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A música conecta

KL Jay: música, postura e autenticidade

Por GB em Storytelling 02.12.2021

Anos 1980. São Paulo. Um jovem negro e periférico, morador da Zona Norte, observa os movimentos do DJ em um club famoso à época, o Club House, em Santo André. Quem comandava os toca discos era o DJ Easy Lee, que acompanhava Kool Moe Dee, importante figura do rap norte-americano. Em algum momento do set, o DJ Easy Lee solta uma música do Tim Maia, Você Mentiu, e quando entra o vocal ele faz o scratch: “você mentiu – tiu – tiu – tiu – tiu“. A pista vai a loucura e o rapaz, que observava atento, tem sua vida transformada para sempre.

Naquele momento sua cabeça explodiu. Uma chave virou. Em suas próprias palavras, ali o seu “eu superior” decidiu: eu sou isso. O jovem, chamado Kleber Geraldo Lelis Simões, que tinha em torno de 20 anos quando viu os scratches do Easy Lee, foi picado pelo bicho da discotecagem. E, aí, meu filho, não teve mais volta (por sorte nossa!). 

Desde então ele risca discos de qualquer tipo de música. Um dos DJs mais completos do Brasil, une com maestria repertório, técnica e narrativa. DJ e produtor musical do principal grupo de rap nacional – e da música brasileira –, os Racionais MCs. Mas, antes e além disso, um Disc Jockey, um artista do mixer e toca-discos.

DJ KL JAY, como Kleber é conhecido no Brasil e internacionalmente, é uma das figuras mais importantes da nossa música. Mas sua contribuição extrapola a cultura, participando de um ciclo virtuoso que afeta a política e a economia do país, movimentando artistas, ideias e dinheiro – que ele faz questão de lembrar a importância – no cenário do Hip Hop nacional e nas quebradas por onde circula. 

Com seus diversos projetos, aposta no compartilhamento de informação e no fortalecimento do outro: “Ao fortalecer o outro você está se fortalecendo“, ele afirmou no podcast AZ Ideia, comandado por Big da Godoy e Boy Killa. A postura humilde e generosa, a disposição em construir coletivamente e apoiar o corre de quem tá junto, fazem sua fama de articulador e fomentador do cenário quase tão grande quanto a de DJ. E veja que ele é o DJ do grupo de rap mais famoso do Brasil!

Em suas várias entrevistas disponíveis na internet, em texto ou vídeo, ele conta frequentemente a cena que abre essa matéria. Inclusive, a quantidade de entrevistas que encontrei na rede já demonstram sua disposição em compartilhar informação. KL JAY é uma figura com muitas ideias. Faz uma leitura crítica e muito inteligente da complexa situação política brasileira, e desde a virada dos anos 1990 pros anos 2000 denuncia: o Brasil ainda vive uma realidade colonial, algo que vem se agravando nos últimos anos. Sua postura crítica já ficava evidente na condução do programa Yo, da MTV Brasileira, que passava clipes de rap e música negra na televisão nos anos 1990 e 2000.

De lá pra cá, amadureceu, sempre investindo na espiritualidade, na alimentação (é vegetariano convicto há muitos anos) e na arte como formas de adquirir entendimento e produzir transformação. E a música é sua linguagem, linguagem da alma.

KL JAY é DJ há mais de 30 anos, começou tocando nos bailes na casa dos amigos na quebrada, o que era uma tradição nos anos 1980. Quando decidiu que seria DJ, juntou dinheiro e comprou um toca-discos Garrard, de “madeirinha”. Teve que ajudar a mãe, faltou dinheiro para comprar o segundo, precisou de empréstimo da família. Depois, comprou um mixer Gemini, e montou seu primeiro setup. Quem ensinou ele a tocar foi o Edi Rock, MC dos Racionais, que decidiu trocar os toca-discos pelo microfone quando percebeu que não ia conseguir acompanhar o amigo. De fato, o talento de KL JAY é algo que salta aos olhos e impressiona qualquer um. Mas, em sua trajetória, além de talento tem muito trabalho e dedicação, algo que nem todo mundo vê.

Nos bailes que fazia com os amigos, cada um levava um equipamento: um os pratos, outro as caixas, outro o amplificador. A pista ficava na sala e o DJ ficava no quarto, ninguém via. Muito trampo e zero glamour. Espiava pela fechadura pra saber se a galera estava curtindo o som, parecido com a cena descrita por Seu Osvaldo, o primeiro DJ do Brasil, no livro Todo DJ já sambou, de Cláudia Assef. A Orquestra Invisível de seu Osvaldo, um “discotecário” – nome que os DJs tinham nos anos 1960 –, tocava atrás das cortinas nos bailes de salão.

Da mesma forma, as festas na quebrada narradas por KL JAY lembram muito as block parties comandadas pelo DJ Kool Herc no Bronx, onde nasceu a cultura Hip Hop. Um desejo praticamente incontrolável de botar a galera pra dançar é o sentimento que anima a vida de todo e toda DJ – quem é, sabe.

Mas, além da vontade, há todo um cuidado envolvido na relação de KL JAY com a discotecagem. É o cuidado e a presença os elementos que ele comumente destaca como qualidades que valorizam a trajetória de um DJ. Hoje, mesmo com a carreira já consolidada, ele considera-se, além de artista, um operário. Se está produzindo a festa – como a Sintonia, por exemplo, rolê de Black Music que produziu por anos em São Paulo – chega cedo, monta os equipamentos. Quando vai tocar, fica na pista, com a galera. Observa o set dos outros DJs, conversa com o povo. Considera que cada festa tem um clima. O DJ tem que funcionar como um termômetro, ler o clima. Além disso, defende o uso do microfone como um gesto de carinho com a galera, nem que seja pra dizer um “boa noite”. Mas nem sempre foi assim: já foi mais inseguro e tinha medo de falar, hoje a experiência já trouxe segurança, mas a humildade segue a mesma.

DJ oldschool que usa toca-discos, mixer e agulha, não tem medo da tecnologia. Aderiu ao Serato e Time Code já há muitos anos, e comemora a facilidade no acesso a música. Prefere comprar suas faixas, por uma questão de filosofia: fazer a grana girar, mas se não achar pra comprar, baixa até do YouTube. É fã do Shazam, e mantém-se atualizado musicalmente através de múltiplas fontes: seus filhos, rádio FM, blogs, filmes e até a música que toca no camelô. Se ele curtiu, toca no baile. Mas, mesmo sendo aberto a novas tecnologias, é rigoroso em relação ao setup: pra ele, DJ usa toca-discos, em conjunto com o mixer, esse é o instrumento do Disc Jockey. Com essas ferramentas ele faz sua arte: scratchs extremamente precisos e criativos, repertório diverso e absurdo, do Rap ao Reggae, passando por Funk, Disco, House, Rock – se tem groove, ele toca.

Sua habilidade na mixagem ficou registrada na mixtape Rotação 33 – Fita Mixada e lançada em CD e DVD em 2006, reunindo vários clássicos do Rap nacional, costurados com viradas e scratches. A partir dos 14 min é possível ver o efeito que aquela experiência no Club House, nos anos 1980, teve no jovem Kleber. Se ele, ao ver os scratches de Easy Lee, decidiu que aquilo era o que ele queria fazer, na Rotação 33 ele faz uma das viradas mais impressionantes da discotecagem nacional: em um toca-discos está rolando “Se tu lutas tu conquistas“, do SNJ. Quando a Cris canta “fé em Deus“, ele solta no outro toca-discos a voz do Mano Brown: “Fé em Deus“. Volta na Cris: “Fé em Deus“. Volta no Mano Brown e segue com Vida Loka, dos Racionais: Fé em Deus que ele é justo, irmão, nunca se esqueça”. Pura Arte. A mixtape foi gravada em um take, sem edição. Sua mixtape mais recente é a KL Dog, pra curtir um som passeando com os cachorros.

Antes disso, nos anos 1990, KL Jay fazia a mixtape Soweto, nome de uma importante festa que tocava em parceria com o DJ Fresh. A fita era vendida nos bailes e ele era responsável pelo lado com R&B. Como DJ de baile, tem background musical com todo o tipo de groove, do clássico ao moderno, o que para KL é relativo: “às vezes o antigo é o novo, porque a galera não conhece”. A regra é tocar o que acredita, confiar no poder da música. Mesmo não gostando de desafios, está sempre fora da zona de conforto: já foi VJ da MTV, comandou o programa de rádio Balanço Rap, na 105 FM de São Paulo, produzia o baile Sintonia, a festa Time Code, voltada aos DJs de performance, organizava um importante campeonato de DJs, o Hip Hop DJ, tem a produtora e marca de roupas 4P, com seu parceiro Xis, além de ser sócio da Cosa Nostra, label dos Racionais.

Com todas essas iniciativas, e mesmo sendo DJ dos Racionais – que dele define como pilotar um boeing 747, pesadão, vôo internacional, cheio de gente – ele afirma-se como DJ de baile, na essência. O resto: rádio, trilhas de filmes e séries, televisão e até produção musical, ele até faz, mas é tudo desdobramento do DJ KL JAY.

Como produtor, além das bases pros Racionais – que divide a produção com Mano Brown –, tem dois discos lançados: Na Batida Vol. 3, de 2001, e Na Batida Vol. 2, de 2018. Ambos apresentam produções de KL JAY e MCs convidados, grandes nomes do rap nacional. O primeiro, lançado em um momento de efervescência do Hip Hop no Brasil, fez história com predominância do Boom Bap. O segundo, mais recente, apresenta o amadurecimento de KL JAY, misturando ao rap levadas de Funk Brasileiro, Trap e House. A terceira obra, Na Batida Vol. 1, fechará a trilogia, mas ainda não tem data pra sair. Disco novo dos Racionais também, sem data. Mas isso não significa que ele está parado. Durante a pandemia, organizou o Festival Sample, rolê online que destrinchou a arte do sampling. Como muitos de nós, aproveitou a pandemia para cuidar da casa e descansar. Confessa que ainda está se acostumando com o retorno das festas – e que, felizmente, tem recebido vários convites para tocar.

A força do seu nome é fruto de um trabalho muito consistente e cuidadoso. Soube dizer alguns nãos, fechar algumas portas para abrir outras. Confia e aposta na sua arte, e sabe que isso tem como consequência um crescimento lento e gradual – mas consistente. É engraçado ouvi-lo falar: “se um dia eu tocar internacionalmente, vou tocar, mas tem que ser do meu jeito“. KL JAY é mais um DJ sonhador, mas que sonha com a cabeça no céu e os pés no chão. Para ele, o segredo da vida é simplicidade. Sobre sua generosidade como DJ, lembra de quando ainda estava começando. Naquela época, os DJs escondiam os nomes das músicas. Ele sonhava: “se um dia eu for famoso, vou fazer questão de passar a informação”. Se for preciso, ele mostra a capa do disco. Percepção é a chave da transformação, já dizia o sample utilizado por Parteum. Quando ele viu o Easy Lee fazer os scratches no disco do Tim Maia ele entendeu que era possível fazer isso em qualquer disco. Até então, pensava que só era possível “riscar” discos importados. A informação foi o combustível de um dos melhores DJs do Brasil, e ele faz questão de compartilhar.

Uma de suas empreitadas recentes é o coletivo de artistas KL Música, uma espécie de agência que trata os músicos com liberdade, DJs e MCs, servindo de alavanca para suas carreiras. Um coletivo porque os próprios artistas trabalham no núcleo, tendo como único objetivo fomentar o cenário e apostar nos novos talentos. Como DJ, Kleber segue disponível para embalar os bailes, agora com mais de 50 e cada vez mais jovem. Quando fala do passado, não gosta de dizer “no meu tempo”. Prefere dizer “naquele tempo”, porque, segundo ele, “meu tempo é agora”. Mas, assim como fazia quando ainda estava engatinhando com os Racionais, quando comprava 100 fichas de orelhão pra ligar pras produtoras e tentar vender algum show, se precisar pedir pra tocar em algum lugar, pede.

Na arte da discotecagem, é adepto do improviso. Não é fácil, é arriscado, mas é o seu estilo. Com um repertório cheio de metáforas, compara o trampo do DJ com o futebol: “tem jogador mais técnico, burocrático, faz o feijão com arroz, não erra, e tá tudo bem. Mas tem o craque, que arrisca. Erra mais, é normal. Mas quando acerta, é uma pintura“. Para acertar: treino antes, presença na hora. Ele é categórico: tem que estar 100% presente. Além da técnica, o DJ KL JAY esbanja repertório e capacidade narrativa. Talvez sua facilidade com as metáforas seja uma qualidade importante: um DJ set é uma história, e toda história é mais rica com as metáforas, que traduzem nossos sentimentos mais profundos.

Música é história, ele afirma. Desde a história que é contada numa letra, até a história que é construída com sonoridades. Nesse aspecto, seu pensamento se aproxima de algo dito por Evandro Fióti, na mesa de abertura do festival online da Batekoo, que também contava com Margareth Menezes: a música é uma tecnologia da diáspora negra, porque transmite informação e ancestralidade, atualiza a vivência dos seres no mundo, constrói territórios existenciais. KL JAY é um propagador da tecnologia musical, transformando a vida de muitas gerações de jovens brasileiros e disposto a seguir fazendo o que ama por muito tempo. Vida longa, DJ KL JAY.

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