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A música conecta

Som e distopia: como a estética cyberpunk moldou movimentos na música eletrônica a partir dos anos 80

Por Elena Beatriz em Artigos 18.11.2025

Quando os anos 80 começaram, o mundo parecia finalmente viver o futuro que projetara nas décadas anteriores. Os primeiros computadores pessoais chegavam às casas, os sintetizadores digitais substituíam as grandes máquinas analógicas e a promessa de um novo tempo tecnológico se tornava palpável e utópico ao mesmo tempo —- como na projeção de como seria o ano de 2015, no filme De Volta Para o Futuro. Entretanto, esse progresso trouxe também a sensação de vigilância, solidão e dependência dessas máquinas. Essa ambiguidade entre a euforia e o medo, moldou toda uma geração de artistas, escritores e músicos, que encontraram na distopia uma forma de refletir o tempo em que viviam.

O termo “cyberpunk” surgiu em 1980, em um conto do escritor Bruce Bethke, e ganhou forma definitiva com Neuromancer (1984), de William Gibson, que descrevia um mundo dominado por megacorporações, hackers e realidades virtuais. A literatura, o cinema e a música começaram a dialogar em torno dessa visão: a de um futuro distópico em que o homem e a máquina já não se distinguiam. Em 1982, o filme Blade Runner, de Ridley Scott, deu imagem e som a esse imaginário. A trilha de Vangelis, produzida em equipamentos como o Yamaha CS-80, formando melodias que misturavam certa melancolia aos sintetizadores de música eletrônica, em que o humano e o artificial coexistiam em proporções quase inseparáveis, era sonoridade que refletia a transição de uma era industrial para uma digital.

Enquanto Hollywood projetava o cyberpunk nas telas, a indústria da música passava por sua própria revolução tecnológica. Em 1980, a Roland lançava a TR-808, a primeira drum machine totalmente programável com timbres artificiais. Três anos depois, viriam a TR-909 e o protocolo MIDI, que permitia sincronizar instrumentos e computadores. No mesmo ano, o Yamaha DX7 inaugurava a síntese digital FM, gerando timbres metálicos e precisos que definiriam o som dos 80s. Essas máquinas transformaram o processo de criação: o artista podia compor, editar e gravar em casa, sem depender de grandes estúdios.

O resultado foi operacional e filosófico, por assim dizer, pois o músico deixava de apenas interpretar as canções e manusear equipamentos analógicos e passava a ser programador dessas criações. A relação entre homem e máquina, antes simbólica, se tornava literal. Os instrumentos se tornaram extensões do corpo e da mente, e o som, um espelho da sociedade digital em formação.

Nomes como Kraftwerk, Gary Numan e a Yellow Magic Orchestra deram forma a essa nova era. O grupo alemão, pioneiro na automatização da performance, antecipou o cotidiano digital em The Man-Machine (1978) e Computer World (1981). Gary Numan, no Reino Unido, levou esse sentimento para o pop em Cars e Are ‘Friends’ Electric?, refletindo o isolamento urbano e o convívio constante com o mundo automatizado. Já a Yellow Magic Orchestra, formada por Ryuichi Sakamoto, Haruomi Hosono e Yukihiro Takahashi, incorporou sons de videogame e cultura japonesa, criando composições que pareciam descrever um mundo tecnologicamente encantado.

Enquanto esses artistas expandiam os limites do que se entendia por música eletrônica, outra forma de expressão tecnológica começava a seguir pelo mesmo caminho, só que nas telas. Os videogames dos anos 80, como o Nintendo Entertainment System e o Atari 2600, eram baseados em chips de 8 e 16 bits e só podiam reproduzir poucos canais de áudio simultaneamente, portanto, os produtores precisavam criar melodias diretas e repetitivas para as trilhas, sustentadas por linhas de baixo curtas e ritmos constantes. Essa simplicidade forçada deu origem a timbres metálicos e sincopados que se tornaram uma assinatura daquele período, inspirando tanto a trilha dos jogos quanto artistas fora deles. 

O som sintético dos consoles, a exemplo de Space Invaders (1978), Pac-Man (1980), as primeiras versões de Donkey Kong (1981) — que posteriormente adotou o uso de sintetizadores com as trilhas de David WiseTetris (1984), Wizard and Warriors (1987) e Street Fighter II (1991), passou a ser associado à ideia de modernidade e velocidade, refletindo a experiência cotidiana de uma geração que começava a conviver mais intimamente com a tecnologia digital.

Nos anos 90, a fusão entre música eletrônica e videogames se tornou direta. Wipeout 2097 (1996), lançado para o PlayStation, apresentou trilhas de The Prodigy, Underworld, Chemical Brothers e Orbital, aproximando o ritmo das pistas do ambiente futurista das corridas em alta velocidade. Deus Ex (2000) usou Ambient e batidas sombrias para narrar um enredo de conspiração e vigilância, enquanto Rez (2001) transformou o próprio ato de jogar em experiência sonora, onde cada movimento do jogador alterava a música, criando uma sensação de imersão e sinestesia. Em Mirror’s Edge (2008), o artista sueco Solar Fields criou faixas baseadas em Ambient e Downtempo, que acompanhavam a trajetória da personagem.

Era uma via de mão dupla: a música eletrônica influenciava os games e os games influenciavam a música eletrônica. Dessa mistura entre nostalgia tecnológica e estética distópica surgiria, no final dos anos 2000, um gênero inteiro dedicado a reinterpretar o som dos anos 80 sob a ótica contemporânea: o Synthwave. Fortemente inspirado por trilhas de filmes, jogos e séries da década, o Synthwave recuperou o brilho analógico dos sintetizadores vintage e as batidas programadas das Drum Machines para criar um passado alternativo do futuro. Projetos como FM-84, Timecop1993, Kavinsky, Carpenter Brut, Perturbator e Mitch Murder impulsionaram esse movimento, associando o som retrô a visuais neon, tipografias digitais e narrativas de ficção científica.

O sucesso do jogo Hotline Miami (2012), por exemplo, foi decisivo para popularizar o gênero com suas faixas rápidas e eletrificadas, compostas por artistas do circuito underground como M O O N  e El Huervo, que recriaram a intensidade dos filmes de ação e dos arcades, e levaram uma geração de ouvintes a descobrir o fascínio pelo passado digital. A mesma lógica se repetiu no cinema com Drive (2011), cuja trilha liderada por Kavinsky e College redefiniu o uso dos sintetizadores como elemento narrativo. 

A partir desse ponto, a cultura do som cyberpunk deixou de ser apenas um símbolo de distopia e passou a ser parte da memória. O fascínio pelo que o futuro dos 80s prometia, e nunca se concretizou totalmente, se tornou o combustível de um gênero que vive de revisitar aquele otimismo ambíguo. O Synthwave funciona como um espelho: por um lado, celebra a invenção tecnológica; por outro, revela a saudade de uma época em que o futuro ainda parecia ter forma.

Esse movimento se estendeu para os videogames, produções digitais e para as pistas do século XXI. Nos games, Cyberpunk 2077 (2020) talvez seja o exemplo mais recente dessa trajetória. A trilha sonora assinada por Grimes, SOPHIE, HEALTH, Run The Jewels e Nina Kraviz, que se tornou uma personagem do jogo, sintetiza quarenta anos de experimentação entre som e tecnologia, englobando o fascínio digital dos 80s, a força industrial dos 90s e o design sonoro imersivo do século XXI. Séries como Love, Death & Robots (2019) dão continuidade à fusão entre som e ficção científica, agora alimentada por inteligência artificial e visualização de dados. 

Enquanto isso, novos artistas passaram a investigar a relação entre inteligência artificial, som e imagem de forma mais conceitual. A compositora Holly Herndon desenvolve sistemas de aprendizado de máquina para criar harmonias e vozes sintéticas, questionando os limites da autoria humana. Já o artista Refik Anadol usa redes neurais para traduzir dados em paisagens visuais e sonoras que parecem emergir de um sistema consciente. Max Cooper, por sua vez, leva essa convergência para o palco, combinando visuais generativos e composições eletrônicas que exploram tanto a forma quanto a emoção. Suas apresentações funcionam como experiências imersivas em que som e imagem se entrelaçam para conduzir ideias de tempo e percepção, que unem ciência, emoção e design digital.

Quarenta anos depois, o conceito de distopia já não anuncia o futuro, ele o habita. A evolução digital se tornou parceira de criação e a música eletrônica continua sendo o ponto de encontro entre esses mundos. De Vangelis à Refik Anadol, ela preserva o mesmo impulso de transformar o que é mecânico em experiência sensível, mostrando que, mesmo em meio ao ruído das máquinas, o som ainda é a forma mais humana de imaginar o futuro.

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