Ao pesquisar no dicionário o significado da palavra legado, encontra-se a seguinte definição: aquilo que se passa de uma geração a outra, que se transmite à posteridade. Legado foi a primeira palavra que veio naturalmente à cabeça quando a autora deste texto que vos fala, buscou o gancho. Não é à toa. John Digweed é mundialmente reconhecido por seu impacto na música, fazendo parte de um quebra-cabeça minucioso que contribuiu de forma ao movimento que conhecemos como música eletrônica. Sua trajetória e as particularidades sobre sua maneira de fazer música e construir seus sets, o tornam uma figura icônica, sem sombra de dúvidas.
Parte do alto escalão da Dance Music mundial, ele pavimentou seu caminho com destreza e singularidade ao lado de um elenco poderoso. Hoje, são 40 anos de uma carreira consolidada, muito mais tempo de profissão que a própria existência de muitos fãs de Progressive House que cairão neste texto. E é por isso que a palavra legado diz muito sobre este artista e que serve como grande exemplo de profissionalismo dentro deste ramo. Mas, para endossar o termo escolhido, a história precisa ser brevemente revisitada. Afinal, não tem como falar de Digweed sem falar do House Progressivo e de como estas duas histórias se entrelaçam.
A essa altura, você já deve ter cruzado (e caso não tenha, vá fundo) com a história sobre a origem da música eletrônica, dos primeiros registro até os dias atuais rolou a verdadeira metamorfose ambulante, como diz a famosa música, e que, de forma bem sintetizada se dá assim: as experimentações e seus respectivos resultados, em velocidade compatível àquele tempo, foram acontecendo até culminar com a verdadeira erupção vulcânica que foi o surgimento do House e do Techno em Chicago e Detroit, respectivamente. Quando estes inovadores gêneros musicais começaram a cruzar o oceano, não demorou muito para que as ideias se misturassem às experimentações locais, como a Eurodance e o Trance, e começassem a se multiplicar.
Esse baita movimento começou a acontecer na década de 80, mas foi no início dos anos 90 que o gênero em questão ganhou vida. Naquele momento, a cena rave vivia um verdadeiro apogeu no Reino Unido e em boa parte do continente. De um lado, o House de Chicago e o Techno de Detroit ganhavam cada vez mais fama e seguidores, levando as sementes para o resto do mundo, do outro, o Acid House, o Trance e vertentes mais rápidas levavam uma turminha mais intransigente à loucura, literalmente. De forma resumida, podemos dizer que a infusão dos gêneros do momento somados a um desejo diferente de “viajar”, deu vida ao Progressive House.
O empurrãozinho veio com uma matéria emblemática na Mixmag, em 1990 e algo, que falava sobre esse tal “house britânico duro, mas melodioso, vibrante, atencioso, edificante e tranceiro”. Ao que tudo indica, o Progressive House deu seu primeiro grande passo na faixa Not Forgotten do grupo Leftfield. Ao ouvir a faixa, é possível perceber os primeiros passos dessa jornada: menos elementos marcantes do House, mas mantendo uma essência sutil, com mais camadas que remetem às vias do Trance e “contando uma história” mais longa dentro da mesma faixa. No meio disso há muitos outros fatos e fenômenos, por isso pesquisar e estudar é fundamental para entender o tanto de coisa que aconteceu nesse eixo 80/90.
Naquele mesmo momento, John Digweed entra na história e a equação parece ser uma soma de fatores clássicos quando olhamos para a jornada de muitos expoentes: dedicação, foco, talento e estar no lugar certo e na hora certa, enfim, o timing perfeito. O jovem inglês de Hastings ouviu uma mixtape com música eletrônica, instantaneamente se apaixonou e decidiu se jogar. Aprendeu a tocar e logo conseguiu entrar no circuito de festas locais. Em busca de gigs, ele enviava suas mixtapes para donos de clubes até que Geoff Oakes, da boate britânica Renaissance, ouviu e gostou. E sabe a história do timing perfeito? Digweed logo começou a trabalhar com aquele que seria seu grande amigo de profissão e parte de uma das duplas mais emblemáticas de todos os tempos: Sasha. Simples assim.
Como naquela época tudo era fresco, o desenrolar foi rápido: eles acabaram encabeçando um projeto que ficou marcado no tempo e espaço e os fez encabeçar de vez o gênero em questão, a icônica coleção Renaissance: The Mix Collection de Sasha e John Digweed foi lançada em 1994. O conjunto com três CDs mixados – algo inovador para o período – trazia tudo de melhor em suas pesquisas e bom, foi um sucesso, bem acima da média para os moldes da época. Isso representou a força propulsora para fazer o estilo triunfar e reforçou um modelo de negócio muito bem sucedido: Sasha b2b Digweed é pura mágica e ponto final. E devo dizer: esse compilado é um caso de amor para todo fã do estilo, é muito mágico ouvir os sons mais puros que abriram caminho para uma jornada incrível que deságua no que conhecemos hoje.
John é um dos artistas que mais se destacou com coletâneas mixadas que se tem registro. Nos destaques ainda temos as compilações Northern Exposure pela Ministry Of Sound, a renomada Global Underground e da Fabric 20. Desde aquele tempo já era possível notar as características sonoras sobre as escolhas do DJ e produtor, fruto de todo o movimento que estava rolando. A inegável atmosfera mais tensa e um som para um pistão, que vai despertar uma nostalgia ao Trance, sendo essencialmente House e que traz com muita sensibilidade tantos outros gêneros em meio disso.
Seus sets e faixas percorrem vias mais sérias, hipnóticas e mentais, sempre mantendo um tom sofisticado, entregando introspecção e, no contraponto, energia, o que justifica bem o fato de permanecer em long set com ele sem se dar conta do tempo. Aliás, é justamente essa característica de long set que assina o estilo e ele honra muito bem o termo “progressivo”. A começar pelas mixagens imperceptíveis e que alteram o estado de espírito de quem está dançando, a alternância de canais, que trazem camadas sonoras em sobreposição e um set que possui uma evolução contínua muito bem pensada. Por isso, a sensação de que uma história foi contada é algo muito forte. John Digweed será imersivo, edificante e envolvente.
Essa assinatura sonora é fruto de muito trabalho, não há como negar. Ao passo que o artista ganhou consistência em sua carreira, os novos projetos começaram a surgir rapidamente. Ele foi um dos primeiros ingleses a encabeçar uma residência do outro lado do oceano no club Twilo de Nova Iorque, onde comparecia mensalmente para uma das noites mais famosas da semana. Ao lado de outro grande parceiro de profissão, Nick Muir, ele fundou o pseudônimo Bedrock e deixo aqui meu recado aos seletores: tem muita coisa boa nesse cardápio musical. O boom internacional ganhou mais força quando o artista lançou o remix ao lado do amigo, para a faixa For What You Dream Of, incluída no emblemático filme “Trainspotting”, em 1996. Ele também teve outras participações no eixo cinematográfico, produzindo trilhas e também atuando, como no filme Groove.
Tempos depois, a Bedrock Records foi fundada como selo, se tornando um pilar de gênero, trazendo muita qualidade, mas também abrindo portas para outras experimentações. Além disso, como marca, a Bedrock se tornou renomada para artistas e ganhou vida como label party, o branding perfeito e que trouxe uma verdadeira comunidade para os fãs. Além de um trabalho exemplar como DJ e produtor, Digweed entregou muitos projetos no caminho, como a prestigiada série Transitions. Inovadora nos anos 2000 e que segue ativa até os dias atuais. Transmitida no YouTube da marca e em rádios online, com convidados especiais e mais de 1000 episódios.
Aliás, a década 00 foi um salto quântico na carreira e aqui novamente se reforça a teoria do timing perfeito. Com a música eletrônica já espalhada pelo globo tudo estava acontecendo. E mesmo com o surgimento inevitável de gêneros e tendências, Digweed manteve-se fiel. Claro, em sua lista imensa de tracks, você vai encontrar experimentações e propostas diferenciadas também, o mesmo valerá para seus sets. É natural, para qualquer artista que sua criatividade inata o desafie à buscar caminhos diferentes, mas sempre mantendo sua assinatura, que equilibra o clássico e contemporâneo com muita sutileza. O som purista de quando tudo começou à pluralidade e dinamismo dos tempos atuais, e também, claro, a sagacidade de ler a pista de acordo com a localidade e o momento.
É inegável o tal “profissionalismo britânico” e o efeito disso é um currículo vasto: das famosas boat parties em Miami durante o Winter Music Conference, as residências em Ibiza e diversos projetos envolvendo o movimento da ilha, até a Delta Heavy, famosa turnê de ônibus ao lado de Sasha, que percorreu a América do Norte no começo do século. Por sinal, o projeto foi tão marcante, que virou um DVD como já citamos aqui no Alataj, na Special Series dedicada ao artista: um momento que catapultou ambos como superastros, algo “para poucos” quando pensamos na Dance Music daquele tempo.
Esse status de estrela somado ao seu talento inato, fez com que Digweed ganhasse notoriedade em muitos rankings de revistas famosas, quando isso ainda era “cool”, onde esteve no top 10 por anos e também conquistou o top 1. Inclusive, aqui no Brasil. Aliás, como não falar da sua relação com alguns de seus fãs mais fiéis? Aqui, especialmente na região Sudeste e Sul, Digweed escreveu a história, mas definitivamente criou um laço importante com o Warung Beach Club. Em 2006, a track Warung Beach foi lançada em homenagem ao clube e sua atmosfera, a música fala por si só. Bom, não somente aqui, mas logo ao lado, na Argentina, o inglês também faz história e ao lado de Hernan e outros artistas do Progressive House, se tornou um Dios. As apresentações em Mar Del Plata dão aquela “invejinha”…
E no passar das décadas, como já dito, ele dançou conforme a sua música, algo muito desafiador para um sistema que se renova e se dinamiza tanto como a música eletrônica, especialmente quando pensamos em tendências. Sim, é fato, o House Progressivo teve sua fase de baixa, quando por um “deslize” de classificações sonoras, passou a ser um som de mainstream. Mas, gente, quem é fã de verdade sabe que isso nunca colou. Tanto Digweed, quanto Hernan, Sasha e o squad classudo de artistas que compõem essa história toda, claramente não se abalou. E cá estão.
John Digweed já está na casa dos 50 anos e segue trabalhando bastante com inúmeras gigs pelo mundo (haja fôlego!) e é hoje um dos artistas “old schools” mais célebres da Dance Music ao redor do globo. O “low profile” somado à seriedade e profissionalismo entregam tudo. Mas não é só isso, sua consistência, integridade artística, conhecimento musical e uma técnica que beira o “bizarro”, fazem dele um grande exemplo de como é preciso trabalhar duro, pensar fora do quadrado, inovando sempre, mas mantendo-se fiel ao que acredita.
Na equação do tempo o que já sabemos é que tudo se forma em ciclos e estes se transformam, porém, alguns fatores não oscilam mesmo dentro desta dinâmica. John Digweed é o House Progressivo e esse é o legado!
John retorna ao Brasil em novembro para duas datas:
14.11 – São Paulo – D-EDGE
15.11 – Itajaí – Warung Beach Club (b2b Sasha)