Poucos momentos são tão decisivos na trajetória de um artista quanto aquele em que alguém de fora enxerga um caminho que ele próprio ainda não havia considerado por completo. No caso de Loco Dice, esse ponto de inflexão tem data, lugar e nomes: o verão de 2002 em Ibiza, e o incentivo direto de figuras como Timo Maas — relação que alteraria de forma permanente o rumo de sua carreira e, anos depois, culminaria na criação da Desolat.
Até o início dos anos 2000, Dice já era um nome estabelecido dentro do hip-hop europeu. Atuava como DJ e rapper desde a segunda metade dos anos 90, com turnês internacionais e abertura de shows para grandes nomes do rap norte-americano, como Snoop Dogg, Ice Cube, Jamiroquai e R. Kelly. Sua relação com a música era profundamente rítmica, ancorada no break, no baixo e na fisicalidade da pista. Ainda assim, a música eletrônica estava longe de ocupar um papel central.
A virada aconteceu em 2002, após uma temporada em Ibiza. Inserido em um ambiente onde o house e o techno dominavam a narrativa noturna da ilha, Dice passa a receber estímulos diretos para explorar esse território com mais seriedade. Timo Maas, já consolidado como produtor e DJ de alcance internacional, foi uma das vozes mais importantes nesse processo, incentivando-o a mergulhar no house e no techno como uma expansão natural de sua bagagem musical. Sven Väth também teve papel relevante nesse encorajamento, mas é com Maas que a conexão se torna prática e imediata.
No mesmo ano da transição, Loco Dice lança Phat Dope Shit (PDS), pela Four:Twenty Recordings — uma faixa que traduz muito bem a fusão entre suas raízes no hip-hop e as estruturas do techno mais minimalista. Ainda em 2002, Dice assina o remix de Help Me, de Timo Maas. Essa collab que, além de solidificar sua credibilidade no novo circuito eletrônico, evidenciou o elo entre ambos. O incentivo de Maas ajudou a abrir novas portas e a consolidar a transição de Dice para a música eletrônica.
Em paralelo, Loco Dice começa a se firmar em residências importantes, como a do DC-10, em Ibiza, entre 2002 e 2006. Foi principalmente nessa pista que ele desenvolveu seu estilo único de mixagem, sempre marcado pela fusão entre house, techno e a estrutura do hip hop. Sua maneira de tocar desafiava os padrões da cena na época e, ao mesmo tempo, o consolidava como um artista com uma assinatura sonora realmente diferente dos demais.
A parceria com Martin Buttrich, iniciada em 2002, também teve papel fundamental nessa construção. Parceiro de estúdio de Dice desde 2002, Buttrich, conhecido por sua proficiência técnica, trouxe a solidez necessária para transformar as ideias de Dice em produções de impacto. A ligação indireta com Timo Maas se aprofunda aqui: Buttrich havia trabalhado por anos ao lado de Maas na distribuição Peppermint Jam, acumulando mais de uma centena de co-produções e remixes, além de uma indicação ao Grammy em 2003. Esse contexto foi fundamental para dar sustentação à visão artística que Dice começava a desenhar.
A fundação da Desolat, em 2007, pode ser lida como consequência direta dessa cadeia de relações. Criada por Loco Dice e Martin Buttrich, a gravadora surge como a institucionalização de uma linguagem que começou a ser moldada cinco anos antes, a partir daquele verão em Ibiza. Mais do que um selo, a Desolat nasce como um espaço para consolidar uma estética baseada em groove, identidade rítmica e curadoria — princípios que dialogam diretamente com a formação de Dice e com os estímulos que recebeu no início de sua transição.
O álbum 7 Dunham Place (2008) foi a primeira grande declaração da Desolat. O título faz referência direta ao endereço do estúdio em que foi gravado, no Brooklyn, enquanto a capa — a foto da porta rabiscada do espaço — traduzia visualmente uma estética crua, urbana e claramente conectada ao hip-hop. Faixas como La Esquina exemplificam a fusão de piano house com minimal, trazendo uma sensibilidade que ainda respira a alma das ruas e clubes de Nova York.
Importante pontuar que a conexão com Timo Maas nunca se perdeu. Em 2016, Maas esteve entre os convidados para remixar material do box Underground Sound Suicide. Dois anos depois, foi a vez de Loco Dice retribuir, lançando seu remix de Dark Society, de Maas, pela própria Desolat. O que se desenha, olhando em retrospecto, é um caso claro de como o incentivo certo, no momento certo, pode redefinir uma trajetória inteira. Sem o empurrão de Timo Maas em 2002, talvez Loco Dice tivesse permanecido orbitando outros territórios. Com ele, construiu uma assinatura própria, encontrou seu espaço no house e no techno e fundou uma das labels mais influentes do gênero.
No próximo dia 29 de dezembro, Loco Dice traz essa bagagem histórica ao palco Ritual do Surreal Park, como um dos headliners do Surreal 4 Years Festival, dividindo o palco com nomes como Honey Dijon, Ratier e Marco Faraone na noite que ainda conta com Vegas, Liquid Soul, Sweely e mais. Seu set no evento será uma celebração dessa jornada que tem raízes profundas no hip-hop e que o levou a se tornar um dos nomes mais influentes do tech house mundial. Esteja na pista!