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A música conecta

Shanti Celeste: som, cor e presença

Por Elena Beatriz em Storytelling 22.10.2025

Nascida em El Cajón del Maipo, no Chile, Shanti Celeste cresceu em meio à liberdade criativa dos pais, ambos ligados a um estilo de vida alternativo, com ausência de regras rígidas. A infância passada entre montanhas e natureza promoveu desde cedo contato com sons e imagens que escapam ao comum e ajudaram a moldar seu olhar sensível, algo que mais tarde se refletiria na forma como constrói atmosferas e conduz o ritmo em suas produções. Aos 12 anos, se mudou com a mãe para o interior da Inglaterra, onde o contraste cultural foi marcante: de uma realidade solar da América Latina para uma rotina em que o clima contido dos britânicos e de sua nova cidade pareciam ampliar a distância entre suas origens e o novo lar. Essa dualidade, entre a introspecção e expansão, se tornaria uma das marcas registradas de sua linguagem musical.

Na adolescência, descobriu a música eletrônica em festas e raves no Lake District, no norte da Inglaterra, e a partir dali a curiosidade e o fascínio pela liberdade que a discotecagem oferecia, começou a aprender a manipular vinis com amigos e, já em Bristol, onde se mudou para estudar ilustração, começou a se integrar à cena local, um dos principais polos criativos do país naquele momento. A cidade, historicamente aberta à experimentação, com uma cena alimentada por heranças do Trip-Hop, do Dub e do House britânico, abrigava uma comunidade em que música eletrônica era valorizada como parte essencial da cultura, e foi assim que Shanti entendeu que sua ligação com a música poderia ser algo além do que um hobby, mas sim uma forma de expressão sobre suas vivências.

Em 2011, começou a trabalhar na loja de discos Idle Hands, comandada pelo DJ Chris Farrell. Nesse momento de sua trajetória, pôde observar de perto a dinâmica de curadoria e ampliar seu contato direto com DJs, a exemplo de Hodge e Peverelist, colecionadores de vinil e, consequentemente, com uma ampla gama de referências sonoras. Além disso, começou a compreender a estrutura de gravadoras independentes, o que alimentou sua visão sobre como poderia articular seu próprio caminho. 

Durante esse período, a Idle Hands também começava a assumir papel como gravadora e Celeste passou a se envolver em algumas decisões que envolviam o conceito estético e sonoro do catálogo. Pouco tempo depois, ela e Farrell fundaram juntos o selo BRSTL, pelo qual lançou, em 2013, seu primeiro EP, Need Your Lovin (Baby), que contava com duas faixas — a homônima, que trazia samples dos vocais de Don’t Leave Me This Way, de Thelma Houston e outra faixa denominada Result. Ambas já apresentavam uma energia groovada e fluida, inspiradas na House Music clássica de Chicago, marcando o início de sua trajetória autoral. 

No Discogs, há um comentário que sintetiza perfeitamente a energia transmitida nas duas tracks: “Deep House e Tech House with a girly touch.” A partir dali, suas produções começaram a circular com constância em catálogos como o da própria Idle Hands e Future Times, ganhando alcance entre DJs da cena europeia e consolidando um estilo reconhecível: faixas quentes e carregadas de sentimento.

Em meados de 2013, Shanti uniu forças com Gramrcy, Golesworthy e Jay L para promover a Housework, uma festa que rapidamente se tornou um dos pontos de encontro mais consistentes da cena independente de sua cidade local. O projeto tinha como objetivo trazer DJs de outras cidades para Bristol e fomentar esse intercâmbio artístico, criando uma circulação que mantivesse a cena viva e conectada. As festas aconteciam em pequenos clubs como o Take Five Cafe e o Cosies, sempre em torno de uma atmosfera calorosa, marcada por estilos que transitavam entre o House, o Techno, UK Funky, Electro e o Garage.

Como uma das residentes, Shanti começou a ganhar reconhecimento pela forma como conduzia as noites, com sets que chamavam atenção pela habilidade em equilibrar faixas clássicas e sons contemporâneos, fato que logo lhe rendeu convites para tocar fora de Bristol. A Housework acabou funcionando como um ponto de virada: um projeto que não apenas fortaleceu o circuito local, mas também projetou o nome de Shanti para além dele. Em 2014, Shanti também passou a apresentar um programa mensal na NTS Radio, de Londres, onde mantém uma residência mensal desde então e explora novas faixas do House ao Techno, além de propor B2Bs com outros artistas, reforçando sua vocação e vontade de fazer a cena se movimentar.

Nesse período entre 2014 e 2015, passou a integrar lineups de casas como o fabric e o Corsica Studios, além de participar de noites do selo Secretsundaze, com quem também viria a lançar posteriormente. A consistência de suas apresentações chamou atenção de curadores e artistas já estabelecidos, o que a levou, em poucos anos, a palcos de maior projeção. Entre 2015 e 2016, Shanti começou a se apresentar em espaços como o Panorama Bar, em Berlim, e o Robert Johnson, em Offenbach, o que abriu espaço para um novo capítulo em sua jornada. 

Já imersa em uma rotina de viagens constantes e com uma base de fãs em ascensão, Shanti, Gramrcy e Golesworthy decidiram alugar uma van, fazer as malas e se mudar para Berlim, em busca de um ambiente que lhes oferecesse mais independência para desbravar novas conquistas e fornecesse contato direto com uma comunidade artística diversa. A mudança para a capital alemã marcou uma nova fase para Shanti, oferecendo o ritmo necessário para que ela pudesse amadurecer a ideia de criar o próprio selo, a Peach Discs, que refletia seu olhar sobre a música e sua relação afetiva com a pista. A gravadora, fundada ao lado de Gramrcy, nasceu em 2017 com o propósito de lançar suas produções autorais e também servir como uma plataforma para a fluidez criativa de outros artistas, como Saoirse, Ciel, Call Super e Mor Elian.

A Peach Discs sintetiza com maestria a personalidade de Shanti: colorida, leve, intuitiva e potente na pista. Um selo que prioriza a autonomia criativa, o prazer de criar e que enxerga a música eletrônica como expressão emocional antes de virar qualquer espécie de produto. Em uma entrevista concedida à Mixmag em 2017, Shanti comentou que só compõe quando está de bom humor, geralmente nas manhãs, quando a mente ainda está livre do excesso de informações recebidas durante o dia. Evita entrar no estúdio quando se sente triste, ansiosa ou sobrecarregada, pois acredita que o som reflete diretamente o estado emocional do artista. Essa relação até um pouco terapêutica com o ato de produzir explica a leveza e a naturalidade que permeiam suas criações.

Shanti é uma artista que acende a criatividade através do movimento e nesse anseio compartilhar novas formas de expressão por diferentes caminhos através da música lançou seu primeiro álbum em 2019, intitulado Tangerine, justamente pela Peach Discs. O trabalho marcou um momento de amadurecimento artístico e revelou uma artista em plena sintonia com suas referências e intuições. As faixas, que transitam entre o House e o Ambient, exploram diferentes atmosferas e texturas, mesclando vocais, flertes com Hip-Hop, elementos do Jungle e do Acid em uma combinação dançante, emocional e inventiva. O disco também traz fragmentos de sua origem: parte dos sons de percussão foi gravada no Chile, na casa de seu pai, com uma kalimba, instrumento que ela associa à infância e à simplicidade.

Tangerine foi amplamente elogiado pela crítica especializada, que destacou a coesão emocional do trabalho, sua habilidade em renovar sons e estilos já estabelecidos e equilibrar introspecção em uma proposta mais groovy. Publicações no Resident Advisor, DJ Mag, Pitchfork e The Guardian classificaram o álbum como um dos registros mais marcantes, sensíveis e coerentes daquele ano, apontando Shanti como uma das vozes mais autênticas e consistentes da nova geração do House global.

Dito e feito. De lá pra cá, Shanti Celeste cresceu exponencialmente e passou a ocupar os lineups dos festivais mais prestigiados do mundo, a exemplo do Sonar, Glastonbury, Nuits Sonores e Dekmantel —- onde se apresentou no Brasil pela primeira vez, na edição realizada em São Paulo, em 2017 —-, expandindo sua base de público sem abrir mão da proximidade com a cena independente que a formou como artista. Em 2022, alavancou essa onda de reconhecimentos ao lançar a faixa Cutie pela Hessle Audio, gravadora de Ben UFO, e assinar remixes para Mathew Jonson, na faixa Marionette, e para Orbital, na faixa Are We Here? (30 Something), reafirmando sua presença à altura de big names da música eletrônica e uma vasta leitura de pista e estúdio, do House ao Electro, do Cosmic ao Melodic. 

Com o tempo, o desejo de se reinventar voltou a falar mais alto. Neste ano, em maio de 2025, Shanti lançou Romance, seu segundo álbum pela Peach Discs, onde expande os limites do que já havia apresentado em Tangerine. O novo trabalho é mais voltado à introspecção, em que as melodias dividem espaço com o minimalismo e com seus próprios vocais suaves em diversas faixas. A artista parece, aqui, buscar o oposto do que se espera dela, direcionando uma pausa dentro do movimento, um tempo para respirar. Em entrevistas recentes, Shanti descreve esse momento como um retorno ao instinto: “Quando parei de pensar sobre o que esperavam e voltei a criar apenas pelo prazer de criar, as ideias voltaram a fluir.”

Para quem deseja acompanhar essa nova etapa de sua eterna metamorfose criativa, a oportunidade está próxima. No dia 14 de novembro, Shanti voltará ao Brasil para se apresentar em São Paulo no evento Gop Tun x Ten Years of Gala. Este será seu segundo ano consecutivo se apresentando em eventos da Gop Tun, que trouxe a artista para o lineup da edição Danceteria, em dezembro de 2024, reforçando sua relação próxima com o público brasileiro, que reconhece em sua sonoridade esse equilíbrio entre emoção e lívre-arbítrio — os mesmos elementos que a tornaram um dos nomes mais singulares da música eletrônica atual.

Diante de tudo isso, a maior lição que podemos tirar dessa trajetória até aqui é de que Shanti Celeste aprendeu a transformar cada fase da vida em arte. Sua música carrega a clareza de quem entende que alegria e introspecção podem coexistir, e que nesse contraste nascem as cores que definem sua identidade, como se o que expressa na música pudesse ser medido em tons e intensidade, no estado mais puro de sinestesia. A maturidade não apagou o brilho das primeiras composições, apenas ampliou sua paleta. Shanti toca e produz a partir do que sente, com a leveza de quem se move por deleite e a liberdade de quem sabe que é o movimento que faz com que tudo continue fazendo sentido.

A MÚSICA CONECTA 2012 2025