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A música conecta

Alataj entrevista L’Homme Statue

Por Laura Marcon em Entrevistas 26.03.2020

Loïc Koutana é francês e pelas voltas que o mundo dá chegou até o Brasil para acompanhar seu namorado e finalizar seus estudos direcionados ao comércio exterior, cursando mestrado na USP. Quem diria que esta mudança de país também traria uma gigantesca reviravolta na vida dele, que sempre foi artista e que hoje trabalha como modelo, performer e cantor, dando voz e expressão às minorias em meio a uma sociedade que ainda tem muito para evoluir em relação à comunidade negra e LGBTQI+.

Loïc Atua em diversas frentes da arte participando como performer de fortes movimentos culturais no cenário da música eletrônica como Mamba Negra, ODD e Teto Preto. Sua mais nova forma de expressão foi através de sua voz, criando o codinome L’Homme Statue com o futuro lançamento do primeiro álbum em parceria com Zopelar intitulado Ser, onde buscou retratar todos os seus sentimentos enquanto ser humano parte dessa comunidade dentro de um sistema que, na sua visão, ainda precisa de muita voz e retrocede enquanto necessidade aceitação e respeito.

Loïc também colaborou com a segunda compilação musical com a curadoria da plataforma mexicana ONDA MUNDIAL onde se destaca juntamente com outros brasileiros que colaboraram no projeto. Nós tivemos uma conversa muito engrandecedora com o artista que abrange temas importantes sobre sociedade, tolerância, além de todos os projetos nos quais ele trabalha:

Alataj: Olá Loïc, tudo bem? muito obrigada por nos receber. Você é francês e saiu da Europa para se aventurar no Brasil, um país com uma cultura diversa em todos os sentidos. Como foi o período de adaptação por aqui? Em algum momento pensou em retornar ao país de origem?

L’Homme Statue: O período de adaptação foi bem rápido para mim. Sempre falo que a cultura brasileira me lembra um pouco da minhas origens africanas (calor humano) e a Europa ao mesmo tempo. Acho que para mim esse foi país ideal para me desenvolver e crescer. Sinto somente falta da minha família, minha mãe mora atualmente na França, meu pai no Congo e, meu irmão no Canadá. Apesar disso, nunca pensei em voltar morar na França. Por mais que o contexto político não seja fácil e acolhedor, especialmente para pessoas LGTBQI+ e negras aqui, tento não deixar isso me fazer duvidar da minha jornada, pelo contrário, tento achar força na repressão/tensão para me empoderar mais!

Quando chegou ao Brasil, sua intenção era trabalhar com comércio exterior e em pouco tempo já estava se conectando à moda e arte como modelo, performer e músico, um caminho bem diferente. Você já sonhava em trabalhar com isso? Quais foram os desafios dessa transição?

A música e a arte sempre foi presente na minha vida. Pode parecer um pouco fácil demais responder isso, mas era o caso sim. Me lembro da coleção de vinil de músicas africanas, Jazz e Rap que meu pai guardava igual um tesouro no nosso apartamento na França. Meus pais sempre nos incentivaram a desenvolver nossa curiosidade (ler livros, fazer atividades esportivas diversas)… Eu treinava em nível nacional trampolim e esporte acrobáticos (8h-10h por semanas quando saía da escola) então, SEMPRE tive a consciência corporal e uma grande relação com o meu corpo desde jovem.

Me lembro até que tinha um sintetizador em casa, mas eu e meu irmão não sabíamos como funcionava. Um dia ele conseguiu e, se lançou o desafio de aprender a tocar piano sozinho. Tudo isso para dizer que a curiosidade artística sempre foi presente na minha casa.

A única coisa que acontecia é que na educação que recebi era lindo fazer arte, porém arriscado de viver disso. Então, admiramos a arte, mas como passatempo. Fui crescendo e me dei conta que DANÇAR , CANTAR, PERFORMAR eram as únicas coisas que me deixavam VIVO. Eu tentei me convencer na Sorbonne ou na USP que Economia, Marketing ia ser a resposta para mim, mas o destino colocou um outro caminho pessoal e acho essa jornada incrível.

Como bailarino, você participa ativamente de projetos relevantes no cenário brasileiro como Teto Preto e ODD, além de outros eventos. Como você avalia sua participação dentro desse cenário e como enxerga a atuação desses projetos no contexto geral da cultura musical no que tange à diversidade que eles pregam?

O engraçado é que não escolhi ser performer, isso quase chegou a mim. Me lembro sempre estar nas festas de olhos fechados e dançando até não poder mais parar até que um dia fui na Mamba Negra, e em seguida na ODD e me ofereceram um palco. Não cheguei pensando JÁ no meu papel dentro da cena, na verdade fui aos poucos ocupando o espaço e foi então que percebi que faltava sim pessoas pretas na cena. Cada vez que eu performo eu INVOCO toda minha ancestralidade. Não faço isso para ser “cool” ou para ter um “tema”, isso é quem sou e são as raízes que eu carrego. ESPALHAR ela através da minha arte foi algo natural para mim. Acho interessante misturar esse OXÍMORO, esse paralelo cultural (raízes africanas junto com a música eletrônica e espaços que ocupamos). 

O que a ODD, Mamba Negra e todos os coletivos fazem é fundamental para nossos corpos marginalizados na sociedade e é também importante ANOTAR que é grande passo à frente comparado a cena eletrônica internacional. Cada vez que vou em tour na gringa percebo que falta da representatividade na cena, não tem performers ocupando palcos e ainda falta muito em termos de inclusão. Nossa cena nacional serve muito de exemplo hoje em dia e, isso graças a coletivos como a ODD, Mamba Negra e festas independente, além de artistas que lutam diariamente.

ODD, 2017. Foto por Felipe Gabriel

Já como músico, você passou a utilizar o nome L’Homme Statue e está prestes a lançar seu primeiro álbum intitulado “Ser”, produzido em parceria com Pedro Zopelar. Conta pra gente sobre a escolha do seu pseudônimo e sobre o processo musical criativo da produção desse álbum?

A história sobre o nome L’Homme Statue vem da minhas origens. Sempre, repito SEMPRE que fui rodeado de estátuas na Costa de Marfim, no Congo, no Bénin e em todos os lares que tive de modo geral. Na cultura africana gostamos de representar nossos corpos de maneira visual: corpos pensativos, corpos trabalhando, corpos dançando. Uma coisa que sempre me fascinou nas esculturas africanas é a generosidade das formas corporais, além disso tem uma certa androginia nas estátuas, sinto que corpos masculinos e femininos se mesclam e não dá para definir quem é quem. SEMPRE gostei disso. 

O corpo é importante, não genitais! Quando comecei a modelar, ainda mais sem sobrancelha, recebi várias vezes comentários do tipo “parece uma estátua”… isso me fazia sorrir, me lembrava estátuas africanas da minha infância. Até o dia que falei “então serei essa estátua viva. Vou mostrar que estátuas também tem emoções”. Foi aí que chegou até mim esse novo nome de “L’HOMME STATUE”. A vida faz bem as coisas, ninguém sabe mas emprestei meu corpo a um escultor brasileiro da fábrica Behring no Rio para representar o corpo do Zumbi dos Palmares (que também vem do Congo). Acho isso surpreendente, como temos o poder de atrair as coisas na vida.

Sobre o processo do álbum, um dia durante uma tour de Teto Preto, eu cantei no backstage. Achei que estava sozinho no camarim então senti à liberdade de cantar alto e foi quando Zopelar ouviu a minha voz. Ele viu em mim um potencial que nem imaginava. Desde o fim de 2018 estamos nesse processo incrível que tá me fazendo crescer ainda mais como artista. 

Pra minha surpresa dança e música são irmãs, a mesma emoção que tenho através dos beats quando eu danço hoje consigo traduzir na minha voz.

Dentro da linha sonora que você propõe apresentar no álbum, quais foram suas referências musicais para construir e tirar do campo das ideias esse projeto?

Eu sinceramente amo todos os estilos músicas, inclusive sou contra o tipo de comentários do tipo: “Ah, você gosta de ouvir isso? Ou aquilo? Ata…” [risos]. Para mim tem algo de bom em tudo, tanto na cena underground quando na cena mainstream. Como falei um pouco antes, meu pai tem uma coleção muito grande de vinis que juntou há décadas. Ele adorava passar de um registro ao outro. Acho que isso desenvolveu o meu gosto musical eclético. 

Para esse álbum, eu, Zopelar e Maurício (meu guitarrista) queremos poder tocar pelo menos um grupo de pessoa com o gosto musical totalmente diferente. Nele, você encontrará influências rock (meu cantor favorito é King Krule), por exemplo!

Cresci ouvindo grupos como Destiny’s Child, cantores como D’Angelo , Richard Bona (baixista do Cameroun) ou Aaliyah. Adorei e adoro também o gospel ou rappers como Missy Elliott… então nesse álbum você encontrará minhas raízes africanas, vivências de um jovem LGTBQ+ preto de 25 anos, influências da música brasileira (pois estou apaixonado pela liberdade vocal e o universo do Milton Nascimento). Mas, também é importante notar que o talento do Zopelar como produtor e o amor dele pelo Jazz/Disco e a música eletrônica, junto com o groove do Maurício na guitarra, tudo isso traz um melting pot muito singular.

A temática do seu álbum diz sobre temas diversos dentro da vivência de um homem negro LGBTQI+. A inspiração para retratar seus sentimentos surgiu após sua chegada ao Brasil? Como você avalia o impacto de todo o seu trabalho dentro de uma sociedade que ainda tem muito a evoluir em relação ao preconceito à comunidade negra e LGBTQ+?

Não me vejo escrever sobre temas que nunca vivi ou realidade opostas a minha. Por isso que desde o início desse projeto faço questão de escrever sobre minha vivência em cada música ( com meu jeito de escrever inclusive estrangeiro ou com frases um pouco erradas). Escrevo como eu falo e, o que vivo e sinto. Ser um jovem LGTBQI+ preto não é a única coisa que me define. Antes de tudo sou um SER. 

Por isso que o álbum inclusive se chama “Ser”. A sociedade me lembra todo dia meu corpo, a minha cor, a minha sexualidade… a anedota sobre esse álbum é que os textos não foram escritos a pouco tempo. Todas as letras que tenho são cartas abertas, questionamentos da sociedade, da minha família, de mim que eu guardo há ANOS. Algumas letras como “Desejos” ou sobre o amor livre tem mais de seis, sete anos.

Ainda não consigo medir o impacto do meu trabalho, pois estou cada dia evoluindo e me conhecendo, porém ocupar espaços ou estar em jornais como a Folha de São Paulo ou Ela do Jornal da Globo mostra que sim é importante estarmos aqui hackeando cada cena.

Mesmo em uma sociedade que ainda apresenta intolerância e preconceito em relação à diversidade, ainda mais em um momento político delicado nesse aspecto, você nota algum tipo de evolução em relação à aceitação e inclusão das pessoas enquanto seres humanos?

Não sei se porque eu cresci ou se porque estou cada vez mais entendendo a sociedade e o ser humano… mas, a minha resposta seria justamente o contrário. Tenho a sensação, às vezes, que estamos cada vez mais indo pra trás. Vendo comentários nas redes sociais sobre corpos marginalizados, percebo que e vejo  pessoas que se permitem faltar respeito com outros, insultar pessoas desconhecidas, criticar sem argumento. Tudo isso me dá até medo.

Acho que é necessário inculcar pras próximas gerações a noção do respeito e da empatia.

Sempre falo para minha família que eu faço arte porque é a única coisa que sei fazer. Mas, atualmente entendo que ocupando cenas, lugares, palcos e shows nacionais ou internacionais meu trabalho não é só me produzir dançar, é também provocar um sentimento felicidade ou qualquer emoção. Hoje meu trabalho é quase fundamental para abrir as mentes e incentivar as gerações futuras a se empoderar e ter a coragem de acreditarem também em si independentemente do que os outros podem falar.

Para finalizar, uma pergunta pessoal. O que é música para você?

Simplesmente TUDO. Não tenho outras respostas. Respondi isso de maneira tão rápida. É o que me dá vida. O que me permite aguentar o ser humano hoje em dia ( pois sim as vezes na rua pessoas xingam você de graça por estar vestindo tal ou tal roupa), ter os fones de ouvidos as vezes faz SIM uma barreira para não ouvir a opinião alheia.

Música hoje é também o meu trabalho, quando eu não danço em casa, eu performo no palco. Quando eu não performo eu estou no estúdio com Zopelar. Quando não estou no estúdio, eu ensaio e crio com Maurício. Quando eu não crio eu canto sozinho por prazer (até quando eu dou água para minhas plantas, eu canto para elas)… não tem UM dia sem sair ou entrar uma nova musical de corpo e alma.

Vou até concluir com uma reflexão. Hoje vejo o impacto que isso pode ter na nossas vidas com a pandemia do Coronavírus, por exemplo. Isso nos afeta diretamente: shows cancelados, parados ou remarcados. Os artistas terão que se apoiar cada vez mais e/ou as vezes repensar a cena para nos manter financeiramente. Mais uma vez, LUTAR e se ADAPTAR ritma o nosso cotidiano.

A música conecta.

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