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A música conecta

Aninha: rainha

Escrever sobre uma das artistas mais respeitadas do circuito eletrônico não é uma tarefa fácil. Além da responsabilidade decretada, escrevo hoje sobre uma das primeiras mulheres que vi tocar e que mais admiro desde que comecei a frequentar as pistas. A cereja do bolo nessa incumbência, é que nos giros do planeta, Aninha e eu nos trombamos para além da relação “DJ e clubber” e viramos amigas. É por isso que esse conteúdo gerou uma interação considerável de neurônios durante sua concepção, me senti verdadeiramente honrada… e pressionada (risos).  Eis, então, que tive a ideia de adaptar o “roteiro” e acionar a própria Anna Paula, enchê-la de perguntas e trazer além da história, alguns recortes de sua vida e insights que você não vai achar por aí. Então fica, porque valerá a pena, viu? 

Ela dispensa apresentações, mas apresentá-la é fundamental

Nessa abordagem meio paradoxal, Aninha dispensa apresentações quando pensamos em tudo o que ela já materializou em seus mais de 20 anos de carreira, um verdadeiro exemplo de profissionalismo e “jogo de cintura” neste mercado tão dinâmico. Apresentá-la se torna igualmente fundamental quando pensamos que, na premissa dos ciclos, uma trajetória exemplar merece ser revisitada e aqueles que não a conhecem, merecem conhecê-la.

DJ, produtora musical, empresária, label owner, professora, uma pessoa multifacetada e inquieta quando o assunto é inovação. É considerada uma das precursoras femininas e LGBTQIAPN+ no cenário e também uma das primeiras mulheres brasileiras a ter projeção lá fora. Dona de uma personalidade distinta e uma presença pronunciada, ela mantém um perfil discreto, concentrando-se no seu trabalho e na constante reinvenção de si mesma. Não é à toa que temos aqui uma figura respeitada e admirada, amplamente conhecida como a “rainha dos warm-ups”, por dominar como poucos essa linguagem musical com coerência, concebendo sets com muita sagacidade. Sim, temos aqui uma digger ponta firme.

Mas, first things first: como tudo começou

Foi nos anos 80, quando a música eletrônica apertava o passo, que a jovem do Vale Europeu de Santa Catarina, descobriu o que viria a ser seu propósito. Desde cedo, ela estava cercada por uma trilha sonora atípica que incluía nomes como Depeche Mode, Kraftwerk, New Order, Erasure, Technotronic, Information Society, Madonna, A-ha e Pet Shop Boys. “Com 10 anos ia nas festinhas de garagem, onde rolavam esses artistas. Também tinha um vizinho que era DJ em uma equipe de som (era assim antigamente), eles montavam tudo e tocavam, mas não tinha destaque na festa, como é hoje. Ele me mostrava como fazia as mixes dele nas fitas K7, ligava o paredão de som e tocava nos finais de semana pra gente”, resgata na memória.

A virada de chave foi gradativa, mas aos 16 anos, com uma consciência musical maior, um desejo curioso provocou a adolescente. A faixa Plastic Dreams, de Jaydee, despertou um sentimento peculiar: “senti algo diferente, ela me intrigava por não ter vocal e me dava vontade de dançar. Minha turma na escola não curtia (risos)”. E vocês sabem muito bem que esse chamado, que dá vontade de dançar em uma pista imaginária, vai soprar para dois possíveis caminhos: ou você vira clubber ou você vira clubber e também vai trabalhar no ramo. E assim foi!

Anos depois, ela se tornou promoter e começou a se envolver mais com esse universo que também estava em um momento de desabrochar, cheio de novidades. Essa fase trouxe curiosidade e um desejo de aprender a discotecar e pesquisar. Só que sejamos realistas: não era assim tão simples. Não que hoje seja extremamente acessível, mas estamos falando dos anos 90. Para vocês terem ideia, a pesquisa rolava de dois jeitos: ou ligava para as lojas em São Paulo para ouvir discos pelo telefone ou usava a internet noventista: discada, lenta e instável para pesquisar o pouco que tinha disponível e depois comprar à distância. 

Nas ligações e pesquisas, a futura seletora seria presenteada pela dádiva do timing, pois cruzou com uma fonte muito prolífera, uma escola americana que estava ditando as regras: São Francisco, Chicago e Detroit. Precisa dizer mais? Foi inspirada por esses seres pioneiros que os primeiros discos chegaram e a “brincadeira” começou a rolar. Sua estreia aconteceu no ano 2000, na casa de amigos e dois anos depois como profissional. “Em 2002, toquei numa balada chamada Hari Ohm, não sabia nem qual seria meu nome artístico e colocaram Anna no flyer. Fiquei super nervosa, minha preocupação maior era não sambar. Toquei na pista 2, apenas pra Carlinha (amiga) e para o Rato (amigo que me ensinou a tocar)”.

E veja só, duas pessoas estavam nessa pista. Duas. Por isso, o clichê é real: deixe o ego de lado e persista sempre! E assim ela o fez. Mesmo já atuando como gerente de divulgação no antigo Café Pinhão, em Porto Belo, ela largou tudo e se jogou na profissão DJ. E novamente no timing de quem viveu “o começo”, Aninha pegou gigs no emblemático clube Baturité, na festa Life is a Loop (projeto do Leozinho & Paciornik junto do Fabricio Peçanha), Kokum Kaya, Fullmoon, Club Vibe, em Curitiba, e Warung Beach Club em seu primeiro verão. Resumindo: estava na hora certa e no lugar certo, foi assim que ela começou a fazer o seu nome.

O salto profissional

Foco, disciplina, técnica e pesquisa acompanham sua caminhada desde o começo, parte da sua personalidade curiosa, parte da inquietação e parte por entendimento. Por isso, estar no lugar certo e na hora certa não é suficiente. Sem esforço e dedicação, a oportunidade poderá passar. E verdade seja dita: estudar é preciso e bagagem musical faz toda diferença, sempre. Foi essa sua estratégia, e como mulher, ela também sabia que precisaria se dedicar muito mais para se manter no jogo. Por essa dedicação, suas habilidades para selecionar músicas e mixar chamaram atenção. Aninha tinha um ouvido que se sobressaia. Não demorou muito para assinar duas residências que mudariam a história: Warung e Vibe, em 2003. 

Por fazer parte da trajetória dos clubes, ela não só fez uma base indiscutivelmente forte para sua carreira, mas também colaborou para a moldar a identidade sonora de ambos. Além das gigs certeiras que uma residência pode promover ao artista, algo que costuma acontecer, vez ou outra, é que o “DJ da casa” ganha horas extras quando o artista internacional atrasa ou algum problema técnico acontece. Logo, não basta manjar do warm up, é preciso estar preparado para assumir o controle até que o headliner possa tocar. “Assim, conseguia estender a apresentação e mostrar que eu não tava ali a toa não”. Garota esperta!

Aninha no Garden do Warung, em 2005, com Funk D Void

Com a ebulição da Dance Music no eixo da virada do milênio, a rotina de gigs e os feedbacks cada vez melhores, o leque de possibilidades começou a se abrir e rápido. “Aconteceu tudo ao mesmo tempo para todos que faziam parte dos dois universos. O Warung eleito melhor clube do mundo, me rendeu muitas gigs dentro e fora do Brasil. A Vibe me deu muita experiência de pista local, porque tocava de duas a três vezes ao mês. Amadureci muito nos dois clubes e com residências de 12/13 anos.”

O resultado? Watergate, em Berlim, FACT e Flex Club, em Vienna, algumas gigs em Abu Dhabi na private do fabric, Ministerium, em Lisboa, Bahrein, em Buenos Aires, Baum, em Bogotá, DC-10 em Ibiza, Pink Mammoth, em Miami, gigs na Itália, Espanha e ainda festivais de peso como Time Warp, D-EDGE Festival e a saudosa TribalTech que renderam alguns sets icônicos. Além das residências que rolaram também no Terraza, D-EDGE, Seas e Hoax Party. Mas a lista é bem, bem maior…

Nota extra: E quais projetos você admira e quer tocar? “Curto muito o que Gop Tun, Dekmantel e Boiler Room fazem. Mas tem muitos outros ainda…”

A “rainha dos warm ups” 

Esse título não vem por acaso, nem somente pelo profissionalismo, basta estar nesse momento com ela e você vai entender. Sem precisar de hits e momentos edificantes ou intensos demais, essa mulher vai te surpreender. É sobre paciência, segurança, leitura de pista, seleção musical e nesse caso, doses de magnetismo. Com o passar do tempo, a artista foi percebendo essa afinidade com esse momento crucial das festas, mas como sempre, com um olhar estratégico. “Sempre gostei de tocar Deep House, então esse era o som que se encaixava para o início de uma noite que havia progressão no line up. Quando descobri que o que eu curtia era algo cultural nas pistas de fora, tratei de me aprofundar nas pesquisas”.

Aquilo que para alguns DJs soa como ruim, por demandar de um som com bpms mais baixos e, muitas vezes, uma pista não tão cheia, ou aterrorizante – porque você precisa saber muito bem o que está fazendo para conquistar o público – para Aninha é parque de diversões. Na redação do Alataj já tivemos alguns conteúdos que enaltecem essa habilidade inata da artista no aquecimento classudo das pistas, vale a leitura. Pra hoje, vamos deixar a listinha de artistas que ela realizou um warm up de respeito e você poderá tirar suas próprias conclusões sobre o rótulo de rainha:

Agoria
Anetha
Anja Schneider
Art Department
Audiofly
Barem
Bedouin
Blond:ish
Bonobo
Carl Craig
Danny Daze
Dandy Jack
Deborah de Lucca
Dixon
Dinky
DJ Koze
DJ T
dOP

Ellen Allien
Guido Schneider
Guy Jay
Hector
Hito
H.O.S.H
Hot Since 82
Ian Pooley
Joris Voorn
La Fleur
Laurent Garnier
Lee Burridge
Lee Curtis
Lee Foss
Loco Dice
Luciano
Magda
Magdalena

M.A.N.D.Y
Mano Le Tough
Marco Carola
Martin Garrix
Martin Eyerer
Martin Landsky
Mathew Jonson
Mathias Meyer
Mathias Tanzmann
Nastia
Natasha Diggs
Nicolas Jaar
Nic Fanciulli
Nick Curly
Nina Kraviz
Oliver Huntemann
Oxia
Pietre Inspiresco

Radio Slave
Ryan Elliot
Ricardo Villalobos
Richie Hawtin
Rodriguez JR
Roman Flügel
Sharam
Shonky
Sonja Moonear
Soul Clap
Subb-An
Sven Väth
Tale of Us
Tania Vulcano
Tiga
tINI
The Martinez Brothers
Wolf & Lamb
Yulia Niko

Nota extra: e na case hoje?Os artistas que me inspiram hoje são bem diversos, desde a velha guarda aos novos: Mr. G, Octo Octa, Honey Dijon, Valenttina Luz, PR.A.DO, Bruna Holz, Shanti Celeste, Natasha Diggs, The Martinez Brothers”.

Sempre em movimento

Quando perguntei sobre o que ela mais ama sobre sua jornada artística, ela me respondeu:minha jornada é orgânica, estável e sempre com viés crescente. Sinto que não perdi a minha essência”. Orgânica porque o desenrolar da história foi acontecendo naturalmente, sem forçar, mas sempre atenta; estável porque enquanto artista, ela entendeu que é preciso ter paciência e resiliência, curtir as fases boas e se manter firme nas baixas, porque toda carreira artística tem fases; crescente porque estar em movimento é necessário em toda profissão, inclusive nessa, observando e se reinventando sem se perder de si.

Afinal, dentro da esfera da música eletrônica há muito para experimentar. É natural que da carreira de DJ, venha o desejo de fazer suas próprias músicas, suas próprias festas e também ajudar outros profissionais. Não é regra, mas uma profissão criativa permite esses passeios. Por aqui foi assim: sócia fundadora das agências 24bit Management e Alliance Artists, além do LIT Bar em Balneário Camboriú, sócia nas festas Robótika, Lick my Sunday e Seas Label, label owner: AIA Records, Neanderthal Music, Ezpeazy e Fulana Records, a artista da Roland na América Latina e ainda, produtora musical.

Nesse quesito, ela imprime toda bagagem e paixão pela Dance Music, o que rendeu passagens pela Defected, Nite Grooves, King Street Sounds, Nervous Records, Pyramid Records e Wow Recordings, além das nacionais: Totoyov, D-EDGE Records e Warung Recordings. Sobre suas produções preferidas, Aninha nos revela um fato curioso: “curto muito as que fiz com os amigos. Primeiro, acho mais divertido e, segundo, porque elas tomaram proporções que não imaginava, ‘Everything’s Changed’ com Dubshape, parou na Defected, ‘Unclouded’, com Fabø e Maax, foi pra Nervous e ‘Pyramid’ lancei com o Fabø na espanhola Wow”.

Nota extra: e a estética sonora? “Gosto de misturar o velho com o novo. Não consigo ser mais linear como era antes. Gosto de levar coisas novas, de sair da obviedade, quebrar a atmosfera do set e desafiar um pouco a pista com algo mais cerebral”.

Autenticidade e foco no propósito

E por falar em autenticidade, como não citar uma de suas marcas registradas e que traz uma mensagem bem interessante. Se você já esteve nas pistas com ela, sabe que durante seus sets a artista desfruta de um cafezinho. Isso mesmo que você leu. Em meio ao fervo, luzes, som alto e clubbers efervescentes, a artista toma com toda classe do mundo, um café. Um rider de hospitalidade diferente, não é mesmo? “Amo ser sóbria. Quando recebo um bom café no palco, vejo isso como um gesto de atenção e carinho. Preciso me manter com energia e como não tomo energético, só duas coisas me mantém acordada: meu café com leite ou algum drink sem álcool com gengibre”

Portanto, caros clubbers, a mensagem aqui é: tudo bem estar sóbrio nas festas, mesmo que uns e outros duvidem de você. Aliás, está tudo bem também ser DJ e ser careta. Essa visão desmistifica a imagem do artista envolto em estereótipos e que estar de corpo presente e preparado para seu trabalho é fundamental e faz diferença. Tá tudo bem se divertir um pouco, mas como já disse a artista em uma entrevista aqui no Alataj: “todo trabalho deve ser feito de forma séria e honesta, na música eletrônica não será diferente”. Afinal, trabalho é trabalho e passar do ponto não combina.

Quando falamos sobre a carreira até o momento presente, Aninha diz o seguinte: “sinto que fiz muita coisa, conquistei muito também, mas nunca acho que é o suficiente. Sempre quero fazer mais e ir mais longe”. Atualmente, ela está em modo pesquisa, analisando novos comportamentos sociais para idealizar um novo projeto. Além disso, dois movimentos já confirmados para 2025: A Rádio Fulana no Speaker e jurada ao lado de duas outras divas, ANNA e Joyce Muniz, em uma competição para produtoras musicais na Lady Of The House de UK. Tá bom, meu bem?

O futuro pode até ser incerto, mas a determinação aqui é clara: ela seguirá tocando, empreendendo e movimentando. Como ela já disse por aí: “se eu sumir, não se preocupe, estou inventando algo e já volto”.

Nota extra: E o futuro? “Sou a eterna grata insatisfeita. Sempre quero fazer mais e ir mais longe.”

Closing set…

Se você chegou até aqui, percebeu que Aninha conseguiu um feito e tanto: ela não é só conhecida e admirada por diferentes gerações, ela segue capaz de surpreender através do tempo. Há segurança, mas há impermanência. Quem está chegando agora provavelmente foi arrebatado recentemente por ela em um set. Mas, não só isso, ela é capaz de fazer a velha ou a “não-tão-jovem” guarda sair de casa só para curtir o seu set. 

Sua destreza em aproveitar muito bem os slots concedidos renderam respeito e fascínio, tanto do público, como de tantos artistas e players. Além disso, é fundamental citar que ela segue sendo uma inspiração para todas as mulheres que visam se profissionalizar neste segmento, deixando uma mensagem muito forte sobre autenticidade. E convenhamos, essa mensagem não serve só para mulheres.

Ao estudar e refletir sobre sua história, percebi que são muitos detalhes de uma trajetória vanguardista, que contribuiu para pavimentar o caminho em um tempo totalmente diferente do que temos hoje e que deixa uma lição muito valiosa sobre trabalhar duro com muita personalidade, respeito e persistência. É dessa forma que ela se mantém até hoje como uma artista em um patamar elevado dentro do cenário. Esse Storytelling, sem querer, acabou se metamorfoseando para uma espécie de case de inspiração profissional para artistas que estão começando, para quem já está no jogo e para você que lê, assim como eu, que escrevo.

Aninha é como um set de warm up: começa discreta, te envolve aos poucos, mas quando você percebe, já está completamente imerso na história que ela conta. Sua carreira é um long set cuidadosamente pensado, coerente, preciso, mas também inesperado e inovador. Pra gente que está na pista dançando, o passeio nos leva para um caminho certeiro de conexão, entrega e deleite.Nota extra: E o aprendizado, Aninha? “Tantos. Mas, me manter firme no meu propósito, sem ferir meus ideais, respeitando tudo e todos, é o básico”.

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