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A música conecta

Talks | Quais os caminhos a seguir para termos uma cena mais representativa?

Por Laura Marcon em Alataj Talks 07.08.2020

A música eletrônica nasceu das minorias marginalizadas dos anos 80, nos Estados Unidos. Negros, gays, trans, imigrantes, essas eram as pessoas que dançavam ao som de artistas que também compunham a mesma comunidade. São eles responsáveis por você estar hoje dançando em clubs, festivais, eventos independentes e escutando uma boa faixa/set no conforto do seu lar. Os anos se passaram, o gênero foi ganhando força e popularidade no mundo todo e o que era para ser uma potência da diversidade infelizmente se transformou em um cenário de exclusão em grande parte do mundo, sem representatividade tanto na pista de dança e principalmente nos palcos. Aqui no Brasil enxergamos nitidamente esse triste movimento. 

Felizmente, há alguns anos presenciamos núcleos independentes e coletivos buscando uma mudança nesse ambiente e trazendo essa questão de forma consistente em nosso cenário, incentivando artistas, implementando ações relevantes para aproximar a música eletrônica desse público e estabelecer uma relação de igualdade na pista de dança, como deveria acontecer desde sempre. Ainda há um longo caminho a se percorrer e muito mais a se fazer para atingirmos algo perto do ideal. 

O tema é complexo e abrange diversas questões importantes que o norteiam. Sendo assim, convidamos três representantes desse movimento para nos trazer suas opiniões.  A DJ Linda Green, Lourene, fundadora dos selos Gold Dome e Redoma (Curitiba/PR), e DJ GB respondem a pergunta: quais os caminhos a seguir para termos uma cena mais representativa? Os participantes desse Talks trouxeram informações relevantes e levantaram reflexões valiosas sobre o assunto que merecem sua atenção. Acompanhe.

Linda Green

A falta de representatividade na cena reflete a estrutura patriarcal, eurocêntrica e normativa da sociedade. Para gerar uma mudança, produtores e curadores devem entender o que significa classe hegemônica e privilégios. É preciso estudar e desenvolver a consciência sobre o que é racismo, machismo, LGBTQIAfobia, classismo e outras formas de opressão, e como isso se manifesta no cenário musical. Entender que as pessoas não têm direitos iguais e nem oportunidades iguais.  Superar as desigualdades de representatividade implica em pensar ativamente, em 100% dos casos, se existe os line-ups, as equipes de trabalho, os cargos de liderança estão sendo ocupados por pessoas diversas.

O equilíbrio vem do cuidado e do entendimento que a falta de diversidade não só empobrece a cena culturalmente, como reforça o sistema opressor. Parar e refletir qual é a proporção entre pessoas brancas e pretas, homens e mulheres, cis e trans, héteros e LGBTQIA, e corrigir as desigualdades com atitudes inclusivas.Não só sinalizar essas ações para capitalizar em cima de responsabilidade social, mas usar para educar os frequentadores da cena sobre todas essas questões e gerar um impacto real na comunidade.

Lourene

Primeiro quero frisar que essa discussão é bastante complexa. 

Inicialmente é necessário compreender o que seria “representativa” e, para tal, já cito a incrível Profa. Dra. Celina Nunes de Alcântara (com foco e experiência na área de Artes) que discute questões decoloniais das quais eu não consigo me desvincular para trazer luz ao assunto de um possível movimento cultural e de música eletrônica menos hegemônico, elitista e higienista. “Dar visibilidade e protagonismo a vozes excluídas, marginalizadas e, sobretudo, colocadas (não de forma ingênua) histórica e politicamente em bordas hierarquicamente arranjadas para que determinados grupos possam falar em detrimento de outros” (ALCÂNTARA, C. N. 2018). Além disso, como trabalho em Gold Dome e Redoma, buscar maior ocupação de espaços historicamente dominados por homens brancos, cisgênero, heterossexuais, ricos e elitistas, apoiar toda e qualquer iniciativa de diversificação e defender o “lugar de fala” (conceito de Djamila Ribeiro). 

Citando duas manas pesquisadoras e ativistas, abro a minha resposta para um debate que vai muito além da palavra. É necessário sair da posição materialista e positivista de ciência ou prática de um único lugar do saber ou de verdades absolutas. Em minha experiência, em primeiro lugar, é necessário sentir. Sentir que muitas pessoas foram injustiçadas, caladas, queimadas. Sentir – lá no fundo – que é “o minimal” (brincadeira que faço para explicar o que “é o mínimo”, na música eletrônica) ouvir todo e qualquer ser que expresse o que quer expressar – até mesmo em seu silêncio. Utilizar dessa feminilidade poderosa que é o sentir, o intuir, o acolher… para encerrar qualquer prática de violência (aqui incluo a estigmatização, discriminação, abuso e tantas outras) à sexualidade, ao gênero, à etnia, classe, variedade em habilidades corporais e, ao meu ver, a todo e qualquer ser vivo. Sim, é necessário que a indústria e todas as facetas da existência humana se livrem da crueldade histórica determinista. Para além de “dar espaço”, é necessário entender muito bem o que isso significa, afinal, muitos convites são feitos a mim e as pessoas em lutas citadas acima, mas só para o bem do capital ou do modismo – visto que ao chegar nesses “espaços” as estruturas heteronormativas continuam sendo horrorosas, exploratórias e discriminatórias. Não existe mais “minoria”, nunca existiu! 

Para iniciar uma transformação é imprescindível, antes de mais nada, desconstruir o que foi ensinado e condicionado como padrão/normal. Identificar que, enquanto um ser biopsicossocial, cultural, ecológico, espiritual (multidimensional, mesmo), fui programada para notar e julgar o diferente, mas – exatamente por me encontrar em 2020 e acessar tecnologia e avanços suficientes para ter consciência e não precisar mais agir como meus antepassados – buscar a ressignificação de todas as práticas hierárquicas e de romantização do sofrimento. 

Numa perspectiva de que o micro é o macro e eu também sou o todo – a mudança precisa iniciar-se dentro de mim (tão antiga essa fala, né? e ainda assim é preciso trazer). Como quero um movimento de música eletrônica mais representativo se eu mesma não represento meu ser como ele precisa? Se eu mesma não aceito quem sou, se não conheço e não integro minhas dificuldades e potencialidades? Se eu não busco auto-conhecimento, escuta e acolhimento? Existem ferramentas diveeeersas milenares ou atuais facilitadoras desses processos todos… Não vou citar todas as que conheço, mas a introdução do meu primeiro álbum autoral já apresenta uma delas: aqui e, junto à equipe de Gold Dome e Redoma – trabalho incansável e prazerosamente para gerar acessibilidade aos dispositivos de cura e transfiguração interna e externa, por exemplo: aqui, aqui também e aquy.

https://www.instagram.com/p/CAEeRRYh4l2/

Por fim, enalteço os caminhos do poder essencial do amor e da arte nisso tudo. Sem isso, seguirei projetando meu lixo no outro e criando cenários excludentes – mesmo naquela posição antiga do “foi sem querer”. Numa visão da contempiranhedade (não é clássica, não é moderna, não é contemporânea) e da dmtologia (é natural e possível), amor e arte estão atrelados a todo este debate resumido nessa minha resposta – incluindo saúde, liberdade e uma nova concepção do tempo. Só assim consigo vislumbrar para o mundo da música eletrônica os “milagres” que já vejo acontecer em nossas práticas por aqui – expressadas artisticamente em um quase longa-metragem que pode ser acessado em nossa participação no Festival Radiação.

DJ GB

O mundo tem vivido transformações importantes nos últimos meses. A pauta da luta anti-racista ganhou força na mídia após o assassinato de George Floyd, homem negro, pela polícia nos EUA. Esse episódio muito triste, mas que infelizmente não é novidade e ocorre com frequência nas comunidades brasileiras, serviu como estopim para que protestos tomassem os EUA e o mundo, trazendo a luta anti-racista para a pauta do dia. Na cena de música eletrônica não foi diferente. Inclusive, recentemente, acompanhamos a mudança de nome artístico de nomes importantes do cenário mundial, como The Black Madonna e Joey Negro. No entanto, uma pergunta importante que devemos nos fazer é: quais são as ações concretas que nós, produtores de eventos brancos, que somos maioria e temos grande responsabilidade pela realidade da cena, estamos tomando para mudar o quadro de hegemonia masculina, cis-heteronormativa e branca da cena de música eletrônica? Certamente, participar do Black Out no Instagram não é o suficiente.

+++ The Black Madonna anuncia mudança de nome

Partindo pra ação, acredito que existam algumas práticas que podem produzir mudanças reais no cenário: a primeira delas é ouvir mais. Ouvir, de fato, as demandas apresentadas pelos grupos que permanecem fora dos line-ups, fora das produções dos eventos, muitas vezes até fora da pista (mas muito presentes no staff, por exemplo). Não esperar uma crise ou cancelamento para agir, e ouvir é única forma de estabelecer um diálogo real. A segunda coisa é: estarmos atentos a composição homogênea dos espaços de maior destaque no cenário e não naturalizarmos isso. Nos perguntarmos os porquês da falta de representatividade e nos dedicarmos a entender os processos estruturais de exclusão, agindo de forma ativa para reparar injustiças históricas. E podemos fazer isso de duas formas: trabalhando de fato como curadores, ou seja, ampliando nosso espectro de pesquisa, buscando novas referências, desnaturalizando nossos “gostos pessoais” e entendendo que o gosto também é uma construção, nos colocarmos de forma aberta para articular o cenário que fazemos parte. A outra forma é trazendo a cultura DJ e a cultura das pistas de dança para a pauta. Nem todos conhecem a origem da House Music, do Techno ou da Disco Music, e fazer essa discussão é sempre produtivo, complexifica a história toda e supera aqueles bordões simplistas como “só pela música”. Por último, e muito urgente, é necessária uma democratização do acesso aos equipamentos. Não existe discotecagem sem equipamento e sabemos que eles são caros. Então, a materialidade das ações é fundamental, as pessoas que estão fora do jogo precisam ter acesso aos equipamentos para poder jogar. E representatividade artística tem um efeito dominó, carrega mais pessoas para a pista e gera novos núcleos de produtores de festas que veem-se representados pelos DJs. 

Por último, encararmos os dados e agirmos a partir deles, seja para reconhecer situações terríveis de falta de representatividade, seja para identificar ações que tiveram efeitos positivos. Cito aqui a pesquisa feita pela Aberta, que identificou que, na maior parte das capitais, os line-ups não chegam nem em 5% de pessoas negras. No entanto, a representatividade feminina já passa de 40% em cidades como Porto Alegre e BH, situação muito diferente da que era encontrada há dez anos, por exemplo. Ainda há muito o que fazer, mas esses números (que dizem respeito ao cenário alternativo, evidentemente) são efeito de muita briga das minas contra os famosos “paredão de boys”. Ou seja, quando uma pauta é levada a sério, em algum tempo nós podemos ver efeitos práticos no cenário. Quando os rolês voltarem, como será a composição do line-up da tua festa?

A música conecta.

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