Chegamos ao oitavo episódio da série e, por vezes, me pergunto por que estou fazendo esses sets. Minha primeira hipótese é que, como estou mais tempo em casa, já há um ano, e sigo trabalhando à distância, tenho tempo e energia para um projeto “estético” que eu dificilmente realizaria se estivesse saindo para tocar. Já tive vontade de executar sets dedicados em alguma ocasião (um lugar como O Sítio, na Lagoa da Conceição, por onde já passei em algumas edições da Vinyl Jam, seria perfeito para isso), mas nunca levei a ideia adiante. Minha segunda hipótese é que fiz isso a vida toda, montar seleções, primeiro em fitas cassete, nos anos 80 e 90, e depois em CDs, e que continuarei fazendo enquanto for possível, pois é desse jeito que sempre ouvi música. Minha terceira hipótese é que, como nunca me dediquei à produção musical (não que não tenha tentado, mas logo percebi que o Ableton não era para mim) e tive formação universitária como pesquisador por um longo período, é praticamente impossível perder um hábito. Se um produtor chama a minha atenção, vou querer saber tudo o que ele fez. Entre produzir e ouvir, fiquei com a audição, e por isso considero um privilégio poder realizar este projeto. Não tracei uma ordem para executar a tarefa, não faço muita ideia de quem será no mês que vem. Mas enquanto houver energia, tempo e discos, irei adiante.
Estou pontuando isso, na verdade, para dizer que estes não são os melhores produtores e nem são mais importantes que outros. São apenas alguns que ouço com mais detalhe, há mais tempo; que possuem uma obra significante e por isso vale olhá-la em conjunto, uma oportunidade que dificilmente surge: curar uma galeria.
O processo é lento: terei de ouvir todos os discos novamente e escolher o que vou tocar. Testar mixagens, lidar com o erro, fazer de novo e me concentrar o suficiente para não perder o flow. Preciso manter o controle das tracks que já toquei, e, conforme alista avança, as possibilidades de mixagem diminuem e as de erro aumentam. Tornou-se uma espécie de jogo, com graus de dificuldade distintos (acontece de tudo, desde a gata que resolve passar pelas minhas pernas no momento mais tenso da mixagem até o gravador que resolve ficar com metade do sinal em um dos canais por alguma razão do acaso etc.). Penso também que, se o produtor dedicou horas, dias, meses, por vezes anos até terminar uma track, o mínimo que um DJ pode fazer é mixá-la corretamente.
Daqui a alguns dias a equipe do Alataj me perguntará qual o próximo e eu lançarei como um desafio que ocupará boa parte do meu tempo livre nas próximas semanas. Quando o mix termina, então eu sento e escrevo algumas impressões – que não são a história do DJ, nem a história da música eletrônica. Eu falo dos discos e de memórias por vezes relacionadas a eles. A imagem que construímos em torno de uma sonoridade ou de um artista é sempre particular e por aí elaboramos o objeto. Nesse sentido toda crítica é sempre pessoal, parcial, impressionista e portanto limitada a essa galáxia particular.
Nick Höppner
Tenho profunda admiração por Nick Höppner. Em 2018 fui convidado para abrir a pista numa de suas apresentações no Brasil, mas a vinda acabou postergada. Seu primeiro EP solo, Who Needs Action, data de março de 2007, justamente quando comecei a pesquisar Techno com mais seriedade. Lembro de tocar algumas vezes o lado B deste EP, a faixa Violet, mas só dois anos depois é que me tornei um seguidor frequente das produções de Nick.
Em vídeo recente no YouTube, o canal Dub Monitor lançou a hipótese de Fred P como um produtor de House e Deep House que qualquer ouvinte sério de Techno acompanha. Eu concordo com a ideia e acho que Nick Höppner possui o mesmo estatuto. Ambos são da mesma geração de produtores, embora nunca tenha percebido qualquer contato entre eles além da track Project 05 de Fred no quinto volume da série Panorama Bar, assinado por Steffi.
“Nick Höppner habilmente equilibra, explora e contribui para uma gama dramaticamente ampla de profissões musicais.” – (da biografia no Resident Advisor)
Morando em Berlim, Nick é residente do Berghain/Panorama Bar e lança regularmente no Ostgut Ton, selo atrelado ao Berghain e o qual operou como manager por cerca de dez anos. Ele tem uma agenda de gigs frequente (até 2020, claro), e isso tudo desde o início dos anos 2000. Notícia mais recente é o Touch From A Distance, seu próprio selo, que surgiu paralelamente à sua saída como gerente do Ostgut Ton.
Reconstruindo pela linha do tempo no seu perfil do Discogs, o primeiro release de Nicolas Höppner surge em 2004, pelo selo Liebe*Detail. Trata-se de um split EP: o lado A com uma track do duo alemão Error Error, e no B, November Rain, assinada por Nick. Daí até 2007, os trabalhos seguintes são no grupo My My, formado por ele e mais Lee Jones e Carsten Klemann, e que esteve ativo entre 2006 e 2009, denominado como um projeto alemão de Techno, de Berlim, com um álbum e oito singles.
Em 2009 sai um EP sem título, conhecido pelo nome das tracks que o compõem, Makeover/Foundling, também pelo Ostgut Ton (assim como a maioria dos releases de Höppner), e desde que esse EP saiu eu nunca consegui parar de tocá-lo. Em duas tracks completamente distintas, o EP é uma síntese da música produzida por Nick ao longo dos últimos 15 anos. Makeover, no lado A, é uma faixa percussiva, com um pad completamente envolvente no fundo e vocal de uma só frase, ininteligível, capaz de movimentar qualquer pista.
Já Foundling, no lado B, é Techno sério, grave, uma explosão de white noises e altamente cerebral.
A meu ver, essa oscilação entre percussividade e linhas fortes de Techno é o caráter mais nítido da música de Höppner, e entre esses dois polos concentra-se toda a sua atividade. Da música ambiente ao Minimal, do Tech House ao Dub Techno, por vezes junto de uma sinfonia de elementos que posicionam seus trabalhos para muito além do espaço da pista.
Um exemplo forte dessa linha entre o Techno e a percussão orgânica é ISP, faixa que integra a exuberante e imponente coletânea Fünf do Ostgut Ton, em 2010: box de sete vinis com artistas que circulam pelo Berghain, em material altamente conceitual. Dentre eles estão Ben Klock, Cassy, Marcel Dettmann, Margareth Dygas, Prosumer, Ryan Elliott, Tama Sumo e outros.
Já toquei ISP tantas vezes e desejo poder tocá-la muitas vezes ainda. Lembrei agora de uma edição da TROOP, núcleo onde sou residente, em Curitiba, em agosto de 2014. Aliás, que saudade disso tudo… Na época desejávamos que os eventos fossem gigantes e importantes, e hoje queremos exatamente o que já tínhamos.
O mix
O mix inclui 40 tracks de Nick Höppner, entre produções próprias, remixes e trabalhos com o My My. Começamos com November Rain, sua primeira track lançada em vinil e dela passamos a No Stealing, que encerra o álbum Folk, de 2015. Essa track mostra como Nick produz música em sentido amplo, para além da pista. Aliás, acho que todo produtor que lança um álbum deseja ir além da pista e mostrar as engrenagens que constituem a máquina que ele montou. Boa parte de seus remixes estão inclusos: Airhead, Komon & Will Saul, Lee Jones, Ed Davenport, Dauwd, Asusu. É notável como a partir de 2016 as cores se fortalecem na imagem musical de Nick Höppner, primeiro em sua parceria com Gonno, DJ japonês, em Fantastic Planet (2016) e Lost (2019), depois em seu próprio selo, Touch From A Distance, que até o momento não inclui nenhum release de Nick. Só que, ao mesmo tempo em que a palheta sonora de Nick Höppner fica mais colorida, surge um EP como Box Drop e de repente estamos de novo no solo denso que tanto chama a atenção dos ouvintes mais sérios de Techno.
O mix também passa pelas duas tracks de Southbound, release de 2008 do My My, a estranha Track for Eb, que integra o volume 6 do Panorama Bar, em seleção de Ryan Elliott, e também seu remix para Wokules Walzer, do duo alemão Randweg. A dupla participa da faixa que encerra o disco duplo Work, de 2017. Nessa a gente percebe um Nick que deixa vir à tona sua formação Punk Rock da década de 1980, com uma melodia que mostra um ouvinte atento de My Bloody Valentine, talvez Sonic Youth, entre tantas outras possibilidades.
Por fim, resta anotar que, quando lemos o nome de um gênero, ativamos ressalvas aqui e ali (“ah, é melódico”; “ah, isso é tão peculiar dele”) mas é algo que fala mais sobre nós mesmos e nossas presunções como ouvintes do que sobre o produtor em si.
Mesmo acreditando que o objeto só se forma quando cedemos nosso tempo e colocamos nossas experiências nele, acredito também que Nick Höppner é um lugar na música House e Techno contemporânea alemã e que esse “lugar” enuncia diversas narrativas possíveis. Esta, humildemente e com muita admiração, tenta ser uma delas.
Boa audição e até o próximo episódio.
Tracklist:
1. Nick Höppner – November Rain [Design/November Rain; Liebe*Detail, 2004]
2. Nick Höppner – No Stealing [Folk; Ostgut Ton, 2015]
3. Airhead – Paper Street (Nick Høppner Remix) [Paper Street; Brainmath, 2010]
4. Nick Höppner – Double-Cross [Zehn/Vier; Ostgut Ton, 2015]
5. Nick Höppner – Paws [Folk; Ostgut Ton, 2015]
6. Lee Jones – Closed Circus (Nick Höppner Remix) [Closed Circus; Cityfox, 2010]
7. Nick Höppner – Umbrella Pitch [Brush Me Down; Ostgut Ton, 2010]
8. Nick Höppner – Still [Box Drop; Ostgut Ton, 2017]
9. Nick Höppner – Out of Sight [Box Drop; Ostgut Ton, 2017]
10 Komon & Will Saul – Harmonise (Nick Höppner Remix) [Harmonise; AUS, 2017]
11. My My – Southbound [Southbound; Ostgut Ton, 2008]
12. Nick Höppner – Makeover [Makeover/Foundling; Ostgut Ton, 2009]
13. Gonno & Nick Höppner – Spocking Fivers [Fantastic Planet; Ostgut Ton, 2016]
14. Nick Höppner – Relate [Folk; Ostgut Ton, 2015]
15. Ed Davenport – Eyespeak (Nick Höppner Remix) [Eyespeak; Liebe*Detail, 2009]
16. Nick Höppner – Red Hook Soil [Red Hook Soil; Ostgut Ton, 2013]
17. Nick Höppner – Dancing on The Head of A Pin [Brush Me Down; Ostgut Ton, 2010]
18. Nick Höppner – Rising Overheads [Folk; Ostgut Ton, 2015]
19. Nick Höppner – Seaweed [The Weed; Echocord Colour, 2012]
20. Nick Höppner – Out Of [Folk; Ostgut Ton, 2015]
21. Nick Höppner – Forced Resonance [Work; Ostgut Ton, 2017]
22. Nick Höppner – Splicing Hues [Splicing Hues; Cin Cin, 2015]
23. Nick Höppner – She Parked Herself [A Peck and A Pawn; Ostgut Ton, 2011]
24. Dauwd – And (Nick Höppner Remix) [Heat Division Remixes 02; Pictures Music, 2013]
25. Asusu – Sister (Nick Höppner Remix [Livity Sound Remixes; Livity Sound, 2014]
26. Nick Höppner – Mirror Image [Folk; Ostgut Ton, 2015]
27. Randweg – Wokules Walzer (Nick Höppner’s S612 Remix) [Anderlust-Requisitales; Funken Records, 2017]
28. Nick Höppner – Track for Eb [Panorama Bar 06 Part II; Ostgut Ton, 2013]
29. Nick Höppner – Swivel Flick [A Peck and A Pawn; Ostgut Ton, 2011]
30. Nick Höppner – Box Drop [Box Drop; Ostgut Ton, 2017]
31. Nick Höppner – Isp [Fünf; Ostgut Ton, 2010]
32. Nick Höppner – Foundling [Makeover-Foundling; Ostgut Ton, 2009]
33. Gonno & Nick Höppner – Bangalore [Lost; Ostgut Ton, 2019]
34. Nick Höppner – Stay [Splicing Hues; Cin Cin, 2015]
35. My My – Pink Flamingos [Southbound; Ostgut Ton, 2008]
36. Nick Höppner – Violet [Who Needs Action; Ostgut Ton, 2007]
37. Gonno & Nick Höppner – Start Trying [Lost; Ostgut Ton, 2019]
38. Nick Höppner – A Peck and A Pawn [A Peck and A Pawn; Ostgut Ton, 2011]
39. Nick Höppner – Come Closer [Folk; Ostgut Ton, 2015]
40. Nick Höppner w/ Randweg – Three Is A Charm [Work; Ostgut Ton, 2017]
Eduard Marquardt é DJ e professor universitário. Residente do núcleo TROOP desde 2014. Owner da The_Smoking_Cat K7Studio.
Conecte-se | Soundcloud,Instagram Eduard,Instagram The_Smoking_Cat K7Studio
A música conecta.