Você achou que abriria esta matéria e me encontraria escrevendo sobre música eletrônica, mas na verdade eu vim aqui falar sobre Biologia. Sim, meus caros, Bi-o-lo-gi-a. Mais especificamente sobre um tema que todos nós aprendemos no colégio e é pilar dessa disciplina e base de nossas vidas enquanto seres vivos: as células. Não, eu não estou ficando louca e prometo que valerá a leitura, então acompanha mais um pouco que logo tudo fará o maior sentido.
Células são as unidades estruturais e funcionais de todos os seres vivos, ou seja, tudo o que possui vida no ecossistema é formado por células. Alguns seres possuem um único tipo, outros são formados por centenas de células diferentes. Cada uma delas possui um núcleo, região que carrega um material genético (DNA) e que é capaz de ser transmitido quando se multiplica. E agora é a hora que você me pergunta: tá Laura, e o que isso tem a ver com música eletrônica? Ao meu ver, tudo.
Olhando por um panorama um pouco diferente, nós amantes e profissionais da música vivemos em um ecossistema que geralmente chamamos aqui de cenário. No cenário eletrônico mundial poderemos dizer que tudo o que possui e dá “vida” a ele é composto por essas células, o que eu as chamarei aqui de sub-cenários e que são compostos por artistas, estilos musicais e o que decorrer deles através dos clubs, eventos, labels. Cada uma dessas células possui seu núcleo que carrega um DNA. Estes núcleos nada mais são do que os projetos/eventos que você se identifica, acompanha, participa e fomenta, cada um deles com a sua carga genética que transmite e multiplica suas ideologias, sejam elas musicais ou não. Fez sentido pra você?
Como os núcleos da disciplina da biologia nascem já é outra história, mas no caso do ecossistema da música eletrônica os núcleos podem nascer por diversos fatores. Há quem aplique o pragmatismo e diga que o núcleo nasce da observação de uma lacuna cultural, estrutural ou musical em um determinado cenário, vendo ali uma oportunidade de negócio. Há quem veja por um lado mais romântico e atribui o nascimento de um núcleo da necessidade de compartilhar o amor à música e apenas isso. Há quem veja de maneira profissional e entenda que estes projetos são imprescindíveis para dar visibilidade a artistas regionais, impulsionar suas carreiras, trazer estilos sonoros à região e lapidar o gosto musical do público. Há ainda quem veja através de um olhar econômico e busque obtenção financeira, apenas.
A verdade é que mesmo que seus idealizadores tenham um viés principal na hora de criar um núcleo, todos esses fatores acima estão aliados e vem juntinhos em um grande pacote. Pode-se até fazer apenas por amor à música, mas precisará se organizar economicamente para tirar seu projeto do papel e mantê-lo. A intenção é ganhar dinheiro, mas automaticamente vai impulsionar artistas. Pode ser que se enxergue uma oportunidade de trazer algo novo no mercado, mas ainda assim o fará quase sempre dentro de uma linha sonora que agrade.
Um núcleo é capaz de revolucionar um cenário de uma região e aí é que se encontra seu DNA, ou seja, seu propósito enquanto projeto. Pode trazer novas experiências, estilos musicais inovadores, abranger um público diferente, mudar a forma de se enxergar uma prestação de serviço ou disseminar ideologias – sejam elas políticas, sociológicas e de redução de danos. Ele também movimenta uma rede muito importante de artistas que são a base musical daquela região e trazem a informação sonora ao público, podendo, em alguns momentos, revelar figuras à outras pistas de dança e alavancar a carreira de alguém que talvez sozinho teria muito mais dificuldade para fazê-lo.
Hoje, com a efervescente cena dos projetos independentes, os núcleos são peça-chave para a sustentabilidade do cenário eletrônico de muitas regiões e vem dando exemplo enquanto parceiros entre si, tornando ativa toda uma cadeia econômica não apenas através dos serviços necessários para fazer um evento acontecer, mas também de redes hoteleiras, transportes alternativos ou não, gastronomia e por aí vai. Os núcleos que trazem propósitos solidificados e alcançam o sucesso servem de inspiração e impulsionamento para outras pessoas tomarem a coragem de tirar seus projetos do campo das ideias e, voltando à Biologia, é aí que encontramos parte da sua multiplicação. Um grande exemplo são os núcleos paulistas, que deram o start em um movimento importantíssimo e que disseminaram seus conceitos em todo o Brasil.
E já que falamos em coragem, aqui está um ponto de extrema relevância porque… que coragem! Dar o start em um projeto desses é quase sempre um desafio imenso. Montar uma marca, dar um nome, buscar uma identidade visual e sonora, angariar público, fidelizar essas pessoas, manter o time de produtores unidos e com sintonia, lidar com todos os problemas que envolvem uma produção, erros, críticas, tomar alguns tombos financeiros (acontece com frequência e todos nós sabemos) e mesmo assim não desistir. Assim como escrevi no texto que falava sobre a função DJ, é lidar também com o preconceito de familiares e pessoas que acreditam ser essa profissão algo banal e sem relevância. “Você faz festa? Ah, então você nem trabalha, né, porque seu trabalho é festa”. Quantas vezes já se ouviu isso da boca das pessoas? Eu, particularmente, uma infinidade de vezes.
No fim, os núcleos são aquelas plataformas necessárias para proporcionar os momentos de escape que também comentamos no capítulo anterior dessa série. São nessas pistas de dança que o público esquece do mundo externo cheio de dificuldades e se concentram em viver o presente, abraçar seus amigos, beijar apaixonadamente, dançar como se não houvesse amanhã, como dizem por aí – eu digo, confesso – e dar aquele bom e necessário respiro para voltar à rotina. Honestamente, quando se enxerga a relevância de seu trabalho enquanto proporcionador desses momentos e vê a pista de dança cheia de sorrisos, o sentimento de missão cumprida derruba qualquer percalço que se encontre no processo da realização desses eventos.
Particularmente, meu coração ficou bem quentinho em cada parágrafo redigido nesta coluna porque, para quem não sabe, além de traduzir meu amor em palavras aqui no Alataj, eu também faço parte de um time maluco que um dia sentou entre amigos em uma mesa e disse “que tal se a gente fizesse?”. Que pensou tudo isso que descrevi acima e passou por tantas dificuldades para colocar um sonho e propósito de pé e mantê-lo ali, firme. Que hoje, mais do que nunca, entende que é uma célula dentre tantas outras que fazem parte de um “ser” cheio de vida e atua para se multiplicar através de boa música, bons conteúdos, transmissão de ideias, boas experiências e paixão pelo que faz, mantendo esse ecossistema musical ativo, sempre em movimento e em renovação constante. Aos que ainda não conseguiram ou não tiveram aquela coragem para botar em prática suas ideias de um núcleo, fica aqui meu empurrãozinho e incentivo para que o façam. Vale a pena. É engrandecedor e realizador. Eu digo que é tipo uma droga porque no fim é completamente viciante!

A todos esses loucos que nos fazem estudar essa Biologia, o agradecimento sincero do Alataj pelo trabalho importante que desempenham e nosso “até breve” com o desejo de que voltemos a nos encontrar e, como a gente sempre diz, nos conectar através da música.
A música conecta.