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A música conecta

A cultura clubber não tem a mesma importância em uma sociedade que preza pelo individualismo

Por Elena Beatriz em Editorial 15.07.2025

Nascida da convergência de múltiplos contextos históricos da música eletrônica, desde a ascensão do Techno nos clubs da Alemanha e de Detroit, passando pela expansão da Disco Music e o nascimento da House Music em Chicago, até a explosão do Acid House no Reino Unido, por exemplo, a cultura clubber representa um compilado de manifestações sociais com implicações políticas e existenciais. Ela emerge das margens e enfatiza a liberdade, a expressão individual e, acima de tudo, o senso de coletividade.

Episódios históricos como a Revolta de Stonewall que, em 1969, marcou a reação da comunidade LGBTQIAP+ contra a repressão policial em Nova York, foram prelúdio para essa vertente ideológica tão humana que envolve essa cultura, que resiste, busca por visibilidade e preza por um espaço onde a comunhão tem mais valor do que as normas, majoritariamente excludentes. O movimento nasceu na contramão do sufocamento social; foi uma resposta política, que veio das ruas, da necessidade de criar uma realidade onde o respeito, a liberdade e o olhar para o outro não fossem apenas parte de um discurso.

Deste modo, a pista de dança foi configurada para operar como um dos espaços mais poderosos de experiência coletiva. Um ambiente onde não existem rótulos, justamente para que haja o conforto de aproveitar o momento presente, olhar para si e para quem está ao redor sem imposição de qualquer filtro. Funciona como um ponto de fuga da realidade sistematizada, mas também como um centro catalisador de novas experiências, com a música como denominador comum. Nesse breve intervalo de suspensão do mundo lá fora emerge o que há de mais potente nessa vivência: a lembrança de que a liberdade só ganha vida quando é partilhada.

No entanto, na sociedade contemporânea, marcada pelo individualismo exacerbado, essa essência tem sido desafiada. A busca por reconhecimento pessoal, impulsionada pelas redes sociais e pela cultura do desempenho, tem transformado a essência da nossa expressão cultural de pista em vazão do ego e em um produto de consumo, onde a conexão genuína dá lugar à performance e à validação externa. Essa mudança reflete uma sociedade onde o “eu” se sobrepõe ao senso de comunidade, enaltecendo a busca incessante por validação individual em detrimento do bem-estar coletivo. Quando a base é a vaidade, o que sobra para o encontro?

O filósofo Byung-Chul Han, especialmente em Sociedade do Cansaço, aponta o momento em que vivemos como a era do hiperindividualismo, onde somos apresentados como sujeitos marcados pelo excesso de performance, internalizando a pressão de produzir e se autopromover sem descanso, assim, o que antes era espaço de encontro e descompressão, se converte em arena de exposição. 

Com o advento das redes sociais e das plataformas digitais, houve uma mudança significativa na forma como interagimos e nos expressamos, que reforça esse cenário onde o indivíduo é transformado em produto e dados, obrigado a sustentar uma marca pessoal que é constantemente monitorada e monetizada. Nesse contexto, a cultura clubber reflete o paradoxo entre o desejo de conexão versus a pressão por visibilidade e performance.

E essa somatória já possui uma fórmula pronta: em um mundo onde há pressa em tudo, é natural que todos queiram correr, mesmo que isso signifique usar de todas as suas fichas para ultrapassar o outro. Desde o momento em que a cena underground começou a ser mercantilizada, com a ascensão de festivais massivos, circuitos globalizados e curadorias voltadas à experiência vendável, o clubbing passou a se distanciar de sua verdadeira vocação. O resultado disso tem reflexo em diversas camadas, grupos e classificações. 

DJs que eram predominantemente seletores e contadores de histórias, hoje se veem, em muitos casos, inseridos em um caminho de incongruência entre o papel de educar a pista e a necessidade de seguir fórmulas pré-estabelecidas, que agradam algoritmos e tendências virais, para se manterem visíveis. Produtores de festas que, mesmo conscientes da dificuldade em manter a cena viva, rivalizam entre si como se a oposição fosse quem compartilha as mesmas experiências, enfraquecendo a própria classe e o próprio movimento. O público, que antes era cúmplice da construção de todo esse espaço, se exime do seu poder de reivindicar causas verdadeiras, como a diversidade nos lineups, por exemplo e, além disso, passa a se posicionar apenas como um mero consumidor, exigente pelo o que está no hype. 

A ideia de viver o momento e se abrir à experiência cede lugar às próprias exigências, compatíveis ao próprio recorte de realidade, não se satisfazendo mais com aquilo que foge de um padrão. Esse compilado de discursos engajados que deixaram de se sustentar na prática reflete uma sociedade onde a vontade de estar com o outro é condicionada à conveniência. A pergunta que fica é: até que ponto vale o bem-estar individual quando ele não se comunica com o coletivo?

Toda essa dinâmica deixa explícita que nosso maior algoz, atualmente, é a apatia diante do encontro com o outro e o esquecimento dos verdadeiros valores da cena. Ao internalizar os conceitos de protagonismo e meritocracia, até mesmo a pista de dança, esse espaço originalmente livre e contra-hegemônico, passa a reproduzir as lógicas do capital. É preciso lembrar que o que forma a cena é o encontro da doação daquilo que cada um tem de melhor dentro de si, não um ponto de retorno sobre expectativas individuais. 

Apesar dos desafios e das transformações que testam a essência da cultura clubber, ela resiste nas mãos daqueles que se recusam a deixar suas raízes serem apagadas, não por saudosismo, mas como uma força criativa que impulsiona sua reinvenção. São pessoas que não se acomodam e seguem cultivando a alma dessa força coletiva, pois sabem da necessidade intrínseca ao ser humano de ter um movimento que garanta segurança, resistência e autenticidade. Nessa persistência, a esperança reside e mantém a chama acesa, mesmo diante dos ventos contrários impostos pela era do individualismo.

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