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A música conecta

Alataj entrevista Jup do Bairro

Jup do Bairro - Créditos: John Halles
Por Inacio Martinelli em Entrevistas 26.09.2019

Foto de capa: John Halles

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Jup do Bairro é uma lutadora de artes marginais, como ela mesma diz. Vinda da periferia de São Paulo, a multi artista autodidata já atuou como educadora, palestrante, stylist, atriz, performer, produtora e cantora. Nos últimos anos, se firmou como uma das principais figuras da cena paulistana, sendo uma importante voz pelos direitos das pessoas trans. 

Ao lado de Linn da Quebrada, sua parceira de longa data, se apresentou em cidades como Amsterdam, Lisboa, Copenhague, além do icônico Berghain, em Berlim, e Unsound Festival, na Krakóvia. O mais recente território ocupado pela dupla foi a televisão, com o Talk Show TransMissão do Canal Brasil, por onde passaram convidados como Fernando Haddad, Rincon Sapiência, Letrux, entre outras. Como se não fosse o bastante, ela ainda compõe a dupla Bad do Bairro, ao lado da DJ BADSISTA.  

+++ Leia também nossa entrevista com BADSISTA

Créditos: Divulgação

Sua mais nova empreitada é o EP Visual Corpo Sem Juízo, que teve o primeiro single, produzido por BADSISTA, lançado em junho. Independente e financiado através de uma plataforma de crowdfunding, o projeto ultrapassou a meta estabelecida com o apoio de mais de 730 doações. Definido como “uma celebração coletiva em formato de áudio e vídeo com minhas memórias e experiências, criações autodidatas e contracultura sobre as dores e delícias de sermos nós mesmas”, o EP Visual será um importante marco na carreira solo de Jup.

Batemos um papo com ela sobre o lançamento, ativismo, seus diversos projetos e a sua vida de artista marginal. Confira abaixo:

Alataj: Você descreve o EP Visual – Corpo Sem Juízo como uma celebração coletiva de suas memórias e experiências em áudio e vídeo. Dar vida ao projeto de forma colaborativa, através de um crowdfunding, é o primeiro passo da ideia de coletividade que permeia o EP? Quais são os próximos?

Jup do Bairro: Quero que Corpo Sem Juízo seja uma demonstração do que nossos corpos podem fazer junto e que o meu seja canal para outras vidas, outras frequência. A proposta de fazer um EP visual foi bastante audaciosa, em inúmeros momentos me questionei sobre o que eu era capaz de fazer caso não atingíssemos a meta do financiamento coletivo e percebi que nada, sozinha nada. É muito importante sabermos a nossa responsabilidade em criar um novo imaginário, novas possibilidades. Se um sonho sonhado junto pode se tornar realidade, podemos materializar novos formatos de trabalho, protagonismo e representatividade que não apenas represente, mas mova e comova. 

E foi isso que minha pequena/grande equipe fez e faz comigo. Izabela Costa (imprensa), Bia Bem (mídias sociais e engajamento), Felipe Damasco (auxiliar artístico e produção) e Thiago Felix (produção executiva) são fundamentais para a criação de tudo que estou fazendo e é muito importante nomear quem está por trás da arte que chega até os LCDs e visores, isso é nova estratégia de crescimento e sociedade coletiva, sabe? E precisamos parar com a falsa simetria de nos colocar no lugar dos outros, com dó, isso é muito cruel e egoísta. Devemos nos colocar em nossos próprios lugares, identificar o que podemos fazer com nossos acessos e privilégios como agentes políticos.

A versão original de Corpo Sem Juízo foi lançada em 2007. Quais as principais diferenças entre o que podia um corpo sem juízo naquela época e o que pode atualmente? Na sua opinião, o Brasil avançou no que diz respeito à liberdade e respeito à todos os tipos de corpos?

Em 2007 eu comecei a escrever, sem muitas projeções, eu queria apenas externar o que estava sentido. Muitas questões se tardam quando se é pobre e de periferia, desde questões básicas da biologia até descobrimentos mais internos de identificação e subjetividades. Tudo isso é muito podado para nós, muitas vezes começamos a descobrir as emergências do nosso corpo através de monólogos e sendo referência pra nós mesmas. Autoconhecimento. 

Acredito que bastante coisa mudou desde que comecei compor, em ambos os lados. A evolução e opressão caminham juntas, principalmente em um país colonizado, de uma história contada por apenas um lado, um país sem memória. Não é atoa que ouvimos com frequência de “temos a sensação que progredimos e regredimos em grande escala ao mesmo momento”, o passado se repete por essa falta de memória. 

Ainda se é questionado o fator de cotas por conservadores, ainda temos um plano de genocídio latente da população negra, existe uma criminalização velada por corpos dissidentes. A luta de quem veio antes de nós nos fez ter mais direitos, acessos, trabalho… Não podemos deixar de lutar por isso, a raiva é muito importante, a revolta é muito importante, elas servem de combustível para avançarmos. Infelizmente ainda não consigo ver revolução passiva. “All you need is love”, afeto, dignidade, saúde e dinheiro.

Créditos: John Halles

Na nova versão de Corpo Sem Juízo foram inseridas as vozes da escritora Conceição Evaristo e de Matheusa Passareli, mulher trans que foi brutalmente assassinada ano passado no Rio de Janeiro. Poderia falar um pouco mais sobre a importância de ambas as intervenções na música?

Em vida, Matheusa e eu sempre questionávamos a coincidência dela ter um manifesto chamado Corpo Estranho e eu Corpo Sem Juízo e isso sempre foi presente na minha memória. Depois dela ter sua trajetória interrompida isso foi muito mais urgente pra mim, senti muito a perda dela. Depois de um tempo, construindo Corpo Sem Juízo pedi para Gabe Passareli, sua irmã, que me mandasse áudios dela. Ao ouvir me emocionei e BADSISTA e eu começamos a ouvir o que iríamos usar. 

No caso da Conceição Evaristo, eu sempre fui uma admiradora árdua das suas escritas e sempre me imaginei fazendo algum trabalho com a Conceição, mas ainda não sabia o que exatamente. Resolvi falar com a Tainá, minha amiga e sobrinha da escritora, que intermediasse uma proposta para que eu pudesse ter alguma frase de algum de seus textos. E pra minha surpresa, em uma tarde escura, Tainá me manda um áudio com mais de três minutos e eu fiquei pensando no que poderia ser e fui ouvir rapidamente. Era a Conceição recitando o texto que inicia a música, e ao final, disse que eu poderia fazer uma compilação do que achava importante. 

Fui às lágrimas, fazia tanto sentido pra esse trabalho, juntamente com a fala da Matheusa, fala sobre mim mas não só, fala sobre nós, nossos corpos. Ao ouvir a música pronta eu tive o entendimento da importância de esperar tanto tempo pra lançar algo, eu não mudaria nada.

Créditos: Jefferson Caodenado

O seu trabalho é marcado por um forte teor político. O que vêm primeiro: a Jup artista ou ativista? É possível separar uma da outra?

A minha arte é baseada no meu discurso e venho aprendendo que criamos a nossa realidade a partir do nosso discurso interior. Acho difícil desvincular uma coisa da outra por tudo se encontrar num canal político que sou eu. Independente se eu fale sobre amor, sobre dor, sexo, passarinho azul ainda terá cunho político e ativista sabe? Sou uma existência que está pressuposta ao entretenimento sem ser nomeado de arte, principalmente pelo fato do autodidatismo. Sou lutadora de artes marginais, minha maior arma é minha fala, minhas vivências, coisas que só eu poderia dizer e produzir enquanto indivíduo.

Você é parceira de longa data da Linn da Quebrada, tendo participado ativamente do álbum Pajubá e se apresentado ao lado dela pelo Brasil e Europa. Você considera o seu novo projeto uma extensão de seu trabalho com a Linn? De que forma eles se complementam e no que se diferenciam?

Apesar de toda a minha parceria com a Linn, temos trabalhos bastante diferentes um do outro. Uma coisa é o que a Linn faz, outra é o que eu faço e uma outra é o que fazemos juntas. Por isso é importante reconhecer as diferenças e foi o que fez a gente fazer tantos projetos juntas e separadas. Antes da Linn começar a cantar, eu já cantava. Então foi um compreendimento mútuo de aprendizagem e evolução. O que nós fizemos e fazemos só nós duas poderíamos fazer, outra função seria diferente por conta da individualidade de cada pessoa, pensamentos e vontades.

Desde junho, vocês duas apresentam o talk show TransMissão no Canal Brasil. Como foi a experiência de ocupar a telinha e qual a sua entrevista preferida?

Antes de surgir o convite oficial para o TransMissão no Canal Brasil, eu estava com planos de iniciar meu primeiro talk na internet com formato de um programa matinal da TV brasileira chamado BonJUrP, um episódio foi pro ar e foi onde anunciei o lançamento do clipe de Coytada da Linn da Quebrada com entrevistas, gincanas e muito humor. Depois que oficializaram o convite eu fiquei muito emocionada e tive que parar a produção do meu programa solo, juntei forças com minha parceira e embarcamos em mais um desafio de nossas carreiras. 

Foi uma gravação intensa, três entrevistas por dia, todas elas de uma profundidade individual pois como não contávamos com roteiro e perguntas fechadas, o papo fluía sem que imaginássemos onde iria parar. É muito difícil escolher alguma entrevista, todas elas têm uma particularidade e se acham que já viram tudo, os próximos convidados ainda vão surpreender muito. 

Para finalizar, uma pergunta pessoal. O que a música representa na sua vida?

A música pra mim é possibilidade, é cura, autocuidado, zelo, colaboração, celebração e comprometimento.

A música conecta.

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