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A música conecta

Alataj entrevista Miss Kittin

Por Lau Ferreira em Entrevistas 29.06.2021

*Com participação especial de Fernando Moreno

Pioneira no início de um novo milênio, a DJ, produtora, cantora e compositora francesa Caroline Hervé, mais conhecida como Miss Kittin, foi uma das protagonistas de um movimento musical e estético que brilhou intensamente por alguns anos: o Electroclash, que misturava estilos como Electro, New Wave, Synth Pop, House, Techno, Italo Disco e Pós-Punk. 

Repleto de ironia e fashionismo, o movimento explodiu no começo dos anos 2000, mas o fogo logo baixou, e boa parte dos seus expoentes acabou não sabendo se renovar. Com ela, foi diferente. Miss Kittin continua na ativa, trabalhando sua marcante identidade musical — perceptível principalmente através de seus vocais e seu sotaque inconfundíveis —, lançando álbuns e colaborações de sucesso.

Com a ajuda de Fernando Moreno, da SmartBiz (empresa que agencia a artista no Brasil), batemos um papo bastante aberto, franco e honesto por e-mail com a artista, que se revela uma pessoa forte, independente, sábia, madura e ao mesmo tempo tímida, introspectiva e avessa aos holofotes.

Falamos sobre o surgimento e queda do Electroclash, seu pioneirismo, bastidores de seu trabalho, as collabs com ANNA e Hot Since 82, relação com o Brasil, rotina durante a pandemia, o novo álbum com sua alma gêmea musical — o DJ The Hacker, com quem ela dividiu os primeiros sucessos —, o lançamento de sua primeira masterclass e os artistas que ela mais tem curtido ouvir nos últimos tempos. Leia abaixo:

Alataj: Embora você esteja envolvida com Dance Music há muito tempo, foi durante os tempos do Electroclash que seu nome começou a se tornar conhecido mundialmente. Como era estar envolvida em um novo estilo e uma nova cena?

Miss Kittin: É uma pergunta difícil. Eu e o The Hacker só entendemos isso anos depois. Estávamos produzindo Electro, inspirados pelo verdadeiro electro de Detroit (AUX88, Underground Resistance, Juan Atkins, Dopplereffekt…), electro holandês, como I-F e o crew da Clone Records.

A palavra Electroclash surgiu de repente por um cara de Nova York, Larry Tee, e virou uma onda, um gênero, tocava em desfiles de moda, etc. Para ser sincera, nós não ficamos confortáveis com isso, queríamos continuar com as raízes em vez de nos tornarmos um produto da moda. Acho que nossos fãs entendem e respeitam muito isso. Paramos de fazer turnês para focar no DJing, nos afastarmos um pouco. Foi uma decisão sábia. Olhando para trás, claro, ficamos muito honrados por sermos vistos como contribuintes para um novo gênero musical.

Além de ter características sonoras bastante particulares, o Electroclash tem características estéticas e comportamentais próprias, como atitude, hedonismo e crítica na forma de ironia e acidez. O que você pode dizer sobre todo este movimento e qual é o seu principal legado?

Eu nunca rotulei minhas músicas como Electroclash, então não posso responder à pergunta. Como eu disse, para mim sempre foi uma mistura de Electro, New Wave, House, Techno, Electro e Italo Disco. 

Nossa faixa icônica Frank Sinatra foi uma crítica ao “bling bling” [estilo ostentação], que muitas vezes era mal interpretada como o contrário. Éramos um bando de ravers que considerávamos cocaína e limousines o nosso pior pesadelo, preferíamos festas ilegais na floresta. Essa é a maior ironia, fomos amaldiçoados pela nossa própria música — é engraçado apesar de tudo. Agora eu não me importo, sou grata por ter conseguido escrever músicas icônicas e aceito a maldição que vem com isso.

Uns dez anos atrás, eu tive um professor que dizia que hoje em dia é quase impossível ser pioneiro, porque tudo que podia ter sido criado na música, já foi. Ainda há espaço para criação de novos gêneros que realmente tragam coisas novas?

Acho que sim, e estou animada para acompanhar o próximo. As possibilidades são infinitas, mesmo que seja uma reinvenção do que já foi feito, o que é sempre o caso.

Quais foram as dificuldades que você teve que enfrentar como uma das primeiras DJs do sexo feminino naqueles tempos? 

A maior dificuldade foi passar de um mundo de DJ anônima, pelo qual era apaixonada — em que até pedir um autógrafo era uma ofensa —, para um mundo de DJ rockstar com pessoas tirando fotos e querendo te tocar fisicamente. Ainda hoje, com o aumento das mídias sociais e smartphones, é difícil lidar. Essa nunca foi minha concepção de festa ou de ser artista, por mais estranho que isso possa parecer para pessoas que querem ser amadas e admiradas. Eu nunca quis exposição, nunca foi meu sonho, eu só queria tocar e produzir música, e nunca esperei sucesso de nenhuma forma.

Como mulher, você é fisicamente mais vulnerável, mais fácil de ser alcançada, vista como uma fantasia, como uma amiga ou, pior, como uma amante. As mulheres sempre foram vistas como um objeto de desejo em primeiro lugar, sexualizadas. Não é uma escolha, é um grande fardo e uma luta perpétua para mudar mentalidades. Portanto, claro que sofri esse tipo de discriminação e com tudo que vem a partir disso. O que mudou é que agora esse tipo de comportamento não é mais tolerado, é punido e é permitido falar sobre. Antigamente, não era. Estávamos sozinhas com esses problemas, nosso grupo não nos protegia, tínhamos que engolir, focar no trabalho, trabalhar muito, ignorar as críticas e conquistar respeito dessa forma. Funcionou para mim, mas o preço foi grande. O preço do silêncio e do isolamento.

Não vou dizer que isso me tornou mais forte, pois ainda tenho cicatrizes que tento curar. Digamos que eu sobrevivi. Agora a nova geração [de mulheres] pode assumir essa luta. Elas jogam no mesmo campo que os homens, mesmo que ainda tenha um longo caminho a percorrer.

Você foi sem dúvida uma pioneira, que lançou uma tendência. E diferentemente da maioria dos big names do Electroclash, você conseguiu manter-se atual e relevante, depois de tanto tempo. Qual o seu segredo?

Eu não tenho conselhos para dar. Tento ter uma visão global, com os pés no chão. O que eu faço, crio e vivo é resultado de quem eu sou, dos meus valores? Tenho uma vida que se adapta às minhas necessidades ao invés da vida que gostaria de ter? Muitos dos nossos desejos estão distantes das nossas necessidades mais profundas e acabamos, infelizmente, frustrados.

Você aprende isso com idade e experiência. Portanto, todos nós temos que viver nossas experiências para nos conhecermos, ninguém pode fazer isso por você. Você pode ler todos os livros espirituais, aceitar todos os conselhos do mundo e ainda assim não funcionará para você. Com a música é a mesma coisa. Eu sigo o meu instinto, não tenho medo de errar ou falhar, não tento agradar, copiar ou me encaixar. Cultivo minha independência e minha curiosidade o tempo todo, isso me mantém segura. Não é algo fácil de se fazer, mas é gratificante.

Quando você e ANNA lançaram Forever Ravers, foi muito legal ver o depoimento dela de como era sua fã e lembrava de ver você na TV brasileira, quando veio tocar aqui no Brasil no extinto clube Lov.e. Como surgiu sua colaboração com ela?

É uma história maravilhosa. Eu não a conhecia, apenas suas produções, e recebi um e-mail de seu manager. A faixa com certeza era boa, mas na época eu não queria começar uma nova colaboração. Por alguma razão, eu aceitei, e rapidamente no outro dia eu me arrependi: “Ah, não, fechei outra colaboração…”. E eu não poderia voltar atrás. Decidi fazer rápido, e acabei vindo com os vocais gritados, carregados de energia rave.

Não pensei que ela iria gostar, ela estava em turnê e eu não recebi uma resposta imediata. Mas ela gostou. Eu estava em turnê no Brasil quando ela respondeu. Sempre fico muito insegura ao enviar meu trabalho, sempre penso que não está bom o suficiente. Todo mundo ao nosso redor adorou. É mais uma prova do poder da intuição: ter aceitado quando eu não queria, ter escrito as linhas fortes.

Mais tarde nos encontramos, e imediatamente nos conectamos em um nível profundo. Tenho muito orgulho e gratidão por tê-la conhecido; ela é maravilhosa, um grande espírito, além de muito talentosa.

Você já esteve no Brasil muitas vezes. Como é a sua relação com o país? Alguma lembrança memorável?

Eu sempre falo: quando você chega no Brasil, é como se tivessem acabado de acender a luz. Tudo é vívido, as cores são mais intensas. Conheci pessoas incríveis que viraram amigos, estive em lugares que nunca imaginei que veria na minha vida. É um dos poucos lugares que me tocam muito e sempre fico ansiosa para voltar. Tenho muitas lembranças memoráveis — muitas festas incríveis e, é claro, muitas histórias que devem permanecer privadas. As que vêm à mente no momento, não posso contar!

Além de DJ e produtora, você também é cantora, e sua voz é uma marca registrada. Quando um artista te convida para uma collab, você é mais solicitada para cantar e compor a letra, ou, igualmente, participar de todo o processo de produção? 

Geralmente, me mandam a faixa e eu componho por cima. Fecho os meus olhos e vem uma imagem — esse é o tema, é como se a música me contasse qual é a letra. Todas as vezes que tentei enviar os vocais primeiro não funcionou. Os músicos geralmente não sabem o que fazer com eles, não é natural que os técnicos tenham uma visão vocal.

O que as pessoas não sabem é que eu escrevo a letra, claro, mas há todo o processo de gravação, para aí selecionar as partes certas, colocá-las no lugar certo da música, pensar onde os vocais são necessários e onde devo manter instrumental. Em seguida, trabalho na textura da voz e nos efeitos que dão o sabor final à música. Efeitos como reverb ou delay mal colocados e a música fica mediana. Todos esses detalhes necessitam muito do meu tempo e trazem a assinatura Kittin — que não é apenas o meu sotaque, minhas palavras e minha voz.

E como foi a colaboração com o Hot Since 82?

Eu amo o Daley [Padley]. Ele já me chamou para tocar muitas vezes em sua festa em Ibiza. É um cara gentil, que trabalha com ética e respeito, tendo construído seu caminho com retidão, o que o fez chegar tão longe. É um exemplo de gestão de carreira, com gentileza e humildade.

Foi muito natural dizer sim. Ele é um grande fã de Star Wars, então pensei em fazer uma pequena homenagem com a nossa música. É uma faixa engraçada e doce, ter a letra de Star Wars nela fez toda a diferença, por mais louca que a ideia parecesse quando eu a tive.

Nesses tempos difíceis, você tem sido bastante convocada para as novas experiências de apresentações em palcos digitais. O que você tem achado da experiência? Além de uma alternativa para o momento atual, é algo que tem futuro?

As pessoas precisam se reunir desde o início dos tempos. Será incrível quando pudermos começar de novo depois de tempos tão desafiadores de medo e isolamento. Não sou fã de palcos digitais com câmeras em você o tempo todo, mas foi o que garantiu a conexão com as pessoas que estão em casa, então foi muito útil. Melhor do que nada.

Sabemos que você valoriza muito as experiências da vida — curtir o dia, sozinha ou com amigos e família, viajar… — e as usa como principal combustível para criar. Deve estar sendo bastante difícil pra você esse período de pandemia. Como era sua rotina antes, e como ela é agora?

Eu estou no mercado há mais de 25 anos, então a pandemia não surgiu no meio da ascensão da minha carreira. Na verdade, eu estava querendo fazer uma pausa, estava atormentada com muitas questões e sentindo falta de motivação. Eu queria passar mais tempo em casa e, consequentemente, encontrar uma segunda atividade além da música. Então, aconteceu. Aproveitei o momento para viver, plenamente. Para me reconectar comigo mesma, ver onde eu estava. 

O que acontece quando você está fora todo fim de semana é que você nunca para, nunca descansa de verdade. Na sua cabeça, você está sempre na próxima gig, na próxima festa, pois precisa de muita organização e trabalho durante a semana toda: cuidar dos detalhes da viagem, ouvir músicas novas e preparar sua seleção, fazer as malas, responder e-mails, propostas de bookings, trabalhar no escritório, impostos, contratos, entrevistas, mídias sociais…

Eu sabia que mudar para o campo seria uma das melhores ideias da minha vida, ainda mais quando tantas pessoas estavam trancadas em lugares pequenos nas cidades. Tenho meu jardim para cuidar, meu cavalo, é claro que fiquei ansiosa com o futuro, como todo mundo, mas você dá um passeio na floresta e sabe que tudo vai ficar bem, você vai conseguir lidar. É a primeira vez na vida que vivo em um ritmo saudável, durmo e como adequadamente, estou descobrindo o verdadeiro equilíbrio que o meu corpo precisa.

Também percebi que amo meu trabalho mais do que pensava. É uma liberdade incrível, não ter um chefe, conhecer o mundo e compartilhar algo poderoso e bonito com as pessoas. Entretanto, vou pegar mais leve, me preocupar menos e trabalhar menos intensamente. Manter essa paz e equilíbrio o máximo possível.

Depois de 12 anos, você está prestes a lançar novamente um álbum com sua alma gêmea musical, The Hacker, não é mesmo? O que pode adiantar pra gente sobre esse novo trabalho? Como ele vai se relacionar com o que vocês já fizeram no passado, com tanto sucesso?

O lançamento foi adiado por causa do vírus. Está pronto para ser lançado. Estamos muito orgulhosos. Mesmo com a gente se conhecendo e não precisando estar no mesmo lugar para trabalhar, foi incrível estarmos próximos novamente, falar sobre onde estávamos, o que queríamos fazer, em que direção ir. 

Normalmente, nós apenas fazemos, não falamos muito. Estou curiosa para saber o que vocês vão achar. Eu particularmente acho que está bem conectado às nossas raízes. Se você espera um Frank Sinatra 2, saiba que não haverá. Nós não queremos, e mesmo se quiséssemos, não seria possível. Porém, definitivamente nós chamamos os poetas Punk que existem dentro de nós.

Você também está lançando a sua primeira masterclass. Como surgiu a ideia e o que pode nos dizer sobre ela?

A empresa [Aulart] entrou em contato comigo. Novamente, eu aceitei de imediato, sem pensar no que envolveria. Sou completamente insegura tecnicamente, meu estúdio é básico, funcional o suficiente para escrever músicas, mas não para produzi-las. Esse não é o meu talento, nem meu trabalho. A masterclass foi direcionada para isso: composição e processo criativo. Poucos pontos técnicos. 

Sou um pouco fechada, então não me senti confortável em abrir as portas, ser filmada em minha intimidade, mas eu superei isso para ajudar os outros, para mostrar que você não precisa de muito para criar algo relevante e para equilibrar o mundo nerd do qual não faço parte. Era exatamente nisso que eles estavam interessados. É fácil para eles criarem uma masterclass sobre compressores e etc., mas é raro encontrar uma compositora, principalmente na música eletrônica. Talvez eu seja a única.

O que mais tem te empolgado no universo musical atualmente? Quais os artistas e os sons que você mais tem gostado de ouvir?

Acho a reinvenção dos anos 90 super interessante. É de lá que eu venho, fico tão emocionada de ouvir faixas rave de piano, o retorno do IDM ambiente também, Electro, etc. A tecnologia evoluiu imensamente, e os jovens músicos estão fazendo-a florescer de novo.

Claro que há coisas boas e ruins, mas uma gama de produtores que amo são Animistic Beliefs, The Exaltics, Fjaak, Ryan James Ford e Etapp Kyle, para citar alguns. Também vejo muitos dos mestres ficando populares novamente, como Keith Tucker, Stingray, Surgeon e Slam.

Como última pergunta, uma clássica do Alataj: o que a música representa em sua vida?

Em primeiro lugar, a música é como um veículo precioso. Ela me fez ficar livre, fugir da minha cidade natal, virar adulta, viajar o mundo e aprender muito. É apenas uma pequena parte do meu lado criativo, mas é a que me faz viver até agora, que me faz ser quem eu sou.

Eu poderia ter feito qualquer outra coisa que me trouxesse tudo isso. Mas ontem eu disse a mim mesma enquanto dirigia meu carro: não entendo pessoas que não têm curiosidade por música, que apenas ouvem o que lhes é oferecido na rádio como uma coisa superficial, e não têm iniciativa para pesquisar mais por conta própria, mergulhar em seu próprio gosto.

Música é como comida também, é vital. Em última instância, é a trilha sonora das nossas vidas. Todas as nossas memórias estão relacionadas a algum som.

A música conecta.

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