Já na introdução de seu livro Retromania – Pop Culture’s Addiction to Its Own Past, Simon Reynolds traz uma inquietante provocação: “será que o maior perigo para o futuro de nossa cultura musical é … seu passado?”.
Acredito ser um senso comum no meio artístico que modas e estéticas acontecem em ciclos, e que estas seguem – mesmo que parcialmente – a lógica da Regra dos 20 (um conceito de que algo que é popular agora, será popular novamente em 20 anos). Estamos, portanto, vivendo o momento em que os anos 2000 deveriam voltar a ditar tendências – época marcada por uma curiosa escassez em termos de inovação musical, e em seu lugar, uma vasta gama de retrospectivas e releituras de memórias arquivadas de décadas anteriores, em detrimento de um senso próprio de identidade como período.
Dentro do nosso microcosmo da música eletrônica, pudemos observar alguns desses retornos, como o polêmico flerte de Nina Kraviz com o Trance e a aliança do Minimal Techno alemão com o Micro House. Curiosamente, eles pareceram estar com seus relógios adiantados. Talvez o fato da Internet ter acelerado nosso metabolismo para consumo de informação – através de experiências menos sensoriais e/ou significativas – tenha prejudicado nossa capacidade de fixar novas memórias, fazendo do campo da nostalgia um ambiente seguro para onde sempre podemos recorrer, na carência de momentos de frenesi compartilhados.
Uma vez que temos praticamente uma década toda ainda pela frente, para onde olhar em busca de inspiração dentro desse cenário? As inovações tecnológicas parecem o caminho mais óbvio, ainda mais em tempos de isolamento em que os limites entre real e virtual estão cada vez mais tênues. É também impossível mencionar a pandemia sem considerar o panorama nefasto que se formou em nosso país. Se pode-se fazer alguma leitura positiva desse cenário, eu acredito que ela tem relação com a força com que a população está sendo obrigada a se politizar (independente de suas interpretações) e se aprofundar sobre assuntos relativos ao histórico que nos trouxe até aqui. Possivelmente no futuro, quando olharmos para trás, esses serão os dois pontos marcantes e alicerces do que ainda se desenrolará.
Considerando esse contexto, não seria o momento adequado para olharmos para uma outra fonte de estímulo, límpida e modestamente explorada, ao nosso alcance: a própria tradição musical brasileira?
Sim, nós também já vimos isso recentemente, com a enxurrada de remixes e edits de boogies nacionais tocados à exaustão por artistas internacionais, em festivais como o Dekmantel, por exemplo. Entretanto o desafio aqui é outro: é sobre beber dessa fonte para criar uma nova sonoridade. Um exemplo de sucesso nessa empreitada é o live da dupla Forró Red Light. Reverenciando de Tom Zé a Uakti, reinventando estilos como Forró, Xote e Frevo, o resgate de memórias musicais afetivas em uma roupagem contemporânea, dançante e divertida, tudo soma para tornar suas apresentações – um verdadeiro arrasta-pé urbano – vivências absolutamente marcantes.
Buscando ilustrar melhor essa perspectiva, questionei alguns notáveis colegas sobre o assunto e pedi para que colaborassem apontando artistas que eles acreditam estarem conectados com essa mentalidade:
Dani Souto (Discoteca Odara / O/NDA)
Se alguém herdou o espírito irreverente do Funk carioca, e bebeu dessa fonte para transformar a coisa numa música popular contemporânea – com ares de super produção e roupagem internacional – foi o Leo Justi aka Heavy Baile. Ele tem as influências do Volt Mix e dos atabaques dos pontos de Angola, mas de uma maneira Pop, que só agora, por exemplo, vemos uma artista como Anitta fazendo. A partir dos clipes dele os dançarinos viraram estrelas, a coisa do “dream team do passinho”. É a legitimidade do passado e do presente do Rio de Janeiro, catapultado para o futuro.
Eli Iwasa (Caos / Club 88)
Um dos artistas que mais me impressionou recentemente foi Nelson D. Manauara, que foi adotado por um casal de italianos depois de ser encontrado em uma rua da capital do Amazonas, e viver oito meses em um orfanato. Batizado de Davide De Merra, se formou em Artes Plásticas em Milão, trabalhou como técnico e DJ em um club e mergulhou no universo eletrônico durante sua adolescência.
Ao retornar ao Brasil, trouxe de volta o nome Nelson – como era chamado no orfanato – e através de sua música traduz todas essas referências – como brasileiro, italiano, indígena – que ultrapassa rótulos ou categorizações. Com forte influência de Trip Hop, Dub, Big Beat, e artistas como Tricky, Asian Dub Foundation e DJ Shadow, incorporou a cultura indígena, instrumentos tradicionais e o Tupi aos beats eletrônicos que produz em um poderoso resgate de suas origens, e principalmente, uma inspiradora história de vida.
João Anzolin (Subtropikal)
Existe uma quantidade muito grande de artistas brasileiros que flertam e entregam música de pista sem estarem necessariamente inseridos na chamada “cena” – que seria, em tese, o ambiente natural da cultura clubber.
O Pará, notório pela riquíssima tradição musical, abriga verdadeiras joias. Lucas Estrela, com sua guitarrada eletrônica, é um dos exemplos mais populares nacionalmente (seu álbum Farol, de 2017, é uma das obras mais autênticas de música brasileira produzidas nos últimos anos). Mas a lista de DJs e produtores capazes de fazerem uma pista sacudir é extensa.
Bernardo Pinheiro é um verdadeiro expert em música brasileira pra dançar e, além de edits e remixes que mostram todo seu repertório, também entrega sets impecáveis. No ramo da produção, o projeto STRR (Mateus Estrela) traz beats frescos e originais em diferentes estilos. Zek Picoteiro é um dos grandes conhecedores de ritmos amazônicos como Carimbó e Brega, e Raul Bentes apresenta sets ricos mesclando os ritmos locais com Pop nacional.
Ao sul, Gerra G comanda de Curitiba o núcleo Gatopardo, especializado em versões contemporâneas da música nacional. Com quase 10 lançamentos somente em 2020, o label é uma referência em possibilidades modernas de interpretação da nossa cultura.
Conclusão? De norte a sul, literalmente, o Brasil tem muito conteúdo de alta qualidade pra ser melhor explorado, consumido e principalmente, valorizado!
Tawanne Villarim (Jornalista / Ouvisse)
DJ, produtor, escritor, designer, vai ser difícil escrever brevemente sobre este artista sergipano com alma recifense que tem mais de 30 anos de carreira. Hélder, mais conhecido como DJ Dolores, tem suas produções presentes em filmes do cinema nacional, como O Som Ao Redor, de Kléber Mendonça Filho, Tatuagem, de Hilton Lacerda e Amor, Plástico e Barulho, de Renata Pinheiro. O DJ fincou sua pesquisa para além do Dance Music. Nas obras de Dolores, a música eletrônica é o modo de produção, um processo de instrumentação, não é a estética que define seu trabalho, sabe?! Pra vocês terem uma noção, em seu álbum Recife 19 ele não se prende a nenhum estilo ou ritmo específico, pois cada canção tem tantos elementos que não dá para classificar. Provoca até certa estranheza por agregar tantos gêneros. Mas confia, que é coisa boa [risos]! Há várias referências que influenciam suas produções, como por exemplo o Dub e o Reggae jamaicanos, o Kuduro angolano, o Funk carioca e o Hip Hop, e ritmos folclóricos do nordeste brasileiro, como Maracatu, Coco e Ciranda. Vale reforçar seu envolvimento o movimento Manguebeat, inclusive, ele ao lado de Hilton Lacerda, desenhou a capa do clássico Da lama ao caos, de Chico Science & Nação Zumbi. Entendeu, né? É muita potência!
Ao que tudo indica – seja no âmbito pessoal, social ou cultural – uma forma válida de investigar o futuro não seja apenas olhando para trás, mas também olhando para dentro.
A música conecta.