Há 20 anos a cena underground brasileira recebia um presente e tanto: surgia em Campo Grande/MT o D-EDGE através da mente visionária de seu frontman Renato Ratier. Em 2003, o club abriu sua filial no bairro Barra Funda, em São Paulo, local em que permanece até os dias de hoje. Com seu design arrojado, sound system de primeira e alguns dos DJs mais respeitados da cena global subindo às cabines, o club tornou-se referência mundial e até hoje tocar no D-EDGE é um objetivo de vida para qualquer artista.
Mas além da curadoria inteligente e avançada da equipe, um dos maiores destaques do club é, sem dúvidas, o layout futurista com leds, que desde o início foi assinado pelo carioca Muti Randolph. Ele estudou Comunicação Visual e Design Industrial na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e foi um dos pioneiros da arte em computação no Brasil, passando espaços virtuais 3D para ambientes reais, criando cenários, instalações e projetos magníficos através de seus “desenhos com luz”.
Em seu trabalho, ele explora a relação de tempo e espaço por meio de música e vídeo interativo usando softwares e hardwares personalizados, com projetos aliados a grandes marcas — como o festival Coachella e a São Paulo Fashion Week — e publicações em revistas especializadas de arte, além de um livro lançado, Timespaces, que cataloga boa parte de suas obras.
Em comemoração aos 20 anos do D-EDGE, nós tivemos a honra de conhecer um pouco mais de seu trabalho e realizar essa entrevista exclusiva falando sobre sua carreira e projetos do club. Confira!
Alataj: Olá, Muti! Muito obrigado por topar essa entrevista. Você desde a infância cultivava essa relação próxima com o audiovisual, mesmo que de forma ‘inconsciente’, até um jogo do Atari te influenciou neste sentido… como foi o começo da sua carreira? Seus estudos foram todos feitos no Rio de Janeiro? Quem foi seu maior incentivador/motivador na fase inicial da carreira?
Muti: Olá pessoal, obrigado pelo convite!
Quando eu ainda cursava Comunicação Visual na PUC/RJ, comecei minha carreira fazendo Design Gráfico, ilustração digital em 3D (desenhei uma série de capas de coletâneas em vinil, inclusive uma de Acid House que guardo até hoje), assim como manipulação e composição digitais, principalmente para o mercado de publicidade.
Eu era um dos únicos que fazia isso no Brasil na época, final dos anos 80, então tinha bastante demanda nesse mercado — comecei antes de existir Photoshop, tenho ainda a versão beta 0.9 do programa, de 1989… usava um precursor dele que processava imagens de 8 bits chamado Digital Darkroom, mas apesar de ser muito bem remunerado, trabalhando para as maiores agências e marcas do Brasil, chegou uma hora que eu cansei de realizar as ideias dos outros (que frequentemente nem eram originais).
Nessa época o gringo Cardia me procurou e encomendou uma alguma ilustrações para cenários. Fazer cenários para mim era uma maneira de poder entrar nas minhas ilustrações, e foi assim que eu entrei no mundo da cenografia. A maior incentivadora/motivadora dessa época foi a minha mãe, pianista, que até hoje me mantém próximo do universo musical. Sou um artista visual a serviço da música, tendo desenhado capas de discos, flyers, pistas de dança, palcos, shows, festas, concertos e óperas.

Acreditamos que sejam poucos os profissionais brasileiros que possuem um conhecimento tão avançado no universo da cenografia. Você acompanha o trabalho de algum artista que merece ser destacado?
Eu acompanho e admiro o trabalho de muita gente, de todas as épocas e estilos, e de muitas áreas, como cenografia, design, arte visual e arquitetura, além de música, claro. É uma lista enorme, e eu certamente cometeria injustiças citando só um.
Qual foi o primeiro projeto que realmente evidenciou seu trabalho? Como foi desenvolvê-lo?
O primeiro projeto que me botou em evidência como designer gráfico e cenógrafo foi justamente a minha primeira cenografia: o design do disco e do show Os Cães Ladram Mas a Caravana Não Para, do Planet Hemp. Na música final desciam uns baseados gigantes no palco, de até quatro metros, que acabaram trazendo problemas pra banda em Brasília na época. Foram presos por apologia às drogas. Era definitivamente um flagrante difícil de esconder.

Por causa do meu trabalho em cenografia para shows e TV, fui chamado pelo Cacá Ribeiro para fazer um projeto de cenografia para um club em São Paulo, a U-Turn. A ideia era mudar de cenário a cada temporada, mas eu acabei fazendo um projeto tão icônico e com tanta repercussão que durou até o final da existência da casa. Esta foi a minha porta de entrada para o design de clubs e da arquitetura de interiores.
Um projeto que me deu muita visibilidade, ainda na virada do milênio, foi o do estúdio de jornalismo da MTV, o Supernova, que tem muito a ver com o projeto do D-EDGE de Campo Grande. Aliás, foram estes três projetos (U-Turn, Supernova MTV e D-EDGE de CG) que foram publicados na minha primeira (de muitas) matéria na Frame, a mais respeitada revista de design de interiores na época, e possivelmente até hoje.

Você se declara um aficionado por tecnologia, mas também é muito ligado a natureza, principalmente às ondas do mar. Como cada uma dessas esferas influencia nas suas ideias?
O que une a paixão por tecnologia e pela natureza é a ciência. Sou aficcionado, acima de tudo, por ciência. Eu fiz Biomedicina no segundo grau (Ensino Médio hoje) e cheguei a entrar no curso de Biologia da UERJ, mas tranquei para fazer Comunicação Visual na PUC. Até hoje não sei se fiz a coisa certa. Acho que leio mais sobre ciência do que sobre arte e design — talvez até porque tenha muito mais literatura…
Não separo em minha cabeça a arte da ciência, humanas de exatas ou biológicas, aliás considero essa divisão nociva à academia e à sociedade. A verdadeira ciência, básica, livre de vieses mercadológicos e ideológicos, é talvez a maior forma de arte. O papel da arte afinal é, ou deveria ser, o de inventar novas formas de ver e entender o mundo, o universo, que é basicamente o que a ciência faz.
A Matemática é uma linguagem universal. Literalmente universal. Penso que se tivéssemos contato com ETs inteligentes, a primeira comunicação se daria através de números, formas geométricas e música, e a estrutura da música é matemática. O som, assim como a luz, é formado por ondas, sonoras e eletromagnéticas, que apesar de viajarem em velocidades muito diferentes e de terem naturezas diversas, tem também algumas características comuns que dividem com todas as ondas, inclusive as do mar.
Um tubo é uma arquitetura mágica em movimento, um salão de cristal líquido que se constrói e destrói continuamente durante sua breve existência. Um pouco como meus espaços mais ou menos efêmeros, que se redesenham a cada beat, em que ondas de som se transformam em ondas de luz.
Falando sobre o D-EDGE… como você conheceu Renato Ratier e como surgiu a ideia de assinar o layout do club, ainda lá em Campo Grande?
O Renato frequentava o U-Turn e foi assim que nos encontramos, no final dos anos 90. Ele me chamou pra desenhar seu club em Campo Grande. Enquanto muitos no meu lugar poderiam ter relaxado um pouco, por achar que qualquer coisa seria bem recebida em um lugar periférico, carente de vida cultural, eu vi ali uma oportunidade para criar algo novo, inédito não apenas no Brasil, mas no mundo.
Trabalhei incansavelmente com esse fim e talvez seja aí que eu conquistei o respeito e a amizade do Renato, com quem sigo fazendo lindos projetos até hoje, 20 anos depois. O resultado, além dessa bela parceria, foi um club com repercussão internacional naquela cidade.

Hoje a pista do D-EDGE reage de acordo com as batidas da música e é abraçada por milhares de luzes de led, criando uma arquitetura em fluxo. Fale um pouco mais sobre a concepção dessa ideia e sua conexão com a música.
O D-EDGE em São Paulo não foi apenas o primeiro club no mundo a usar LED em grande quantidade, mas o primeiro a ter um sistema de luz conectado ao sistema de som. A ideia de pegar aqueles displays de analisador de espectro sonoro de LED verde dos mini systems dos anos 80/90 e ampliar até ocupar todas as paredes da pista e do bar virou um ícone de pista de dança eletrônica no mundo todo.
Mais que este sistema, a maior inovação deste projeto de 2003 foi o conceito de linhas de luz RGB controladas digitalmente, que mais tarde se popularizou com o nome de tuboled, é usado até hoje em tudo que é club e festa ao redor do mundo, da mais mainstream a mais underground. Se eu tivesse patenteado isso estaria rico. Mas pouca gente sabe que quando inaugurou o D-EDGE SP em 2003, a luz do do grid da pista não era de LED – o custo era impeditivo na época – então criamos uma solução baseada em neon RGB (hoje foi tudo substituído por LED).
O projeto foi publicado pelas maiores revistas de design e arquitetura do mundo, foi capa da Frame, e até por isso foi copiado no mundo todo. 17 anos depois ele continua atual, mas aproveitamos a pandemia para finalmente fazer uma reforma ampla, que não muda o já clássico desenho original, mas amplia muito o seu alcance sensorial. O conceito de visualização de música inaugurado neste projeto foi o ponto de partida de um longo percurso que tenho trilhado.
O software que venho desenvolvendo desde então, baseado neste conceito, me permite hoje, além de barrinhas verdes, gerar objetos 2D e 3D de qualquer formato em tempo real, modificar geradores de partículas, modificar imagens fotográficas ou filmes, controlar equipamentos de luz e controlar scanners de laser. Todos estes elementos me permitem criar espaços em movimento, formados por ondas sonoras, que estão presentes em meus projetos de arquitetura, design, cenografia e instalações de arte.

Além do club, você já assinou outros projetos paralelos relacionados ao D-EDGE. Algum em específico foi mais desafiador? Por quê?
A longa parceria que eu tenho com o Renato e com o D-EDGE, pela qual sou muito grato, me permitiu ao longo dessa décadas experimentar e criar uma ampla gama de conceitos e tecnologias. A primeira foi o D-EDGE Concept, por exemplo, montada na The Week em 2008, ponto de partida para o projeto que eu montei dois anos depois no Coachella, na tenda Sahara de música eletrônica, que me trouxe grande visibilidade internacionalmente. A quantidade de projetos de pistas e instalações para o D-EDGE em festivais e eventos Brasil afora daria para preencher um livro, o que, aliás, não é uma má ideia…
Para finalizar: neste momento de pandemia, como tem sido sua rotina de trabalho? Você tem dedicado esforços a alguma intervenção ou projeto específico? Obrigado pelo bate-papo!
Estou isolado na serra fluminense com a minha mãe, que tem alto risco devido a idade avançada, e com minha filha mais velha. O mercado de festivais e eventos obviamente parou temporariamente, mas estou com dois projetos em andamento no sul do país, onde o isolamento foi levado a sério e como resultado a economia deve voltar primeiro que em outras regiões.
Fora isso estou finalizando o software para controlar o novo sistema da pista um do D-EDGE, e também tocando um projeto de cenografia de telejornal. Tenho aproveitado o volume menor de trabalho para me educar em algumas tecnologia novas, assim como organizar 20 anos de imagens digitais. Tenho também lido muito sobre ciência política, microbiologia e biologia celular, assuntos que sempre me fascinaram, em função da pandemia e do pandemônio político que vivemos.
Obrigado e um abraço!
A música conecta.