As gravadoras de música eletrônica no Brasil formam uma rede essencial para entender como a cena se mantém ativa e diversa. Ao longo da última década, diversos projetos ajudaram a consolidar uma base sólida de artistas e amadurecimento de gêneros, do House ao Techno, criando condições e abertura para lançamentos que carregam identidade. Ao contrário de grandes distribuidoras ou plataformas de streaming, que operam a partir de algoritmos, métricas e quantidade, esses selos apostam em outro tipo de valor: a construção de um catálogo coerente, feito a partir de um trabalho cuidadoso de curadoria próxima e acompanhamento direto dos artistas, funcionando como espaços que preservam a autonomia criativa e documentam a evolução do som produzido no país.
Dar forma a esses projetos exige lidar com muitas frentes de trabalho ao mesmo tempo. Gerir uma gravadora é uma tarefa complexa, pois é como gerir uma empresa, que envolve gestão, curadoria, planejamento, custos, comunicação, tarefas que vão do cuidado com a mixagem e a master ao design de capa, do cronograma de lançamentos à gestão de redes sociais. Além disso, as labels precisam constantemente buscar e operar modos de financiamento, como pré-vendas, parcerias, vendas diretas e edições limitadas, ao mesmo tempo em que precisam manter a coerência de sua identidade, sendo assim, tudo passa por decisões que moldam não só o catálogo, mas também o discurso de um selo e a maneira como quer ser reconhecido dentro e fora do país.
Em meio a tudo isso, existe um desafio constante: como seguir produzindo com qualidade em um cenário de poucos recursos, onde o retorno financeiro raramente acompanha o montante investido?
Essa equação é a espinha dorsal no que diz respeito a tratar a função de uma gravadora como algo mais complexo do que simplesmente “lançar faixas”. Na maioria dos casos, o processo de distribuição de faixas é feito por plataformas como LabelWorx, Symphonic ou Proton, que conectam os catálogos a lojas digitais e plataformas de streaming como Beatport, Traxsource e Spotify, em troca, essas empresas retêm uma porcentagem em torno de 20% da receita líquida de cada venda ou reprodução, antes mesmo da divisão com o artista. Considerando que o valor pago por stream gira em torno de US$ 0,003 a US$ 0,005, mesmo lançamentos com boa performance podem não se tornar financeiramente expressivos a ponto de sustentar o investimento feito para que todo esse sistema funcione.
Por isso, muitos selos recorrem a alternativas que ofereçam melhor margem de retorno. O Bandcamp é hoje uma das principais plataformas nesse sentido: ele retém em média 15% do valor das vendas digitais e repassa o restante diretamente ao responsável pela publicação. Durante as campanhas conhecidas como Bandcamp Fridays, realizadas periodicamente desde 2020, essa comissão é zerada por 24 horas, permitindo que 100% do valor da venda vá para quem produziu o conteúdo. Esse modelo também estimula um público mais engajado, disposto a apoiar financeiramente o trabalho que consome, e reforça a sustentabilidade de selos independentes.
Outros formatos de renda aparecem na forma de edições físicas limitadas, licenciamento de faixas para sincronização em vídeos e filmes, ou realização de showcases e eventos próprios que ajudam a financiar novos projetos e, muitas vezes, fomentam a cultura da música eletrônica fora dos grandes centros e promovem conexão e intercâmbio entre artistas com a mesma visão criativa.
Há, contudo, uma beleza particular nesse processo entre prática, cuidado e desafio. São projetos que, apesar da necessidade de equilibrar idealismo e realidade diariamente, ajudam a manter viva a ideia de que é possível sustentar processos criativos genuínos. Quando um selo decide investir em um artista ou apostar em uma sonoridade menos previsível, além de revelar talentos, eles projetam e preservam identidades coletivas, seja o som de uma cidade, o olhar de uma geração, o recorte de uma época ou a importância da diversidade. Eles testam formatos, estimulam colaborações e dão visibilidade a projetos que talvez não encontrassem espaço em estruturas de maior evidência midiática. Em um mercado global que frequentemente empurra fórmulas homogêneas, direcionadas a músicas mais “populares” e facilmente digeridas por quem não está acostumado a sair do óbvio que é imposto, muitos selos nacionais assumem o risco de desafiar isso.
Esse amadurecimento também ajudou a reposicionar o país dentro do circuito global. Gravadoras brasileiras passaram a ter presença regular em lojas internacionais e em catálogos de DJs e produtores estrangeiros. Em parte, isso é resultado de um avanço técnico, com produções cada vez mais refinadas, mas também de uma curadoria mais consciente sobre o que significa representar o som do Brasil fora daqui. Além de terem optado por não reproduzir tendências, muitos selos apostaram em incorporar influências externas à sua maneira, combinando-as às referências locais e propondo novas assinaturas.
Entre alguns exemplos de trabalhos de sucesso em atividade, podemos citar a Cocada Music, que representa uma das pontes mais bem-sucedidas entre o Brasil e o circuito internacional. Criada por Leo Janeiro e Roland Leesker (um dos nomes por trás da Get Physical Music), a Cocada aposta em uma curadoria que combina elegância e calor, explorando nuances de House, Disco, Funky e Deep, sempre com referências às raízes brasileiras e latinas. Já a Gop Tun Records, extensão natural da festa homônima em São Paulo, mantém uma linha curatorial voltada ao House e Disco em suas vertentes mais refinadas de forma tão bem estruturada, que você ouve e pode identificar que é uma curadoria do selo.
Outras labels brasileiras optam por caminhos mais experimentais, reafirmando a diversidade da cena. A Mamba Negra Records, derivada do coletivo e festival, tornou-se um símbolo dessa liberdade, lançando projetos disruptivos como o Teto Preto e artistas que desafiam as fronteiras entre música eletrônica, performance e política. Já a Subliminar Records reflete o olhar de artistas da nova geração com a intenção de abrir espaço para quem está no mesmo caminho. O lema “We don’t like genres, we like good music” resume bem o espírito do selo: reunir produtores em torno de uma curadoria que valoriza autenticidade e qualidade sonora, sem se prender a estilos fixos.
Entre os selos de atuação mais conceituados em relação à grandes espaços da cultura clubber nacional, Warung Recordings e D-EDGE Records exemplificam como uma gravadora pode funcionar como extensão natural de uma pista. Fundada em 2012, a Warung Recordings é uma das mais premiadas do país e traduz com fidelidade o DNA sonoro de seu club, lançando faixas que transitam entre o House melódico e o Progressive, além de dar visibilidade a nomes nacionais que carregam a identidade da marca. Já a D-EDGE Records, ligada a um dos clubs brasileiros mais reconhecidos internacionalmente, mantém uma curadoria que reflete a amplitude das sonoridades do espaço, explorando House, Techno e Minimal através de produções entregues por residentes e convidados.
A Noise Music representa outro capítulo importante da história. Com mais de duas décadas de atividade, passou por diferentes gerações e momentos da cena, do vinil ao digital, acumulando um catálogo extenso que ajudou a consolidar o Techno brasileiro no circuito global. Em outra direção, a Boston Medical Group se destaca pela ousadia ao explorar campos mais abstratos, com lançamentos que vão do Ambient ao Experimental. O país também tem representantes sólidos no universo do Progressive House. A Transensations Records e a Timeless Moment são dois exemplos de selos que projetaram artistas brasileiros para o exterior e ajudaram a consolidar uma estética reconhecível, marcada por arranjos densos e atmosfera emocional.
Já a Bliss Records, com base em Belo Horizonte, atua em um espectro mais introspectivo, alternando entre House, Tech House e Electro. Seu catálogo revela artistas com produções densas e precisas, muitas vezes voltadas a uma estética de produção mais avançada. A Breezy Records, expande essa linha ao abraçar Indie Dance, Cosmic House, Electro e Techno, sempre com foco em sons de pista que priorizam groove. A Sintoniza Records segue um caminho semelhante, mas com uma abordagem mais solar, apostando no desdobramento dos grooves da House Music que transitam entre o alegre e o introspectivo, também valorizando a busca por novos talentos.
Com foco em sonoridades que remetem às décadas de 80 e 90, labels como a Synce ou a Heels of Love, fundada por Eli Iwasa e Priscila Prestes, adicionam um quê de nostalgia às criações, explorando o passado para desenhar novas possibilidades de som para o presente. Já a Massa Records, criada por Renato Cohen e Fernando Moreno, atua como plataforma de lançamento majoritariamente direcionada para novos produtores brasileiros, reforçando o papel das gravadoras como ferramenta de descentralização e fortalecimento da cultura local. A lista é orgulhosamente grande, com outras marcas também exercendo um papel fundamental a partir de suas propostas e nichos, como no caso da Melodic Therapy, Me Gusta Records, Otherwise Records, Laguna Music, Radiola, Tropical Twista, dsrptv, Jardineira Records e muitos outros.
O conjunto desses e diversos outros selos forma um movimento preciso de como a cena vem se desenvolvendo de maneira tecnicamente competente, esteticamente diversa e culturalmente comprometida com o protagonismo latino-americano.
São histórias de dedicação, sensibilidade e visão de marcas que, independente de grandes estruturas, fazem da música eletrônica brasileira um espaço de criação em constante expansão. No fim das contas, o êxito não pode ser medido apenas por números ou alcance, mas também pela densidade cultural que é capaz de deixar no caminho, pela capacidade de criar sentido e continuidade para a cena local e pela manutenção de um repertório que enaltece a música eletrônica que tem sido produzida no país.