Skip to content
A música conecta

Uma Arruaça toma conta de Porto Alegre

Por Redação Alataj em Troally 19.09.2016

Por José Augusto Castelan:

É bem complexo falar sobre a rua, concorda? O espaço público traz tantos questionamentos e nele ocorre um sem fim de situações relativas a nós ou não que parece difícil resolver tudo e ter uma rua que seja para todos. Mas, acredito que podemos ir trabalhando questão por questão abertamente, até que a gente não precise mais pensar na rua como um lugar inseguro e terrível. De uns tempos pra cá, Porto Alegre vem presenciando uma mudança lenta, provocada por iniciativas de ocupação do espaço público, cada uma trazendo novas pautas e suscitando novos debates. Temas como iluminação pública, limpeza das ruas, a ausência de cultura e a repressão do poder público, dentre outros, foram sendo alimentados e cada vez mais debatidos de uns 5 anos pra cá na capital gaúcha. Hoje vamos mostrar o trabalho do Coletivo Arruaça e como eles enxergam toda essa situação. Conversei com a maioria dos integrantes durante a gravação da guestmix deles para o NAS Radio Show #100 e consegui entender melhor de onde veio, para onde vai e o que move essa galera.

Tudo começou mais ou menos no curso de Psicologia da UFRGS, onde Gabriel Bernardo (GB), e Ana Posada (Posada), junto com mais um amigo, formaram o coletivo e em março de 2014 realizaram o primeiro evento na rua. A ideia era fazer festa na rua em uma época que este tipo de movimentação vinha ganhando força e havia um contexto problemático com a noite da cidade. Após o trágico incêndio na Boate Kiss, em Janeiro de 2013, a fiscalização no bares e casas noturnas fechou muitas casas em períodos variados. Além disso os preços nas casas noturnas estavam altos, criando um contexto de insatisfação de uma parte da população que saía a noite.

Foto da primeira arruaça.

Em meio a isso surge o Coletivo Arruaça, junto com outras iniciativas análogas na cidade como o Largo Vivo, fazendo festa na rua com música boa e o melhor de tudo: de graça. Os integrantes sentiam uma insatisfação também com as agendas das casas, que pouco exploravam diferentes vertentes fora do eixo comercial, dando ainda mais sentido a essa nova movimentação nas ruas de Porto Alegre.

O primeiro evento rolou em março de 2014 na Praça Brigadeiro Sampaio, no centro histórico de Porto Alegre, próximo às obras abandonadas do aero móvel, com um público bom e aí já trazendo observações políticas e sociais que formam os porquês do coletivo, além, é claro, de boa música. Nos eventos da Arruaça, independente do formato, as pessoas frequentam espaços públicos que normalmente não frequentariam à noite por falta de segurança ou iluminação, mas durante uma festa o aglomerado de pessoas ali presentes acaba invariavelmente formando um senso comunitário no grupo. Quem vai de bike amarra suas bicicletas juntas e ajudam a cuidar das mesmas, quem vai a pé forma grupos pra chegar no evento e em casa com segurança, e hoje em dia chegam junto também barracas de cerveja artesanal, vendedores ambulantes, moradores de rua e do entorno, e tudo isso com trilha sonora ao vivo.

Estas são apenas algumas das coisas sensacionais que acontecem quando rola uma festa na rua, mas o questionamento que se busca aqui é: será que a rua é só um lugar de passagem?

Pense bem, o local que você frequenta ou passa próximo durante o dia também é habitado durante a noite e a madrugada, porém por outras pessoas, que não você ou aqueles que você enxerga no dia a dia. Independente do espaço público que estamos falando, pessoas habitam e utilizam esse lugar, então porque eu não cuido dele da mesma forma que eu cuido do que é só meu? Será mesmo que devemos deixar nossas prefeituras cuidarem de todos os problemas nos espaços públicos?

Vivemos sobrecarregados com informações e voltamos nossa atenção para o malabarismo entre computadores, smartphones, nossos trabalhos, cuidados com nossos lares, e acabamos dando pouquíssima importância para o palco de todas essas interações: nossa cidade. E quando paramos para pensar no espaço público, geralmente é porque ele nos afetou de alguma maneira, tornando a relação entre as pessoas e a cidade algo pautado no individualismo. Este tipo de evento traz à tona realidades que nem sempre as pessoas estão dispostas a enfrentar, mas criar tensão é justamente o objetivo aqui. Muitos se chocam ao participar de um desses eventos de rua, pois ocorre uma quebra do mito de que certos espaços públicos não são ocupados, pois eles de fato são ocupados, mas talvez eu não conheça quem ocupa.

Dentre as várias edições, algumas trouxeram documentários sobre música em projeções na rua, outras trouxeram live sets de artistas locais, já houve convidados como a Cashu da Mamba Negra (que fez um set de 3 horas!), edição em Belo Horizonte com a galera do 1010, também no centro de São Paulo junto com a Caldo e a Cracofonia (batizada de Fuso), e a histórica edição na Praça da Alfândega em Porto Alegre, onde foram gravadas cenas para o documentário “Ruas em Transe” sobre festas de rua.

Os eventos promovidos pelos arruaceiros tem um intervalo médio de 2 meses, acontecem em locais variados da cidade, e a movimentação gerada começou a trazer novos integrantes. Gostaria de lembrar que o título de coletivo não é a toa, o grupo considera integrantes também os frequentadores assíduos, DJs e entusiastas musicais que se aproximaram a cada edição, e também alguns moradores de rua que de tão felizes com os eventos, aparecem para ajudar no que for preciso, do início ao fim. Cada um traz um novo tempero para a mistura, fazendo com que os valores e backgrounds variados dos integrantes (que passam por house, techno, cumbia, música brasileira, violino clássico, DJismo, e muita força de vontade) formem uma identidade coletiva heterogênea porém, consistente.

Em mais de 2 anos de existência, os eventos trouxeram sonoridades variadas, tendo edições voltadas para o Dub e o Reggae, música brasileira, bandas, mas sempre mostrando também a mistura destes gêneros com o house e o Techno. No caminho foram entrando novos integrantes ativos como o BrunoRdeF, a Nalu, a Kika, o Flávio Albin, e a evolução agora está passando por sets sérios e bem construídos, fruto da soma de experiências e habilidades presentes. Os caras tem até QG no centro histórico, a Goma Rec, um apartamento no coração da cidade onde o pessoal se encontra pra virar sons e trocar ideia, às vezes rolando até transmissão ao vivo.

Essa massa toda ainda é formada pelo vocabulário usado pelos membros e amigos. A dita “atrapalhação” é um signo do grupo que representa justamente como eles operam, mas não leve a mal, todo mundo se atrapalha pela vida e o termo reflete essa maneira de viver de algumas gerações. Segundo os Arruaça, é uma forma de desopilar, de se dar o direito de romper um pouco com o dia-a-dia, deixar marcado no seu calendário que sexta à noite você vai pra baixo de um viaduto ouvir música eletrônica e se atrapalhar todo, mas não tem problema nenhum. Eles também falam em “inventar moda”, que diz muito sobre estar rodando a cidade às 2 da manhã pra buscar equipamento, ou também sobre decidir marcar um evento que acontecerá amanhã, mas mesmo assim aparece bastante gente e todo mundo se atrapalha junto, entendeu?

Pode ser que não dava pra entender 2 anos atrás, ou que ainda hoje pareça tudo muito mal explicado, mas o Coletivo Arruaça vem construindo um trabalho que contribuiu e ainda contribui para um retorno muito positivo do Techno e da House Music na cidade e cada vez mais no Brasil. Não se está tocando na rua mais do mesmo, são sons novos, timbres experimentais, graves que vibram o concreto da cidade lembrando outras épocas áureas da música eletrônica em Porto Alegre, que ataca novamente e repaginada, fazendo o gaudério amarrar o cavalo, colocar uma dose de vodka na cuia e dançar na rua até o sol raiar todo atrapalhado. Mas antes de sair da praça, por favor limpe todo lixo que você produziu e contribua para uma cidade mais limpa, viva, e que se conhece na rua. A música – e a rua – conectam as pessoas! 

Acompanhe o coletivo no Facebook.

A MÚSICA CONECTA 2012 2024