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A música conecta

O protagonismo e evolução da Dance Music no Brasil

O lugar era apertado, com a pista e o bar compondo o único ambiente. Tomava-se cerveja de garrafa de 600 ml e o DJ tocava direto do laptop, sem mixer ou CDJ. O público transbordava para a calçada na frente. Não era cobrada entrada, bastava chegar. Em 2009, nesse lugar de aparência improvisada, o futuro da noite de São Paulo era gestado. 

O despojamento do Bar do Netão não podia ser mais distante do sistema reinante nos clubs de São Paulo da época, com seus seguranças, comandas e preços altos no bar. Localizado na Rua Augusta, na região central da cidade, o bar tinha festas como propostas diferentes a cada noite, sendo a Posh uma das pioneiras. Em seguida, apareceu um emigrado alemão chamado Thomas Haferlach querendo fazer uma das noites, que ele batizou de VoodooHop

Os eventos da VoodooHop começaram a atrair cada vez mais público e logo a festa teve de ir para um lugar maior. Lá o clima era solto, livre, diversificado, e o fim da noite costumava coincidir com a hora do almoço de domingo. Thomas encorajava as pessoas a irem montadas oferecendo descontos. Já existia em São Paulo a legislação anti-cigarro, mas as pessoas fumavam no meio da pista, reforçando a ideia de lugar avesso a regras. 

O clima feérico da festa, movida a sons eletrônicos de DJs ou live PAs, mesclas de discotecagem e instrumentos, bandas ao vivo, em um desfile de escolas musicais diversas, atraiu gente de todo o espectro. Incluindo, vale destacar, pessoas para quem uma festa de música eletrônica era sinônimo de roubada, imagem comum no fim dos anos 2000 graças à profusão de eventos infestados de playboys e raves toscas de Psy-Trance. 

Na VoodooHop, todos eram incentivados a se expressar, a mostrar seu lado mais desvairado. Era normal ver alguém passeando sem roupa pela pista. Performers, VJs, músicos, DJs e criativos em geral foram atraídos pela festa. Thomas tinha uma política de dar oportunidades para artistas novos. Das pistas da Voodoo (eram sempre várias) emergiram muitos dos nomes que fundariam uma nova cena eletrônica na cidade. 

A partir daí, o novo modelo se multiplicou em novos núcleos, que fizeram festas na rua, em praças, em fábricas abandonadas e ocupações do MTST. Nunca em clubs. Houve até festa num túnel embaixo de uma praça no Centro da cidade, o chamado Buraco da Minhoca, que fechava durante à noite (por volta das 5 da manhã tudo tinha que ser desmontado antes que os carros voltassem a circular). Uma nova constelação de realizadores se firmou na cena: Capslock, Mamba Negra, ODD, Selvagem, Metanol, Sangra Muta, Dusk, Blum, Gop Tun, entre outros. 

Tudo isso era mais que apenas festa na visão de muitos que faziam e frequentavam. Era um espaço de transgressão, de afirmação de identidades sexuais, de protagonismo feminino, de visibilidade trans. “A festa é um ato político” era uma frase comum de se ler e ouvir. O movimento se alinhou com os debates quentes dos anos 2010: da representatividade de minorias à luta por uma cidade mais humanizada. Quando a posse de Jair Bolsonaro coroou a guinada conservadora do país, o movimento adquiriu contornos de resistência. 

Outras cidades brasileiras começaram a fazer eventos em linhas parecidas, como Porto Alegre, Brasília, Belo Horizonte e Rio de Janeiro. O interesse pelo cenário veio de várias partes do mundo, com documentários dirigidos por estrangeiros e matérias em veículos como Resident Advisor, Electronic Beats e The Guardian

DJs e produtores como Cashu, Paulo Tessuto, Millos Kaiser, Trepanado, Amanda Mussi e L_cio rodaram por vários países. Por meio de parcerias com núcleos locais, festivais europeus como Dekmantel e DGTL aportaram em terras brasileiras. 

A cena das festas independentes, sem dúvida, reposicionou a música eletrônica no cenário cultural do país e renovou seu público. As percepções sobre gêneros como House e Techno e o universo de clubbers e ravers estavam mudados, em um lugar muito distante da estagnação do fim da década de 2000.

Se esse era o lado mais cool e inovador da música eletrônica nacional da última década, ele não era o mais popular. Sim, festas como Mamba Negra e Capslock contam com milhares de seguidores, presenciais e digitais. Mas a primeira divisão da popularidade e receita estava em outro lugar, outro planeta poderia-se dizer. 

DJs como Alok, Vintage Culture e Cat Dealers formaram ao longo dos anos 2010 uma casta superior da música eletrônica brasileira, estabelecendo marcas de vendas e popularidade nunca vistas. A seu modo, em outra esfera, também estavam arrebanhando multidões de novos ouvintes para as batidas eletrônicas e sons sintetizados. 

Aqui não cabiam os discursos da transgressão, mas da amabilidade que fica bem longe de qualquer controvérsia. Esta é uma faceta da música eletrônica apresentável em qualquer ambiente familiar. Não à toa, sucessos como Hear Me Now, de Alok, são hits entre as crianças e adolescentes. Seguindo forte tendência entre DJs populares, o goiano virou personagem do bombado game Free Fire. “São adolescentes que não podem ir a baladas e serão futuros fãs”, explicou à revista Veja sobre quem busca atingir com a iniciativa. 

No início dos anos 2000, os DJs de música eletrônica mais populares do país, que enchiam as pistas nos festivais eram nomes como Marky, Patife, Rica Amaral e Mau Mau. Eram artistas com um vínculo mais direto com a cena alternativa, tendo aprendido seu ofício nas pistas underground. Seu trabalho buscava manter uma essência que não afastasse seus fãs originais.

Embora seja verdade que Alok tenha tido seu batismo de DJ nas areias do Universo Paralello, sua estratégia sempre foi a de ser o mais abrangente possível. Os mais velhos talvez lembrem da “polêmica” que foi Mau Mau tocar no trio elétrico de Daniela Mercury. Pois Alok tem seu próprio trio. É headliner de micareta. Gravou com a dupla de feminejo Simone e Simaria. E toca remix de Mamonas Assassinas. A figura de Alok pode ser menosprezada pelos guardiães do bom gosto, mas o fato é que o DJ construiu uma ponte entre a música eletrônica e a cultura de massa do país. 

No caso de Vintage Culture, ou o sul-mato-grossense Lukas Ruiz, o que primeiro chamou a atenção foram seus remixes de faixas bem conhecidas de New Order e Pink Floyd. Rapidamente, ele definiu sua identidade sonora, caracterizada por uma levada limpa e arredondada (em consonância com uma sonoridade rotulada de Deep House, mas que era bastante distinta do que se conhecia por Deep House no underground). 

Além disso, o DJ e produtor investiu pesadamente em redes sociais e, segundo contou à revista Rolling Stone, “já cheguei a dever R$ 187 mil no banco de tanto que investia nas redes sociais”. Curioso é que perto de Alok, Vintage Culture é “underground”. O DJ e produtor não aceitaria, por exemplo, ir no programa do Faustão, coisa que Alok já encarou com um sorriso de ponta a ponta.

Para além das festas independentes e dos superastros, a influência eletrônica tem ocupado diferentes pontos da paisagem cultural do país. Influências estéticas se espalham por diversos gêneros e artistas da música brasileira, de Duda Beat a Pabllo Vittar, de Letrux a Luan Santana, de Criolo a BaianaSystem. Temos Sertanejo eletrônico, Funk rave e Trap com timbres de Trance. Isso comprova que referências estéticas, repertórios técnicos e nomenclaturas que há uma década ainda eram de nicho hoje estão disseminados por todo o mapa.

A música conecta.

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