Se hoje a House Music nacional, vem brilhando em sua enorme potência e conquistando os olhares do resto do mundo, muito se deve àquele que marcou o pioneirismo desse cenário no nosso país, a quase quatro décadas atrás. E quando falamos sobre essa lenda viva, pensar apenas em House Music é apenas uma ponta do iceberg. Falar sobre DJ Meme, é falar sobre a cultura da Dance Music brasileira, em sua forma mais rica e completa. Marcello Mansur, o Meme, é quem podemos sem dúvidas chamar de pai, mestre e guru de todos os produtores de e-music do Brasil.
Permitam-me abrir um parênteses pessoal aqui: Meme foi o primeiro produtor e DJ que eu consumia sem nem mesmo saber quem ele era. Aos 7 anos de idade, dançando a versão Dance Remix de Shakira, Estoy Aqui, ou gravando a abertura de Malhação só para ouvir repetidas vezes o tema Assim Caminha a Humanidade, pensando nos meus pequenos problemas da vida infantil ao ouvir Tempos Modernos na versão de Claudinho e Buchecha, ou posteriormente cantarolando The Sun is Comming Out quando tocava nas rádios. Surpresa? Meme sempre esteve por trás dos temas que embalaram minha vida. Posteriormente, ingressando no caminho da produção musical, lá estavam os trabalhos dele novamente, sempre como referência para minhas criações. Acredito que essa mesma história se repita com centenas de produtores e músicos daqui do Brasil, que levam Meme como inspiração.
São 23 Discos de Ouro, 15 de Platina e 3 de Diamante. Na coleção, 8 Indicações para Melhor DJ de House no Brasil no DJ Sound Awards, além do apoio, suporte e admiração das lendas da House Music mundial, como o eterno Frankie Knuckles, Bob Sinclar, David Morales e Pete Tong. Com uma discografia de autoridade, Meme tem o dom de celebrar as mais diversas vertentes do House e do Disco com domínio de cada arranjo, sendo do tipo que detém aquele poder de “toque de midas”, onde bases aparentemente simples acabam se tornando triunfais quando construídas a partir de sua potência criativa.
Não é à toa que ele é um dos poucos a terem o prestígio de ter remixado nomes como Gloria Estefan, Mariah Carey, Toni Braxton, John Lennon, Justin Timberlake, além de colaborações ao lado de Lincoln Olivetti, Dimitri From Paris e Double Dee – entre outras dezenas de gigantes -, além de uma compilação curada e mixada por ele para a emblemática Defected Records, em 2011. Esses são apenas alguns dos grandes feitos da nossa lenda viva, que se estende pela música brasileira, pelo House, pelo Disco e pelo Pop.
Entrevistá-lo agora, é como completar um ciclo em que mestre e discípula se encontram. Nesse bate-papo mais do que especial, ele nos conta sobre os olhares diante de sua trajetória, detalhes do seu trabalho Clássicos Reboot, seus insights sobre inspiração e produção musical, sua nova Masterclass, e claro, sua paixão pela música!
Meme, primeiramente obrigada por aceitar essa conversa conosco, é um enorme prazer entrevistar você. São quatro décadas dedicadas à música, seja à frente dos palcos ou no caminho da produção musical, e podemos dizer que você é o pioneiro quando o assunto é Dance Music no Brasil. A partir dessa sua experiência, acompanhando diversos ciclos da e-music em nosso país, é possível apontar – com alguns palpites – para onde caminha o futuro da música eletrônica brasileira?
Meme: O prazer de estar nessa entrevista é todo meu, Ágatha 🙂. Obrigado Alataj.
Antes de iniciar, vamos deixar claro que “pioneiro” só se fode, então vou deixar esse título para outros igualmente importantes, mas que já se foram. rsrs
O que vejo, após tantas experiências, é a repetição natural de alguns ciclos, mas nada que seja anormal na vida cotidiana. Fora isso, de 10 anos para cá vimos uma nova geração que é completamente virgem de qualquer passado, e não tem nenhuma conexão com as outras gerações de DJs que já andaram por esse planeta. São DJs que nasceram “dentro” de seus computadores assistindo tudo pela internet antes mesmo de poderem frequentar qualquer clube, e isso os formatou diferentes. Já sairam de casa para clubs com musicas prontas, querendo os palcos dos festivais e ansiando pelo sucesso que viam nos vídeos de artistas gringos.
Por outro lado, vemos também uma outra turma de ‘diggers’ que viraram DJs muito importantes para a manutenção da cultura de pista “old school”, criando suas próprias festas e atraindo o seu próprio e novo público, resgatando várias músicas bacanas do passado que nunca eram lembradas, e tentando reproduzir o mesmo som em estúdio; são opostos aos flashbacks já surrados de Donna Summer, Rick Astley e Barry White que não surpreendem mais ninguém; gostam do vinil e não tem intimidade nenhuma com palcos gigantes, fogos e telões com logos por trás. São DJs de pista, e quanto menor, melhor.
Não tenho vontade alguma de adivinhar o futuro, pois gosto de surpresas, mas essa mistura certamente será bastante interessante daqui pra frente, pois a tendência é crescerem e multiplicarem-se.
Se fosse para resumir em poucas palavras, toda essa sua jornada de conquistas, desafios, realizações e surpresas em sua carreira, olhando para trás e analisando até o presente, qual o sentimento que fica?
Após anos e anos de observação, aprendi que a única coisa que serve para a matemática da vida profissional é a nossa história, nossas escolhas e o legado que criamos para passar adiante. Isso é o que nos mantém vivos para sempre, pois se você não retransmite o que aprendeu, sua obra passa a ser de outros sem que você seja ao menos citado. Olhando para o que fiz até agora, tenho a sólida sensação de ter feito as escolhas certas na minha carreira. Orgulho é a melhor palavra para definir tudo.
Defected, Purple Music, Salsoul, Nervous, Big Love, Midnight Riot… você possui uma discografia que marca registro nas grandes expoentes da House Music global, sempre com lançamentos que trazem um frescor diferente e aquele “toque de midas”, que tornou aspecto fiel da sua identidade. Não é à toa que você é considerado o maior nome da House Music do nosso país. Moldar essa identidade, conquistar os olhares dos gigantes internacionais e se perpetuar por tantos anos com esse diferencial, deve ter sido um caminho desafiador, não é mesmo? Quais os aspectos que, na sua opinião, contribuíram para você realizar essas conquistas?
Bem, primeiro vamos lembrar o seguinte : em 1976, quando aos 11 anos de idade decidi que gostava mesmo era de música, o mundo não fazia pressão alguma para que isso virasse um objetivo de vida. Músico era olhado como vagabundo e DJs eram pessoas que você nem via à luz do dia. O DJ não era observado em sua cabine, os fãs da profissão não existiam, os cachês eram equiparados aos de garçons e maitres, e tudo ainda era uma grande brincadeira. O DJ dos anos 70 ainda não fazia música, então não entrava na valorizada categoria de artista, e assim eu aprendi que o meu maior objetivo ali era a máxima diversão, dito isso você já percebe que o meu DNA é outro. Hoje as pessoas são levadas a acreditar que o sucesso tem que vir em mais ou menos 2 anos, e como isso é quase impossível, muito desistem. Eu fui treinado para realizar meus ideais a longo prazo, então eu apenas sigo em frente feliz da vida, fazendo o melhor pela minha “diversão”, e o que vem é meio consequência do amor que tenho pela música. Tudo o que eu queria quando moleque era estar perto da música, e acabei conseguindo mais que isso sem perceber ou planejar.
Acho que a mega-tranquilidade de jamais ter olhado para a profissão como uma competição ajuda bastante até hoje. Eu nunca precisei parar na frente do espelho e dizer “Você vai chegar lá” porque não existe o “lá”. A música tocando no meu ouvido sempre foi suficiente pra mim.
Você emplacou uma série de hits que balançaram os charts musicais do mundo inteiro. Aliás, muito mais do que hits, você coleciona 23 discos de ouro, 15 discos de platina e 3 de diamante. Tendo em vista que hoje vivemos um cenário musical com uma velocidade maior de informações, onde tudo tende a ser mais efêmero, quais são os desafios de emplacar um grande sucesso hoje, em detrimento de 20 ou 30 anos atrás? Como você pensa em relação a esse novo prisma?
Não vejo essa efemeridade dos tempos atuais como dificuldade, pois da mesma forma, as oportunidades se mutiplicaram por 100. Hoje o equipamento para fazer música está custando o mesmo que um fim de semana de férias. Atualmente qualquer pessoa pode fazer música, e isso só enriqueceu o cenário. Muitos talentos não ouvidos apareceram, e o que temos que fazer é escolher. Tem música para todos e sucesso em diferentes medidas para qualquer um, e isso deve ser considerado. Querer apenas o sucesso em escala gigantesca é uma baita ingenuidade juvenil. Pegue o seu melhor e faça render para o seu público. Isso é sucesso.
Produção musical para você, tem hora certa, momento certo ou ritual para despertar a criatividade? Ou a inspiração criativa já é algo que flui para você naturalmente a hora que você senta no seu estúdio? Conta um pouco pra gente sobre esse seu flow de criação.
Ideias vêm e vão, e não dá pra prever o momento. Eu tenho em casa o mesmo sistema de computador e plugins que tenho no meu estúdio, então se algo aparecer na cabeça eu consigo rascunhar e levar adiante mais tarde, MAS…não exercito a inspiração. Ela vem ou não vem, e se nao vem eu compro um vinho e vou ver TV. Não consigo criar nada se eu não estiver inspirado. Não rola. Essa parada de entrar no estúdio e dizer “Hoje vou fazer uma puta track”, não acontece comigo…e nem sei se isso é mesmo verdade para outros rs.
Agora, se eu receber uma encomenda de remix, por exemplo, eu tenho que me virar, e conto com a música original para me dar alguma inspiração, normalmente acontece. Ouvindo a original eu posso ter uma ideia diferente, e se nada aparecer nada, eu desisto e recuso o trabalho.
Inclusive, recentemente você lançou uma Masterclass especial voltada para o estímulo à criatividade dentro da produção musical. Poderia nos contar mais detalhes desse projeto, para quem é destinado e o que os produtores vão encontrar de diferencial nesta masterclass?
Com o crescimento da cultura DJ no Brasil, somado às facilidades que a internet traz, eu assisti ao surgimento de diversos “cursos” que supostamente serviriam para especializar toda uma geração interessada em criar música eletrônica dentro de sua própria casa, porém…alguém se lembrou de perguntar quem são os “professores” ? De onde vem as infos passadas nesses cursos ? Quais acertos e/ou sucessos esses “professores” tiveram para ajudar você a chegar no SEU sucesso ? Como isso vai funcionar a longo prazo?
A pressa de entrar na “competição” cegou a maioria, e esses ‘detalhes’ importantíssimos passaram batido. O que vemos hoje é uma fila gigante, com gente discutindo o valor do sidechain, masterização em layers ou o melhor plugin para criar seu kick. É muito fácil perceber que 90% desses ‘cursos’ são na verdade filtragem de tutoriais já gratuitos na internet, mas você paga o “curso” pela triagem que ele fez pra você. Vejo um monte de gente que fez tais “cursos” seguindo como zumbis na mesma direção sem desenvolvimento NENHUM da própria criatividade, o que deveria ser o ponto principal a ser estimulado em todos. Aprender a mexer no app é cool, mas nao faz de vc um DJ/Produtor, pois isso todo mundo consegue fazer, e o “curso” deixou de te ensinar o básico: a ser FODA !
Atordoado e até meio aflito, resolvi criar um MASTERCLASS focado na minha legítima experiência global, para estimular no DJ/Produtor o que deveria ter sido ensinado para tirar você dessa fila gigante e criar o SEU próprio som, o seu público e naturalmente sua fan base, fazendo de você um artista de verdade com a sua PRÓPRIA sonoridade, e não “apenas mais um na fila”. O foco é mostrar que montar a música não é impossível com a tecnologia que temos, o mais difícil é ser criativo para ser competitivo..
Falando ainda sobre produção, você além de ser um dos maiores nomes que o Brasil possui nesse campo, você também é um grande mestre. Muitos produtores se inspiram em você, já que você possui o dom de instigar as potencialidades dos produtores e nos ensinar de uma maneira especial. Eu gostaria que você deixasse uma mensagem para os novos produtores que estão iniciando nessa caminhada, qual a lição que este produtor de primeira viagem precisa levar para sua jornada?
Por ser totalmente não-ortodoxo, eu não sei se sou um bom exemplo, mas admito que meu método tem funcionado, então, mesmo que não pareça “a fórmula secreta tão esperada”, aqui vai minha mais preciosa dica :
Não tenha pressa. Aprenda que sucesso não tem hora marcada, então aproveite e preste atenção em tudo, sem pular etapas e PRINCIPALMENTE não medir-se pelas conquistas dos outros. Cada um tem um timing diferente. Se você não consegue curtir a jornada, é bem provável que não consiga segurar o sucesso.
Vamos falar agora do álbum Clássicos Reboot, que foi um presente para todos nós que gostamos de música brasileira e do seu trabalho como remixer. Nos conte um pouco mais sobre esses resgates que você traz à luz neste trabalho, essas versões já eram projetos que você tinha desenvolvido lá atrás e que decidiu lançar agora, ou você desenvolveu essas releituras recentemente?
Pode culpar a pandemia por isso rs.
Eu estava, como todos os DJs, sem nada pra fazer durante os 2 anos que nos aprisionaram, e resolvi ir para o meu estúdio copiar os arquivos antigos que eu tinha guardado em D.A.T. (Digital Audio Tape…google it) para dentro do computador, tipo aquela limpeza que você realiza no seu armário só quando realmente não tem nada mais a fazer, sabe ? Lá pelo meio da noite eu descobri que tinha todas as partes de “FULLGÁS” da Marina Lima em uma das fitas. Eu havia feito um remix dela em 97 e provavelmente só usei a voz naquele momento, mas o resto ficou arquivado e eu nem lembrava.
Depois que passei tudo para o computador, levei essas partes para casa e entre um Netflix e um HBO eu resolvi brincar de remontar as partes para ouvir a música completa, maaaas…o ‘bichinho’ do remixer coça, ne ? Eu comecei a re-editar, desligar canais e trocar coisas de lugar…pronto ! Levei para o estúdio e convidei o meu amigo Rodrigo Facchinetti, um grande DJ e digger aqui do RJ, para “brincar” junto e assim saia a 1a faixa do álbum CLÁSSICOS REBOOT.
Logo depois entreguei o mix para o outro brother DJ Marky, que vinha fazendo uma série de lives semanais com um monte de gente assistindo, e ele tocou fazendo um puta alarde…pronto ! Virou objeto de desejo para todo mundo, porque não era apenas a versão que estava bacana, mas o som, processado e mixado com a nova tecnologia mais de 40 anos depois realmente é a cereja do bolo, e não devia nada às músicas gringas no meio do set.
Dali eu procurei o meu velho amigo Paulo Lima, que hoje é presidente da Universal Music, e apresentei o projeto para um álbum inteiro com músicas do catálogo da gravadora. Na hora ele falou : “- Tem que ser um album do Meme, e não da Universal”. Deu um medinho mas aceitei e tive o irrestrito apoio da equipe da gravadora para encontrar as fitas antigas e transformar tudo nesse belo trabalho, que vai incluir os vinis já em fabricação e um documentário sobre as faixas. O resto é história sendo escrita.
E sobre as pistas que você vem marcando presença, o que você tem sentido que tem conectado o público nesses últimos tempos? Qual a pegada da sua assinatura que o DJ Meme de 2023 tem gostado mais de entregar, um leque mais versátil ou uma linha de som mais diferenciada e direcionada?
Sou um DJ originalmente de House Music, e isso todo mundo sabe, mas de uns 2 anos para cá eu tenho percebido uma parada muito esquisita que eu admito que não estava esperando: as faixas que produzi ou remixei nos anos 80 e 90 começaram a voltar às pistas e a chamar interesse geral pelas mãos dessa geração de DJs que tambem são diggers, e tocam em festas como a Selvagem, Gop Tun, Clash, Mangolab, TropiCals, onde a cultura é de mostrar música boa de todos os tempos. Fiquei perplexo ao ver que muitos trabalhos que eu nem dava bola são ponto alto nesses sets, e passei eu mesmo a tocá-las rs.
Observando bem e analisando imparcialmente, penso que sou o primeiro DJ Produtor brasileiro a ter um legado fazendo efeito anos depois. Resolvi entregar-me.
Agora para relembrar algumas conquistas que eternizam na memória: qual foi o momento que mais te emocionou nas pistas de dança pelo mundo, e que te inspira até hoje injetando aquela recarga de energia e te motiva a continuar?
Toda viagem é uma experiência a ser contada e observada. Tenho passagens maravilhosas pela Ásia que jamais serão esquecidas, onde misturo o prazer de tocar à gastronomia, que é meu segundo grande amor; A Itália tornou-se para mim um segundo lar (literalmente) onde sou residente todos os anos no verão e dali parto para outros países também; e pra resumir, tenho que citar algumas gigs diurnas na Austrália (pois as 1AM eles nao pode mais servir álcool) como algo indescritível. Não posso reclamar da vida.
Por fim, uma clássica do Alataj: o que a música representa para você? Obrigada, Meme!
Música é o meu amor maior, você dá a ela e recebe de volta. Simples assim. É a mais perfeita e azeitada relação que eu poderia ter nessa vida. <3
A música conecta.