Enquanto o Verão do Amor de 1967 foi marcado pelo desejo de paz e o fim da Guerra do Vietnã, com hippies embalados pelo rock, LSD e a prática do amor livre, culminando na máxima da “paz e amor”, a segunda onda de um dos maiores movimentos subculturais se deu em um contexto bem diferente…
O verão de 1988 se aproximava e como consequência da política conservadora de Margaret Thatcher, o Reino Unido enfrentava um período de recessão e descontentamento social. A juventude buscava uma forma de escapismo, expressão própria e de algo que transcendesse os limites do ordinário, e é neste contexto que principalmente a Inglaterra testemunhou uma revolução cultural marcada na história da música eletrônica como o Segundo Verão do Amor — um fenômeno efervescente considerado uma resposta ao ambiente sociopolítico da época.
As batidas eletrônicas eram novidades vindas de Chicago e Detroit, mas rapidamente cruzaram o Atlântico Norte e invadiram a cultura alternativa do Reino Unido, ao mesmo tempo que uma nova substância psicodélica também entrava em cena: o ecstasy. A droga ficou conhecida por amplificar as sensações, criar um senso de conexão e acabou se tornando a cereja do bolo em muitas raves, adicionando uma dimensão eufórica às festas noturnas. Esse elemento da “euforia química” intensificou a ligação entre a comunidade e contribuiu para a atmosfera hedonista característica das festas da época.
Dessa vez com ideais de liberdade, empatia e aceitação, o movimento se expandia. “Ninguém morava nos centros das cidades e eles eram bastante desanimadores. O desemprego era alto e havia o governo Thatcher, então a cena rave era uma fuga da dura realidade da vida moderna. O acid house e ecstasy eram o antídoto perfeito e ninguém se importava com quem você era. Gay, hétero, preto ou branco; encanadores, advogados, lojistas, médicos, hooligans do futebol… todos se reuniram para festejar a noite toda com uma trilha sonora como nenhuma outra”, narra Graeme Park (DJ, fundador do lendário The Haçienda em Manchester e figura importantíssima na cena britânica) em entrevista à Silver Magazine.
Considerado um dos primeiros lugares que propagaram o acid house no Reino Unido, o The Haçienda foi um club pioneiro ao dar impulso ao movimento, mas outros clubs como o Shoom comandado por Danny Rampling e o Trip de Nicky Holloway, também exerceram papéis importantíssimos. Logo surgiram outros clubs, armazéns (os famosos warehouses) e festas independentes em locações inusitadas que abraçaram o movimento. No entanto, o The Haçienda foi um dos locais mais icônicos e expressivamente subversivos, com noites como a “sexta-feira da nudez”.
Johnny Walker e Danny Rampling no Shoom em 1988. Foto: Dave Swindells Antes da internet, as raves eram anunciadas em flyers e os locais das festas eram mantidos em segredo até o último momento para evitar batidas policiais. Foto: Dave Swindells
A música e seus protagonistas
A trilha sonora perfeita para esse movimento foi encontrada no emergente gênero que se popularizou como acid house. DJs e produtores visionários foram fundamentais para empurrar o acid house para a frente e nomes como Larry Heard (aka Mr. Fingers), DJ Pierre (Phuture), Marshall Jefferson foram pioneiros na criação de faixas que incorporavam as características distintas do acid, como batidas pulsantes e sintetizadores hipnóticos, como os padrões da Roland TB-303.
No entanto, ao chegar no Reino Unido, o gênero passou a ostentar uma roupagem bem distinta e ganhou força principalmente graças ao 808 State e A Guy Called Gerald (que inclusive foi um dos primeiros membros do 808 State). Com faixas expressivas como Voodoo Ray de A Guy Called Gerald e Pacific State do 808, o acid house ganhou ainda mais popularidade no eixo norte do globo.
A proibição das raves
Entre junho e outubro de 1988, o Segundo Verão do Amor teve a sua máxima, mas seu sucesso efêmero também gerou desafios. Infelizmente, as consequências do abuso de substâncias (que ainda não era uma pauta relevante) eram massivas e diversos jovens foram foram vítimas de overdose e outras decorrências, o que automaticamente fez com que a discussão se tornasse pública. Em agosto, o jornal The Sun já promovia manchetes sensacionalistas, mas entre os mais jovens, o alarmismo só serviu para promover ainda mais o “conceito”, já que assim como fizeram com o movimento punk, a juventude considerava qualquer coisa que o The Sun odiava como algo que valesse a pena apoiar. E assim, enquanto as autoridades afiavam as suas facas, o movimento explodiu…
No final de 1989, a polícia declarou publicamente hostilidades contra com a cena raver e especialmente ao acid house enquanto gênero musical. Festas e clubs eram invadidos por dezenas de policiais de tropas de choque vestidos com capacetes e macacões de proteção, carregando escudos e outros instrumentos de repressão. Os organizadores, quando pegos, eram acusados de “conspirar para gerir instalações onde eram fornecidas drogas”, alguns inclusive condenados a 10 anos de prisão — para se ter uma ideia, à época, a penalidade era maior do que para estupradores.
A repressão policial às raves escalou e todo o contexto passou a ser combatido com robustez por autoridades que o viam como uma ameaça à ordem pública e aos bons costumes. Para compreender melhor o tamanho do impacto, a BBC Radio 1 (uma das principais redes de rádio britânica) proibiu faixas de acid house. Se o que é proibido é ainda melhor, a popularidade do gênero e das raves que o acompanharam foram catapultadas para além do que as mentes mais férteis podem imaginar. E atenção repressiva também…
Esses conflitos resultaram em uma resistência ainda mais forte por parte da comunidade, consolidando a cultura rave como uma contracultura de resistência e culminando no movimento free party. O movimento atingiu seu ápice em maio de 1992 com o Castlemorton Common Festival, em Worcestershire, na Inglaterra, com um público de cerca de 40.000 pessoas. Gratuito e com duração de uma semana, até hoje essa foi a maior festa clandestina ao ar livre do Reino Unido.
Diante de tentativas falhas da polícia em encerrar a rave, a resposta do poder público veio a altura, mas apenas em 1994 com a aprovação da Lei de Justiça Criminal e Ordem Pública pelo parlamento britânico com um texto que classificou as festas raves, sua música e que também se debruçou sobre os enquadramentos da proibição. Não só as penas para organizadores, promoters e público ficaram maiores, como até os DJs e produtores também estavam suscetíveis a sofrê-las. Qualquer festa com mais 20 pessoas e música que incluísse “sons total ou predominantemente caracterizados pela emissão de uma sucessão de batidas repetitivas” estavam proibidas e viraram alvo de combate.
A resposta
Inúmeras manifestações foram convocadas e a mais significativa aconteceu em outubro, no Hyde Park, em Londres. Enquanto a polícia estima uma média de 20 a 30 mil pessoas, os organizadores afirmam que tinham mais de 100 mil. Grupos como o Advance Party, Freedom Network e Liberty surgiram e foram os principais responsáveis pelas campanhas de resistência.
Outro importante instrumento nessa luta foi a música. Em 1994, o Prodigy, por exemplo, lançou o álbum Music for the Jilted Generation (“Música para a geração abandonada”, em livre tradução) apresentando faixas como Their Law, uma crítica direta à nova lei. O encarte do próprio álbum tinha o questionamento: “como o governo pode impedir que os jovens se divirtam? Lute contra essa besteira”. O Orbital também contribuiu com faixas como Are We Here? e Sad But New — que inclusive conta com samples do discurso de John Major, político conservador que sucedeu Thatcher como primeiro-ministro.
No entanto, a obra mais significativa certamente foi o EP Anti, da dupla britânica Autechre. Composto por três faixas, Flutter foi composta para contrariar a definição de música com batidas repetitivas definida pela Lei, usando 65 padrões de bateria distintos; no entanto, Lost e Djarum apresentavam batidas repetitivas e por conta disso, o encarte do vinil foi selado com um adesivo com uma mensagem alarmante.
Em livre tradução:
Aviso. Lost e Djarum contêm batidas repetitivas.
Aconselhamos que você não toque essas faixas se a Lei de Justiça Criminal se tornar lei. Flutter foi programada de tal forma que nenhuma barra contém batidas idênticas e, portanto, pode ser tocada em 45 ou 33 rotações de acordo com a proposta da nova lei. No entanto, aconselhamos os DJs a terem sempre um advogado e um musicólogo presentes para confirmar a natureza não repetitiva da música em caso de assédio policial.
Importante.
Ao violar este selo, você assume total responsabilidade por qualquer ação consequente decorrente do uso do produto, já que a reprodução das músicas contidas nestes discos pode ser interpretada como uma oposição ao Projeto de Lei de Justiça Criminal e Ordem Pública.
O Autechre e a Warp Records, gravadora responsável pelo release, doaram todos os lucros para o Liberty como incentivo à liberdade individual de expressão.
O impacto permanente
A repressão à música eletrônica no Reino Unido se estendeu até meados dos anos 2000 e inclusive foi um dos motivos pelos quais Fatboy Slim criou o Big Beach Boutique, demonstrando às instituições governamentais a força e presença da música eletrônica. Embora o estilo musical não tenha sofrido represálias governamentais em outros países, da mesma maneira que nos países do Reino Unido, os acontecimentos ecoaram mundo afora e acabaram corroborando para a criação de um preconceito e estigma de constante associação da música eletrônica, seus produtos e ambientes ao uso excessivo de drogas.
+++ Big Beach Boutique II: o DVD do Fatboy Slim que marcou uma geração
De acordo com o Business Report de 2023 do International Music Summit (IMS), a indústria global da música eletrônica movimentou, somente em 2022, 11.3 bilhões de dólares. Mesmo com um mercado e cultura sólidos e consolidados há pelo menos 30 anos, o nicho ainda luta contra esse pré-conceito. Apesar do Segundo Verão do Amor ter sido o responsável pelo despertar dessa hostilidade, ele também foi fundamental para jogar luz sob o nicho, demonstrar sua potência e reafirmar que a música eletrônica é muito mais que um movimento da contracultura.
O impacto permanente deste período é visível na cena eletrônica moderna. Musicalmente, o acid house é uma estética não só bastante presente, mas também influente, com nomes como Boston 168, Helena Hauff, Jerome Hill, TinMan e até o próprio DJ Pierre (um dos seus arquitetos) conservando com maestria o legado de mais de 30 anos do gênero nas pistas contemporâneas. Culturalmente, o surgimento de festivais de música eletrônica, a evolução das raves em eventos de grande porte e a adoção global da cultura dance também são todos legados do Segundo Verão do Amor.
O icônico símbolo de todo esse movimento foi o smiley, que se tornou sinônimo de paz, amor, felicidade e claro, música eletrônica. Pintado nos rostos dos frequentadores das raves e estampado em flyers e decorações, o smiley personificou a essência do Segundo Verão do Amor. Assim, quase três décadas depois, seu espírito segue ecoando em festas, festivais e produções musicais, nos recordando de uma época em que a música eletrônica não apenas alimentou os desejos de escapismo, mas também deixou uma herança duradoura de celebração, liberdade e comunidade.
A música conecta.