Quando me foi incumbida a missão de capitanear as entrevistas do Alataj, sabia que estava assumindo uma responsabilidade muito grande. Justamente por isso, fazer perguntas se tornou uma tarefa um tanto quanto sofrida e demorada muitas vezes. Mas nenhuma – absolutamente – se compara com o mix de sentimentos e processo de preparação para entrevistar Richie Hawtin. A primeira coisa que pensei quando Alan me deu essa notícia foi que porra vou perguntar para o Richie Hawtin? Melhor. Qual dos assuntos que ele domina absurdamente devo abordar? Como fingir tranquilidade com uma das maiores lendas vivas da música eletrônica de todos os tempos? Foi tela azul.
A difusão do Minimal Techno com maestria como Plastikman. A contribuição para a digitalização e disseminação da música eletrônica através do Beatport e Traktor. Os labels Minus, Plus 8, o label party e marca de sake Enter. A frente em projetos como PLAYdifferently e o mixer analógico MODEL 1. Seu envolvimento com tudo o que é inovador em termos de tecnologia, como a utilização de inteligência artificial em suas últimas produções e o lançamento de uma startup com Deadmau5 dedicada ao novíssimo universo das NFTs. Hawtin certamente não é desse planeta e está sempre facilmente uma década à frente de nós, reles mortais.
A pandemia não trouxe descanso para ele. Ao contrário, imergiu o artista ainda mais em trabalho, novos projetos e principalmente no estúdio. Desde o início de 2020, vimos o resgate de seu alias Plastikman na trilha sonora da marca Prada, lançamentos pelo selo Plus 8, além de outros novos trabalhos, como a experiência sonora diferenciada em seu próprio aplicativo de celular. Richie Hawtin ainda nos presenteou com um lançamento através de seu próprio nome, algo que não acontecia há pelo menos nove anos. Time Warps é um EP com duas faixas que totalizam 30 minutos de uma experiência profunda dentro do Techno.
Com tantos trabalhos em andamento, por certo não seria tão simples encontrar um espaço na agenda do artista para nossa entrevista. Alguns meses de espera, muita torcida e um bocado de ansiedade depois, nosso encontro finalmente aconteceu. A tarde ensolarada iniciava às 13h na Europa, enquanto eu embrulhava minhas pernas em um cobertor em meio aos 8 graus que fazia às 8h da manhã no Brasil. Hawtin encontrou um lugarzinho ao sol e foi muito receptivo, o que me deixou um pouco menos nervosa. Tínhamos poucos minutos para conversar então obviamente não deu para perguntar tudo o que gostaria, mas ainda assim foi uma aula e experiência inesquecíveis!
Além de ter ainda mais certeza de sua genialidade, vi também alguém que tem plena consciência do importante papel que desempenha dentro do cenário, da força de sua imagem e da sua responsabilidade enquanto influenciador de multidões para trabalhar um movimento de mudança, de consciência e respeito aos artistas, meio ambiente e à arte. Espero que vocês curtam esse encontro tanto quanto eu.
Alataj: Tão bom falar com você, Richie. É um prazer, obrigada por me receber.
Richie Hawtin: Levou um tempinho pra organizarmos…
Não tem problema. A gente consegue imaginar que agora você está passando mais tempo no estúdio, então…
De certo modo, as pessoas acham que você esteja menos ocupado porque você não está em turnê e coisas assim, mas normalmente quando você está em turnê você tem bastante tempo entre os voos ou hotéis ou no seu caminho de casa, longe do estúdio… Então na verdade é bem fácil encontrar espaços para fazer entrevistas e coisas do tipo. Mas agora que eu estou em casa a maior parte do tempo estou realmente no estúdio e quando eu estou focado é difícil planejar, porque você planeja uma coisa e aí você está no estúdio e se você sai do estúdio, mesmo que só por uma hora, ou você volta direto pro estúdio ou os próximos três dias serão de baixa produtividade. Então sempre tem que encontrar esses momentos. E também agora que eu estou sentindo que as gigs estão voltando lentamente e eu basicamente cancelei tudo para o próximo mês, pra poder estar no estúdio e usar esse restante de tempo… É tipo um tempo precioso para estar no estúdio… pra usá-lo, aproveitar e aí se preparar para voltar um pouco para o lado de ser DJ.
Como você começou falando do estúdio, tem algo que achei interessante, porque no ano passado você lançou seu EP Time Warps, e é uma jornada de 30 minutos intensa e imersiva. Isso depois de um longo hiato de criações focadas pra pista. Mas esse detalhe pra mim foi muito interessante porque você lançou algo totalmente pista num momento que nós não estamos nela há certo tempo. Muitos artistas me disseram que estar longe foi algo ruim pra criatividade deles, mas pra você foi o contrário.
Talvez foram tantos anos tocando nas pistas e estando em turnê, mas nunca tendo tempo e o privilégio de estar no estúdio e permitir que aquela energia viesse à tona, acho que foi o que aconteceu comigo. Eu estou num momento bem diferente da minha carreira comparado a, vamos dizer, 80% das outras pessoas porque tem muita gente nova, artistas incríveis e DJs surgindo, que talvez tenham um pouco mais de equilíbrio entre estúdio e tour. Eu estou no outro extremo, tenho tantos projetos acontecendo, empresas de tecnologia…
Então quando de repente o COVID aconteceu, esse tempo extra foi tipo uma forma de liberar um monte de ideias e a energia de pista de um jeito diferente. E, você sabe, eu sou muito sortudo e privilegiado por estar numa situação em que eu pude não me estressar muito com o tempo livre, falta de trabalho… eu tenho funcionários e pessoas que precisaram de apoio, tivemos que planejar e rever tudo na empresa, orçamentos, e outras coisas. Quando vieram os primeiros meses e nós vimos que o COVID ia durar mais, e depois de uns altos e baixos de emoções, eu realmente me encontrei numa posição onde fui meio que forçado a uma mini-aposentadoria [risos].
Honestamente, foi tipo: “O que me faz feliz e me permite passar por tempos difíceis? Se eu não estiver em turnê e tocando, então é fazer música e estar no estúdio”. Então foi o que eu fiz. Levantei e fui pro estúdio praticamente todos os dias pra encontrar a mim mesmo, encontrar minha felicidade e encontrar uma conexão completamente diferente às tecnologias, aos equipamentos, e isso realmente reacendeu o amor por fazer música, o produtor na minha mente e no meu coração. E também, ter o tempo pra dar um passo atrás e lembrar algumas coisas que eu amo no Techno… O Techno pra mim foi sempre sobre contar histórias.
Muitos de nós contamos histórias através da discotecagem, misturando os discos, mas por eu não estar naquela configuração, fez sentido para as músicas do Time Warps ter esse tipo de narrativa e simplesmente deixá-las fluir, mesmo que elas fossem para uma pista. Eu não esperava na verdade que as pessoas fossem tocá-la muito, porque quando você está fazendo um streaming e as pessoas estão te assistindo e você toca uma faixa e aí fica lá sentado por 18 minutos… não vai rolar. Então as faixas eram perfeitas para pista em relação ao ritmo e velocidade, mas talvez os arranjos não tanto. Então de alguma forma foi perfeita para aquele momento, para estudar elas do início ao fim, sentir-se conectado à pista de dança, mas na verdade apreciar a totalidade daquela jornada, porque eu sabia que provavelmente não seria tocada num set, era mais para as pessoas darem o play no Spotify, ou talvez numa festinha pequena em casa, e se entregar numa pista de dança imaginária na cabeça delas.
Foi exatamente o que eu senti quando escutei pela primeira vez. Principalmente agora que estamos vivendo essa sensação de nostalgia o tempo todo… Estamos muito ansiosos pra estar numa pista de novo, então sinto que as pessoas escutam música hoje pensando em momentos que já viveram e com vontade de estar em um dancefloor, escutando essa faixa num sistema de som grande…
Talvez haverá um momento pra esse EP com DJs mais ousados que… Eu posso imaginar, tipo, no meu set na Time Warp… Quando eu estava na Time Warp no Brasil… Você toca a noite inteira e tem um momento que meio que quer se afastar um pouco da mesa para ouvir a música que você está tocando e levar a pista de dança para outro nível. Acho que tocar essa música nesse tipo de situação, por 10 ou 12 minutos, funcionaria completamente.
Espero que possamos ouvi-la um dia na pista. Você me falou várias coisas nestas respostas que me levaram a lembrar da primeira vez que falaram que te entrevistaria. Eu pensei “Que porra vou perguntar pro Richie Hawtin?” [risos]. Tem tantas coisas que eu queria te perguntar, porque você é envolvido com muitos projetos incríveis e em 2020, parece que foi um momento de mudanças para muitos deles, como Plastikman, NFTs, experimentos com inteligência artificial… Eu vi numa entrevista que você disse que você gostaria de sair dessa pandemia reequilibrado. A ideia dessa mudança aconteceu durante a pandemia ou era algo que você já estava planejando? Esse reequilíbrio que você fala, veio através desse projeto ou é mais sobre você como ser humano?
Já estava acontecendo. Na verdade você consegue ver isso graficamente na capa do Time Warps. É preto e branco e eu meio que transicionando e me mexendo… As fotos foram tiradas em fevereiro, por um bom fotógrafo amigo meu, e eu falei pra ele “quero que você me capture de forma bem simples, mas transicionando. Esse ano de 2020 é muito de transição, consigo sentir que vou desenvolver ideias”. Foi como se os primeiros 30 anos tivesse ficado para trás e esse fosse o começo da próxima década, ou das próximas duas ou três décadas. Foi tudo antes da pandemia, então quando o COVID veio de verdade, acho que foi mais uma razão pela qual fui capaz de lidar com a situação de forma relativamente tranquila – não vamos dizer fácil -, porque, de verdade, eu senti aquilo particularmente na minha mente, que era um ano de transição. Então usar o tempo para explorar todas as coisas que fazem o som Hawtin ou o Hawtin persona com tecnologias, como NFTs, música com o Time Warps… Tudo foi muito, muito natural.
Isso é muito interessante, porque você é um artista que nesses 30 anos fez muitas coisas e compartilha suas ideias sobre problemáticas diferentes… E muitos assuntos estamos tendo mais tempo para discutir agora. Discutir problemas de economia, meio ambiente, tecnologias… Mas falando especificamente sobre tecnologia, você sempre foi reconhecido por ser esse artista visionário, sempre com projetos totalmente surpreendentes para a cena e que a transformaram, como o Beatport e Traktor, por exemplo. Você acha que a NFTs e Inteligência Artificial são suas grandes apostas para a música, em termos de tecnologia, para os próximos anos?
Acho que a economia no geral para a música tem sido muito difícil há muito tempo, desde que migramos pro mundo digital, especialmente depois que os streamings começaram. Durante a pandemia as pessoas começaram a ficar mais conscientes disso, porque elas ficaram tipo “Ok, a música vai me render algum dinheiro, mas por que não está me rendendo dinheiro?”.
Então acho que essa consciência que tem ocorrido paralelamente a NFT é uma colisão interessante, e é excitante ver de novo que a tecnologia pode talvez ajudar a consertar alguns dos problemas que a própria tecnologia nos trouxe, porque nos primórdios da música eletrônica, do Techno, no vinil, toda a economia da cena era incrível. As pessoas tinham pequenos labels, prensavam três, cinco, 10 mil discos e distribuíam… E em algum ponto na mudança pro digital a gente perdeu um pouco o controle e alguns dos benefícios econômicos de fazer música. O equilíbrio parece ter ido na direção errada. Isso tem passado na minha cabeça porque eu fui um grande impulsionador, ou um grande apoiador de mudar a discotecagem pro domínio digital, então sempre me senti como se estivesse falando das vantagens que a gente teria, mas na verdade eu via algumas desvantagens também, então… será que a tecnologia pode salvar o dia de novo?
E eu apoio várias tecnologias que estão surgindo e parecem estar ajudando, acho que é por isso que provavelmente a explosão da NFT realmente me interessou e eu me joguei de cabeça para explorar e ver onde isso iria dar. Parece muito fácil de acreditar agora, a música digital é uma explosão gigante, Beatport, todas aquelas coisas fazem sentido. Mas quando lançamos o Beatport, as pessoas não estavam prontas. Mesmo os CDJs, ninguém fazia aquilo, ninguém levava a sério alguém que estivesse tocando com CDJ; ou você tocava no vinil ou tinha algumas exceções de discotecagem digital porque você ainda usava o vinil para controlar, mas os CDs eram tipo “Meu Deus! Você é um amador!”. Mas agora os CDJs são o jeito normal de tocar, então, em algum ponto, você tem que acreditar na direção que parece certa ou natural para você e ir em frente.
Como artista eu penso que é uma decisão tanto criativa como econômica, é muito difícil separar. Eu nunca quis fazer disso um trabalho de verdade, um dia após o outro eu estava incentivando a mim mesmo nos anos 80, fazendo música, tocando e isso se tornaria meu trabalho. Foi tipo “eu posso fazer essa coisa legal com essa tecnologia e talvez isso vai me ajudar a vender mais discos”, sabe? É um trabalho mental do Hawtin e se você tiver isso em mente você vai entender porque a NFT me anima e porque eu acredito tanto em como podemos continuar aproveitando os benefícios de tocar digitalmente e como também podemos arrumar alguns problemas que herdamos da tecnologia.
Uma coisa que eu sempre penso e já perguntei para outros artistas de renome “Você sente a responsabilidade que é ser você?”. Então, em termos de tecnologias, você se sente um pouco responsável por estar constantemente em busca de novas tendências, participando e inovando em projetos?
Acho que sempre foi natural pra mim estar interessado em ver o rumo das tecnologias e como isso pode somar ao meu potencial criativo. Nunca fui um músico treinado de forma clássica, a tecnologia sempre foi a ferramenta que usei pra desbloquear as ideias na minha cabeça. Então desde o começo foi natural – música e tecnologia. A primeira vez que ouvi Techno, foi tipo “meu Deus, é isso! Isso é música, é tecnologia, computadores, coisa de nerd, é emotivo, são todas as coisas que tenho dentro da minha cabeça e do meu coração”. Então simplesmente segui aquilo. Mas conforme você segue seu caminho, você também se torna conhecido por estar nele, então acho que definitivamente também tem algo que vem no fundo da sua mente tipo “será que existe uma expectativa pra que eu seja o primeiro a testar isso? Ou que eu seja sempre parte de um projeto inovador?”.
Eu penso nisso, mas, honestamente, a gente recebe muitos contatos em virtude dessa posição, com ideias malucas. Pra me envolver tem que ser algo que eu me anime e que faça sentido. Lembrando das NFTs, só chegou no meu radar no ano passado. Eu estava fazendo várias pesquisas em janeiro, antes da grande explosão, e simplesmente cheguei a dois grandes artistas naquele lugar – Blau e Hawk. Músicos, mas não do mundo Techno, e eu gostei mesmo do que eles estavam fazendo. Eu não seguia eles no Instagram, então os segui e mandei uma mensagem privada e disse “Hey, adorei o que vocês estão fazendo, tenho muito interesse”. Eles responderam em seguida e no outro dia eu já estava numa chamada de Skype com eles. Foi aquela energia jovial, aquela excitação que quando você vê você só vai. E aquela sensação é muito do que eu sinto quando eu estou no estúdio, fazendo música, você está apenas tipo “uau, será que vai ser bom para as pessoas ouvirem? Será que dá pra dançar com isso?”. Esses são os sentimentos originais que eu tenho na pista de dança, quando eu ouvi música eletrônica pela primeira vez, e é nisso que você tem que se manter conectado.
Imagino que uma pessoa que tenha tantas conquistas na carreira, é bom às vezes sentir a empolgação de novo, “Isso é incrível, tenho que fazer isso…”
Sim, um desafio novo e também é chegar em pessoas novas, falar e conhecer pessoas novas, ouvir ideias diferentes. Sempre me senti animado, desafiado e inspirado em falar com pessoas, aprender com pessoas. Hawk e Blau são mais novos que eu, mas eles estão na minha frente no blockchain e coisas do tipo. Quando eu comecei o Minus a ideia também foi de trazer vários artistas juntos. Não fiz muita música no Minus, mas foi inspirador sendo A&R, ouvir 30 faixas novas e escolher as cinco melhores e fazer remixes. Essa coisa também me lembra porque eu amo tocar em clubs. Sempre tem uma pequena camada de apoiadores antigos da sua idade na pista ou na cabine do DJ, mas a pista mesmo, não importa onde você vá, é repleta de gente de uns 20 anos. E eles estão simplesmente sentindo a música e a vida, sem vergonha; essa energia é absolutamente incrível. Proporcionar primeiras experiências às pessoas com uma track que você fez ou um disco que você pode tocar ou no jeito que você une as músicas, é muito empolgante.
Vi numa entrevista que você concedeu ao ADE, um comentário seu de que talvez as NFTs não sejam tão interessantes para alguns artistas hoje, mas será para o público em 10 ou 20 anos, pois essa será a forma que elas vão comprar sua música e interagir com você, então é preciso estar alerta.
Os artistas jovens que estão surgindo são muito tecnológicos, seja no formato de música ou evento que eles estejam fazendo. Então possuir instrumentos pra conectar a música ou a arte deles com os fãs, e ter essa comunicação bidirecional, é natural para eles. Sei que tem um público que ainda ama os discos de vinil… Eu fazia vinis, milhares deles, e era incrível, mas era muito difícil descobrir quem eram meus fãs e ter qualquer tipo de conexão. Tínhamos fan club e as pessoas enviavam algumas coisas, mas era uma via de mão única, e agora é muito mais bidirecional, e o blockchain e a NFT têm isso em sua essência e acho que é isso que a geração mais jovens de criativos vai esperar sobre a forma que eles entregam sua arte.
Você disse sobre os artistas mais jovens que me leva a um assunto aqui. Você encoraja e apoia novos talentos através de vários projetos, um em especial que acho que é muito legal… o sistema de sincronização entre seus sets e as redes sociais usando o Twitter…
Foi chamado inicialmente de Twitter DJ, e agora é chamado de Radar. É um tópico engraçado, porque muitas pessoas me mandam músicas para tocar e tem tantas que você não consegue responder todos. Com tudo acontecendo, não tenho tempo pra isso. Então foi uma forma de automatizar um sistema que permite que as pessoas saibam realmente o que eu estou tocando. Não tem segredo, tem transparência para que então as pessoas pudessem encontrar e pesquisar aquelas faixas e descobrir mais sobre os artistas e promovê-los. Com muita frequência as pessoas perguntam “por que você não tem uma gravadora?”, e tipo, eu tenho, mas perguntam “por que você não lança muito mais músicas?”. Às vezes, mesmo que eu quisesse fazer isso – e provavelmente vou – permitir que as pessoas saibam o que eu toco é um jeito muito poderoso de promover música. É por isso que fizemos essa tecnologia, continuo usando. Na verdade gostaríamos de melhorá-la ainda mais no futuro.
Quando você usa a palavra promover e apoiar, é algo grande para alguns artistas. Temos um artista no BR chamado Tarter, que sempre diz que a carreira dele só deslanchou porque uma vez você tocou uma track dele. Então são muitos benefícios nesses tipos de movimentos que você faz. Vemos novos artistas lutando por suas carreiras e muito dinheiro investido no mercado com foco em artistas grandes. Às vezes, artistas pequenos nem sabem que outros grandes nomes estão tocando suas faixas, muito menos recebem suporte, que dirá algum valor…
Essa parte da cena é absolutamente ferrada. O que temos visto nos últimos 30 anos é um aumento gigante na popularidade nos DJs do topo, e as taxas que estão recebendo têm sido astronômicas, mas o lucro real de artistas que fazem as músicas cai. Não existem DJs se não houver música nova. Tem poucos artistas por aí que estão no topo e tocando apenas coisas autorais, então, na minha cabeça, todo nosso sucesso e receita vem de produtores caseiros, que fazem músicas que podem sequer serem lançadas.
Às vezes artistas nos enviam demos ou faixas que são lançadas em pequenos labels que ninguém conhece. Então, sinceramente, sei que têm algumas coisas rolando no segundo plano. Um amigo meu está trabalhando num sistema que rastreia e paga alguns desses artistas, e eu talvez faça algo também nisso, quero pelo menos permitir que as pessoas saibam que você tocou o disco, e “aqui está o nome da faixa, aqui está o nome do artista”, para que então as pessoas possam ou comprá-lo, divulgá-lo ou talvez ficar tão empolgado que eles vão gerar demanda pra que o artista toque naquele club local e ganhe dinheiro.
É muito, muito difícil mesmo viver apenas de música. Em determinado momento, o produtor caseiro vai dar de cara com a parede e vai pensar “talvez eu tenha que desistir da minha música e voltar para um trabalho regular, ou talvez eu tenha que ter um trabalho de meio período e então talvez não terei tempo suficiente pra permitir que minha carreira deslanche, pra que decole como deveria”, enquanto DJs famosos estão tocando suas músicas. Não faz sentido. Então isso no nosso sistema realmente precisa focar seriamente em algum tipo de ajuda.
É algo que também me chateia, porque se a gente parar pra pensar, você faz essa sincronização nas suas mídias sociais há mais de cinco anos, certo? A tecnologia está aqui, sabe? O artista grande não precisa tirar nada do seu bolso, apenas deixa que o sistema trabalhe um pouco e dê a outros oportunidades, porque é muito difícil viver apenas de produção. Você acha que através da tecnologia nós podemos dar a volta nisso ou de fato a produção nunca será um meio de subsistência?
Acho que uma coisa é muito possível, que muitos dos artistas estão publicando seus sets muito rápido, então eles são muito transparentes com aquilo que eles são e com o que eles estão tocando. Então o pensamento antigo de manter os discos em segredo está começando a desaparecer e eles estão compartilhando de forma muito mais aberta. Um instrumento como a NFT, onde você pega um demo e você sabe que tem toda a informação pra que você possa contatar o artista diretamente ou até mesmo mandar dinheiro pra eles, isso seria uma grande vantagem também.
Sinceramente, às vezes você recebe demos e não tem informação nenhuma, as pessoas te mandam pelo Dropbox mas quando você abre o arquivo só tem um título de música, e você fica tipo “hey, quem fez isso?”. Acho que as pessoas têm que se esforçar ao máximo. Não me importo se você faz U$500 por noite, ou U$ 250 ou U$ 10 mil ou até U$ 100 mil – se você está tocando majoritariamente música de outras pessoas, e especialmente música que talvez nem sejam publicadas ou músicas que não tenham sido inseridas no sistema corretamente, deveria haver uma forma de compensação tanto para os produtores jovens como para os produtores mais velhos que talvez nunca sequer tenha visto seus royalties.
Aproveitando que você falou em lançamento, tem outra coisa que eu queria te perguntar e aí eu volto pro seu EP Time Warps. A edição em vinil do EP foi feita pela Deepgrooves Vinyl Pressing Plant, uma empresa que prensa discos de forma ecológica. Isso pra mim foi muito interessante, porque me remeteu à necessária e urgente pauta da consciência ambiental na indústria da música. Mesmo com a situação alarmante que estamos vivendo hoje, em relação aos problemas ambientais, por que você acha que ainda vemos poucos projetos e movimentos em relação a isso?
Acho que é um problema tão grande… E é realmente difícil sentir que, você como indivíduo, que sua conexão faz algum tipo de diferença… e daí vem aquele pensamento, tipo “Minha contribuição não vai fazer nenhuma diferença, então por que deveria me importar?”. Eu passei por fases onde estava muito mais consciente ambientalmente e outras não -, mas apenas tentar se manter num caminho é muito difícil.
Uma das principais coisas que eu queria dizer é que, se todos fizessem mudanças pequenas na forma como vivem ou em seus modos de trabalhar, isso faria uma diferença enorme. E pra mim, pensar onde eu vou prensar meu vinil, que tipo de energia eles usam para o funcionamento das máquinas, os papéis que usam, quantas folhas de papel usam… Algumas pessoas ainda amam fazer capas de plástico… Eu não acho que é uma ciência futurística, então dê uma olhada e se pergunte algumas coisas sobre esse assunto e talvez tome uma decisão para se engajar em uma entre dez opções que talvez faça uma diferença positiva. E eu espero que com o tempo que todos tivemos pra pensar sobre as coisas, que a gente saia do COVID com um pouco mais de consciência, para que então cada um de nós possa trazer um pouco mais de impacto positivo para o planeta. Acho um tempo muito desafiador, porque tem tantas pautas importantes para enfrentar.
A gente enfrenta a necessidade de direitos iguais para todos os tipos de pessoas, denominações, raças, preferências, gêneros, meio ambiente… Tem muitos problemas assolando o planeta e muitos deles estão incrustados na nossa cena musical. Mas pelo lado positivo, sinto que temos um sistema bem igualitário. Pode não ser tão underground como era antes, mas ainda é um microcosmo no mundo, a música eletrônica. É um lugar muito especial cheio de pessoas apaixonadas e ambiciosas, muita jovialidade, pessoas jovens que tem muito tempo pela frente pra fazer uma diferença positiva no mundo. Então na verdade estamos num ótimo lugar pra tentar fazer mudanças positivas.
Com sorte esse cenário pandêmico vai nos trazer uma forma de consciência diferente, outro tipo de relação com as pessoas… Você acha que quando voltarmos às atividades normais na cena veremos grandes mudanças?
Não acho que veremos grandes mudanças. Acho que tivemos um tempo durante a pandemia que todo mundo parou e teve tempo para pensar. Mas infelizmente o COVID está durando tanto tempo que pra muitas pessoas, no final das contas, o pensamento principal acabou sendo “como vou sobreviver à pandemia? Eu e minha vida, minhas economias, minha família, meu emprego?”. Então agora tem-se apenas uma pressa enorme pra voltar a trabalhar e fazer um pouco de dinheiro pra viver. Espero que ainda haja essa ideia interna de que daqui a seis meses ou um ano você vai ver mais consciência e mais mudanças positivas. Pelo menos no meu time e nas pessoas às quais estamos conectados temos esse tipo de iniciativa, de estar falando sobre e tentando pelo menos dar alguns passos, pra que então a gente sinta que estamos avançando de uma maneira melhor que estávamos antes. Saímos da rodinha do hamster, o mundo inteiro parou, e você só está vendo o mundo acelerar e um impacto negativo em potencial para o meio ambiente e coisas do tipo. Então a hora de mudar é agora.
Tenho uma última pergunta, mas primeiro gostaria de te agradecer por isso, você é um cara muito legal e importante na minha trajetória. A primeira vez que eu vi você tocar ao vivo foi em 2008 e foi uma explosão na minha cabeça! Foi a primeira vez que eu vi alguém tocando com todos aqueles equipamentos, algo tipo “Como ele consegue fazer isso? Como ele mixa quatro tracks?”. Foi uma das experiências que me fizeram amar música eletrônica e hoje ela representa muito pra mim. Aqui no Alataj temos uma pergunta tradicional que fazemos a todos os artistas e o tema é justamente esse: o que a música representa em sua vida?
A primeira coisa que vem na minha mente é que a música sempre foi um escape. É um lugar para se entregar quando você está feliz, quando você está triste, quando você precisa se afastar um pouco do que está acontecendo na vida real. A música é uma espécie de cobertor quentinho que te permite encontrar o caminho de volta e dar o próximo passo na vida. Então é um espaço seguro. A música deveria ser um espaço seguro. Às vezes você escuta uma música 100 vezes, e, se tiver letra, você ouve as letras de formas diferentes em diferentes fases da sua vida, e em diferentes frequências, e você meio que absorve aquilo e utiliza aquilo, sabe? E outras pessoas conseguem transmitir suas frequências a outras e curar pessoas. É muito bonito. É por isso que gosto da música eletrônica, é uma forma de música que, especialmente a música eletrônica minimalista, uma forma de música onde você encontra espaço e um jeito de habitar sua própria pessoa, não há muita narrativa trazendo uma mensagem específica, é simplesmente permitir que a música te preencha e se torne uma com você.
A música conecta.