Desde que se mudou do interior do Paraná para São Paulo, Valentina Luz foi acolhida pelo cenário independente e pôde construir um caminho de referência para as manas e monas. Começou como performer em festas como a Mamba Negra e foi organicamente ramificando suas possibilidades, trazendo como DJ sua autêntica interpretação repertorial diante de um público que, como ela, preza pela liberdade e diversidade.
Sangra Muta, Bicuda (Campinas), Mariow (RJ), Hot e Doma (Porto Alegre), e Dando são alguns dos rolês que a recebem como residente. Mas não só isso: Valentina está na Coletividade Namíbia, coletivo de visibilidade para artistas negros(as), e devolve oportunidades ao cenário através de aulas de discotecagem gratuitas na Casa1 para artistas transgênero aspirantes da Dance Music.
Recentemente, também passou a integrar o casting da SmartBiz, agência de bookings que sempre se preocupou em unir um incrível e diversificado elenco musical — a exemplo de Renato Cohen, Nikkatze, Gezender, Paula Chalup e Fractal Mood. Hoje conversamos um pouco com esta que é uma das mais disruptivas discotecárias do país atualmente.
Alataj: Valentina, obrigado por topar essa entrevista! Como foi pra você se manter afastada das pistas neste meio tempo e como você buscou manter a conexão com o público de outras formas? Se rendeu às lives? Se comunicou mais através das redes sociais? Conseguiu levar seu som para novas pessoas?
Valentina Luz: Fiquei meio abalada no começo, óbvio, porque estava acostumada com uma rotina de trabalho com a noite TODOS os fins de semana, mas depois eu me conectei com o meu público, seja nas lives, stories ou criando formas de diálogo, gravando mixes… isso me colocou mais perto das pessoas. Me rendi às lives, claro, e tive algumas oportunidades incríveis com isso — agora nessa volta vai fazer muito sentido ter esse material. Me comuniquei muito através das redes sociais, faço isso há um tempão, seja no Instagram, nos stories, trabalhos ligados à moda e à música. Muitas pessoas passaram a conhecer meu som através das lives e do Soundcloud, isso foi incrível e me deu um gás pra continuar.
Percebo nos seus sets uma abordagem musical destemida, bem variada. Lembro de ocasiões na década passada quando, em determinados contextos, nichos ou espaços, não se pensava primariamente em misturar Funk ao Techno e ao House, por exemplo. Às vezes isso resultava em críticas. Agora vemos cada vez mais ecletismo entre os artistas que tocam nesses espaços. Acha que estamos vivendo um momento de retomada da criatividade na Dance Music? O futuro é da experimentação?
Realmente, acho que nas décadas passadas as coisas eram mais quadradas, mas acho que o futuro tem N formas de evoluir e parte dessa evolução é misturar tudo, principalmente quando falamos de corpos marginalizados adentrando esses espaços, com certeza teremos experimentações de estilos e vibe mais eclética. Eu nunca fui aquela pessoa que conviveu com House e Techno desde criança, meus pais não eram clubbers, então a minha educação musical foi baseada no que eu ouvia na minha infância, sempre eclética. Acho que hoje em dia também temos essa liberdade de trazer coisas diferentes para esses espaços, justamente porque a galera mais jovem tá disposta a consumir isso, entendeu? A maior parte do meu público é a galera da minha idade, que tá ali, realmente esperando meu mood ‘valentudo’ pra dançar comigo. Acho que tô falando especificamente de mim e da minha visão, mas eu tô sim vivendo um momento de muita criatividade e tenho momentos em que misturo as coisas, quando o ‘valentudo’ entra. Mas no modo geral esse meu lado eclético me inspira muito e me trouxe bem mais possibilidades pra fazer essa experimentação criativa e, claro, o futuro é das experimentações e de quem conseguir usar melhor suas referências de forma leve e diferenciada.
São Paulo, com todas as suas possibilidades, se tornou determinante na sua carreira. A cena independente é muito efervescente, embora a pandemia tenha freado as atividades culturais, claro. À medida em que vamos retomando aos poucos, qual seria um roteiro essencial na cidade para nós, meros mortais sedentos por música?
Pois é, foi difícil. SP é um lugar no Brasil onde eu realmente consigo me enxergar como artista e buscar oportunidades. Um roteiro essencial são festas com aquela linda história de lines inclusivos, porque hoje você ainda vê produtores de eventos fazendo festas com cinco caras e uma mina. Assim, então, coloco também clubs e bares que acessibilizam a cultura pras pessoas, conscientizando as pessoas a tornar a noite um espaço para todes, e acho que é isso, tem espaço pra todo mundo e o que fez a gente repensar durante essa pandemia foi realmente o quão essencial é todo mundo estar junto na sua individualidade, mas ainda assim trazendo uma nova narrativa pro cenário clubber underground. A gente pode sim construir algo muito maneiro juntos.
Há alguns anos a cena pôde prestigiar seu desenvolvimento não apenas como multiartista, mas como inspiração política, criando mais visibilidade para pessoas trans. Como você se sente tendo chegado tão longe e qual mensagem você gostaria de deixar para quem se espelha em você?
Enquanto pessoa trans e intersexo, desde muito cedo eu realmente não esperava estar vivendo esse sonho que é ser uma multiartista, principalmente inspirando enquanto um corpo estranho, corpo político. Eu me sinto realmente nesse processo de chegada, porque pra mim o que tá acontecendo é o mínimo que eu mereço, do que o meu talento me trouxe, mas eu ainda tenho muito mais pra construir. Acredito que quem se espelha em mim e quem me tem como referência pode esperar que vem muito mais.
Eu tô sempre em processo de evolução. Sou uma pessoa que se inspira em coisas e processos criativos, então tô sempre criando, me colocando nesse lugar de humildade, de aprendizado. Pra mim é muito importante que as pessoas entendam que eu sou uma pessoa normal, mas tô nesse processo da arte que é complicado; sou jovem, tenho muitos sonhos, já conquistei algumas coisas, mas a caminhada é longa. Então a mensagem é essa: entenda que esse processo muitas vezes é demorado e cansativo, mas que se você tá fazendo o que ama, pode conquistar coisas que você nem imaginava. Tenha força, as referências certas e encontre as pessoas certas. Foi o que aconteceu comigo e hoje sou muito grata por isso.
Sua entrada no casting da SmartBiz representa uma pisada mais funda no mundo da discotecagem. Pretende ampliar esta carreira em oposição ou em paralelo aos seus outros talentos, como moda e performance?
Então! Babado essa minha entrada! Eu realmente já me sinto em casa enquanto artista tendo o meu agente, meu booker, minha equipe trabalhando comigo. Isso é essencial, principalmente nesse meu momento de carreira. Óbvio que pretendo ampliar, tenho vários planos. A prioridade no momento atual é a discotecagem, a noite, mas, enfim, estou nesse processo de sede e de fome por arte e cultura, porque eu realmente faço o que eu amo e nada mais justo que eu me interessar por outras coisas e colocá-las em prática, sem forçar a barra. Então agora com a SmartBiz vou trabalhar todos esses lados e investir nessa ampliação. Tô muito feliz e pretendo voltar a performar, mas a prioridade é a discotecagem.
Por fim, uma clássica do Alataj: o que a música representa na sua vida?
Ela sempre representou liberdade de expressão, expressão corporal, liberdade em si. A música é presente na minha vida há muito tempo e hoje a representa. Não consigo imaginar minha vida sem música, sem som, sem uma caixa muito alta no meu ouvido (risos). Então, realmente, música é a vida em movimento. Um beijo e muito obrigada! Valentudo pra vocês, Alataj!
A música conecta.