Theatro Municipal do Rio. 

Sergio Assad, que forma duo com Odair Assad, considerado pela crítica internacional como o melhor duo de violões de nossos tempo, é amigo desde os anos 80 e trabalho com eles para a América do Sul. Ele criou o arranjo de Água Benta, música de Nando Dávila, outro amigo da música, gaúcho que se foi cedo demais.  Zé Caradípia, que ficou conhecido no Brasil inteiro pela música Asa Morena,  parceiro no Hai Kai das Borboletas, criada há muitos anos em Porto Alegre quando tocávamos juntos por bares e festivais. Ricardo Bordini criou outro arranjo incrível, totalmente eletrônico, num garage pad para o Hai Kai. 

E Kassin Kamal, que foi conselheiro, amigo deeeemais e tocou baixo em quatro músicas, conheci junto com Danilo Andrade, pianista iluminado, que criou um arranjo que vai entrar para a história para Sete Cenas de Imyra, de Taiguara. O desafio era muito grande, pois o arranjo original desta música é de Hermeto Paschoal.  As crianças lindas do coro da Uerj, de Somos Todos Indios…

A presença da base e pressão de baixos eletrônicos é notória no álbum como um todo, principalmente em Sete Cenas de Imyra. Nos outros álbuns ela também se faz presente. Como você classifica a influência da música eletrônica/computacional na sua criação?

Nos anos 80 não existia música computacional. Surgia o DX7, o Rolland e eu e Ricardo gostávamos de experimentar tudo que fosse possível e fizesse sentido estético e no conteúdo. Luiz Eça fez sua única incursão no mundo dos teclados no LP Brasileira, reclamando muito que eu era doida (risos). Eu costumo dizer que se tivesse que definir meu estilo seria primitivo sinfônico. Quando voltei para o estúdio foi na verdade em fevereiro de 2017 para fazer uma nova versão do Kamaiurá, o Cântico Brasileiro No 3, em que gravei 10 canais de voz e Paulinho (Paulo Santos) gravou mais de 20 de instrumentos criados por ele e outros que encontrou no estúdio. Era a criação do que foi chamado de Remix e contava com a presença de Millos Kaiser, Augusto Trepanado e Carlos Gualda (Carrot Green) no estúdio, onde botamos os DJs para cantar e bater palma. Depois, na mixagem, entraram sons eletrônicos propostos por eles e resultou nesta maravilha de versão tocada pelo mundo afora. Acho que esta gravação é a ponte entre o LP Brasileira e o álbum digital (por agora) Inkiri Om. O eletrônico entra como som que está disponível e dentro de uma estética que sempre terá o orgânico como fundamento. 

Quando você declarou “A essência humana é uma só, seja no Xingu ou em Manhattan”, isso tem ligação direta com o resgate às nossas origens que você deixa claro em suas letras?

Sim, e com tudo mais que representa a essência humana, que é uma só e a mesma, independente de cor, sexo, educação formal ou qualquer outro fator externo. 

Cientificamente a música é um dos primeiros recursos que a mente humana recorre para enfrentar tempos de dificuldade/crise. Para você, qual está sendo o real papel da música nesse tempo de pandemia? 

O de primeiro recurso que a mente humana recorre para enfrentar dificuldades ou para alimentar o que de mais refinado temos em nós e que sempre será o que nos trará lucidez e calma. 

O que a Maria Rita de Inkiri Om tem de recado para a Maria Rita de Brasileira? 

O oroboro, que está na capa do álbum, está presente em diversas culturas e representa o ciclo de renascimento. A conexão que possa ser notada entre os dois álbuns não é fortuita. O encarte do álbum, que inclui imagens do grande Miguel Gontijo, amplia a viagem pelas mãos de Juliano Oliveira de Moraes e posso dizer que, se Brasileira podia ser considerado quase minimalista pelo número de pessoas envolvidas (Luiz Eça, Uaktí, Ricardo Bordini na música e Julio Saraiva no encarte e capa), Inkiri Om é maximalista com todas as pessoas que menciono e aquelas que eu possa ter esquecido. O recado é uma gratidão imensa pela existência.

Para finalizar, uma pergunta pessoal. O que a música representa em sua vida? 

Tudo. Caminho para evolução e única chance de paz interior. 

A música conecta.

A MÚSICA CONECTA 2012 2024