Skip to content
A música conecta

unfazed, David Guetta: o mundo de olho no Brasil

Por Alan Medeiros em Xpress 02.06.2025

Na última sexta-feira, David Guetta lançou oficialmente o seu remix de A Gira, faixa do produtor brasileiro unfazed que havia conquistado as pistas e redes sociais poucos meses antes. O projeto é assinado pela Spinnin’ Deep e carrega um simbolismo particular: trata-se de um dos artistas mais populares do mundo se aproximando de forma espontânea da produção de um artista brasileiro, reconhecendo ali sua potência criativa.

A ideia partiu do próprio Guetta, que se declarou impactado pelo original: “Sempre amei a original ‘A Gira’ de unfazed. Não pude resistir em adicionar meu próprio toque, justo a tempo para a temporada de festivais!” O vocal da faixa, por sua vez, tem raízes profundas na cultura musical brasileira: foi extraído da música A Gira, lançada em 1973 pelo Trio Ternura, grupo carioca que se destacou por mesclar Soul, Samba e influências afro-religiosas em suas composições. Com arranjos marcados por percussões de terreiro e uma aura espiritual, a faixa original evocava a ancestralidade negra e referências espirituais, inserindo elementos das religiões de matriz africana num contexto musical popular.

O que vale a pena ser destacado aqui não é apenas a conquista de um remix deste calibre, mas o gesto em si. Quando um dos maiores nomes da música eletrônica global se aproxima, por vontade própria, do trabalho de um artista brasileiro ainda em ascensão a nível internacional, há algo a se notar. Guetta não escolheu uma faixa pop ou um nome consagrado no mercado, escolheu A Gira, com seu recorte rítmico particular. Em um tempo em que as fronteiras entre o mainstream e o underground se confundem cada vez mais, esse tipo de escolha revela o poder de hits que contam histórias com um toque de singularidade. 

O episódio ganha ainda mais força quando observamos o panorama geral da música eletrônica brasileira na atualidade. Vintage Culture e Alok, artistas com enorme apelo popular dentro do país, mantêm carreiras internacionais em constante expansão. No circuito mais voltado ao underground, nomes como Badsista, RHR e Omoloko seguem sendo referências no circuito, dentro e fora do Brasil. Beltran, Classmatic e Roddy Lima têm acumulado apresentações relevantes nos Estados Unidos nos últimos meses, enquanto Mochakk vive grande protagonismo, recentemente lançou um EP pela Ninja Tune e realizará seu próprio festival na Europa neste verão. Trata-se de um terreno fértil e ainda em expansão, mas é possível confirmar que a presença brasileira no cenário global já não é exceção: é um movimento em curso.

Esse movimento de reconhecimento global também pode ser observado em outras linguagens. No universo da moda, por exemplo, a ascensão do chamado Brazilian Core — termo que vem sendo usado para descrever uma estética que valoriza elementos visuais, sociais e simbólicos do Brasil — ajuda a explicar esse olhar estrangeiro curioso e, por vezes, encantado com a expressividade brasileira. É como se o país, com todos os seus contrastes e potências, oferecesse ao mundo uma espécie de idealização criativa própria, difícil de replicar.

Essa projeção não surgiu do nada. A identidade cultural brasileira sempre foi permeada por uma capacidade ímpar de gerar empatia, uma disposição afetiva que encontra paralelo em poucos lugares do mundo. Não à toa, o Brasil foi e ainda é berço de movimentos sonoros que dialogam com públicos diversos. Do samba à bossa nova, dos ritmos regionais à música urbana contemporânea, existe uma fluidez rítmica que gera identificação imediata, mesmo para quem não fala a língua. Essa conexão emocional, que pulsa na nossa música, sempre esteve presente e apenas esperava o tempo certo para se ampliar.

Nos últimos anos, o avanço do Funk como linguagem global foi decisivo para isso. Embora exista um claro distanciamento entre o som de unfazed e o universo do Funk, o fato é que a globalização desse estilo abriu caminho para que a produção musical brasileira voltasse a ser observada com atenção no 360 do mercado fonográfico. O funk evidenciou o Brasil como um celeiro de inventividade e potência sonora, abrindo portas para que outros artistas também se beneficiassem desse olhar mais generoso, mesmo que trafeguem por caminhos distintos.

Importante lembrar que quando um artista brasileiro conquista espaço em gravadoras influentes, festivais de renome ou circuitos consolidados, isso não ocorre no vácuo. Existe um acúmulo simbólico em jogo. É como se cada conquista validasse não só aquele artista, mas também o imaginário de uma nação criativa que já impactou o mundo em diferentes momentos da história e que agora retorna com novas linguagens. 

O remix de Guetta, nesse contexto, é bastante relevante. É um símbolo do quanto o Brasil tem sido capaz de atravessar fronteiras com ideias próprias, construindo tendências com suas influências internas. Se as plataformas digitais de conteúdo muitas vezes impõem modelos de criação e consumo, a arte segue encontrando brechas. E quando um remix como esse ocorre, ele também funciona como brecha: entre o que o mercado espera e o que faz sentido genuíno para o público e para os artistas que estão envolvidos. Por que mesmo no mainstream, esse é um fator que muda o jogo. 

É nessas intersecções que o futuro se forma. Um futuro onde artistas como unfazed não precisam ser exceção, mas parte de um novo momento, que esperamos que seja cada vez mais forte. Onde a criatividade brasileira não é apenas celebrada, mas também compreendida e respeitada em sua densidade. Esse momento não é fruto do acaso. É o resultado de anos de construção, erro, acerto e insistência de artistas, selos, coletivos e públicos que acreditaram que havia algo em nossas pistas e que o mundo ainda precisava ouvir.

A MÚSICA CONECTA 2012 2025