Se não estivéssemos vivendo tempos de pandemia, esta seria uma semana de muita ansiedade e de grandes preparativos para um dos festivais mais emblemáticos do mundo. Afinal, quantas vezes você não escutou em uma roda de amigos “meu sonho é ir para o Burning Man”? O encontro anual que acontece no deserto de Black Rock, em Nevada (EUA), é uma experiência tão peculiar e misteriosa que num primeiro momento até me questionei se poderia defini-la ou descrevê-la, já que ainda não tive o privilégio de estar lá. Felizmente conto com bons amigos que já foram, registros na internet, entre vídeos e sets gravados, e outros materiais que me permitiram uma base na hora de escrever. Espero não falhar miseravelmente e me embaralhar ou esquecer de tantas informações incríveis.
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Considerando que somos um site de música eletrônica, a primeira coisa que pensei na hora de falar sobre o Burning Man é: se você pensa que esse é um festival de música eletrônica, está completamente enganado! As festas e pistas de dança que se formam em qualquer lugar (literalmente) de Black Rock City são apenas um dos atrativos do evento. É claro que é um baita atrativo, já que ele reúne uma gama imensa de artistas de todo o mundo e dentro deles nomes aclamadíssimos da música eletrônica, entre pioneiros do cenário, novos talentos e até mesmo figuras que eram desconhecidas e que ganharam notoriedade por conta de boas apresentações por lá.
Mas antes de falar de música mesmo, quero te fazer conhecer mais sobre o festival e aí entra o segundo pensamento que me veio à cabeça e que eu acho impressionante: o Burning Man acontece no meio de um deserto em uma cidade construída pelos participantes de sua comunidade, em forma de meia lua, com ruas e bairros e que abriga mais de 65 mil pessoas durante uma semana. Tudo o que ali é construído simplesmente não existirá mais em poucos dias e o deserto seguirá intacto após o festival, como se nada tivesse acontecido. “Do pó ao pó” é um dos 10 princípios (já falaremos sobre isso também) que regem o que eles não consideram um festival, mas sim um experimento social colaborativo, de comunidade e contracultura.
Apenas a forma como o Burning Man é produzido já faz dele um evento completamente fora dos padrões em todo o mundo e sua história também segue moldes diferenciados. A ideia nasceu em 1986, quando Larry Harvey e Jerry James, fundadores do festival, resolveram, em um belo dia, improvisar um homem de madeira em uma praia de São Francisco para queimá-lo no solstício de verão, o que aconteceu na presença de algumas pessoas. Satisfeitos com o resultado, a dupla resolveu repetir a ideia no ano seguinte e assim foi acontecendo anualmente, cada vez tomando proporções maiores. Em 1990 a polícia local proibiu a queima do homem, forçando o duo a buscar outro lugar para realizar o evento e aí entrou o deserto de Black Rock.
A construção de um gigante homem de madeira e sua queimada acontece em todas as edições e é um dos momentos mais aguardados do festival, reunindo todos os cidadãos da cidade para uma celebração cheia de diversidade. Além do grande símbolo do Burning Man, outras obras e construções gigantes realizadas especialmente para cada edição do festival são queimadas e uma delas que eu não poderia deixar de citar é O Templo, uma construção muito especial e que abriga mensagens, objetos pessoais, fotos e outras lembranças de pessoas queridas que se foram, tudo isso deixado pelos milhares de participantes do festival. Ao final, O Templo também é queimado em um ritual carregado de sentimento e muito respeito ao seu significado.
Sobre aqueles 10 mandamentos que falei anteriormente, poderia ficar parágrafos e parágrafos comentando sobre. Eles não ditam como as pessoas devem ser e agir, mas devem ser como um resultado da cultura da comunidade. Além do princípio da preservação do meio ambiente, destaca-se a livre expressão, participação intensa, inclusão radical, senso de comunidade, imediatismo (faça o agora valer à pena) e a descomoditização, ou seja, a quase inexistência de comércio. Deve-se levar tudo para manter a sobrevivência enquanto estiver por lá. Café e gelo podem ser comprados, no mais, ou você leva, ou, no caso de um aperto, conta com a colaboração de colegas da cidade.
É uma grande troca. Quando eu digo isso é porque tem-se uma infinidade de experiências únicas através da iniciativa de pessoas que não buscam retorno financeiro, mas a troca de vivências, sentimentos e energia. Obras de arte espalhadas, correio, borracharia e manutenção de bicicletas (lá só se anda de bicicleta ou carros alegóricos autorizados), aulas e espaços de yoga e meditação, locais para apresentações folclóricas, escola para crianças e adolescentes, casa da orgia (sim, você leu isso), acupuntura, estúdios de tatuagem, cafeterias, um local onde acontecem as famosas mini palestras TED Talks – você acredita? E eu estou citando uma parte minúscula das experiências formidáveis que se pode viver. Tantas possibilidades que acabaram por fazer nascer um sentimento que gerou a expressão FOMO – Fear Of Missing Out, que é o medo de estar perdendo alguma coisa interessante quando não se pode estar em mais de um lugar ao mesmo tempo.
Agora a música. Se você leu até aqui tem alguma dúvida de que as experiências musicais são simplesmente fora de série? O Burning Man conta com diversas comunidades específicas e no quesito musical algumas criaram suas próprias pistas de dança. A mais famosa delas é sem sombra de dúvidas o Robot Heart. Trata-se de um caminhão de lata que vai circulando pela cidade e que se estabelece todo dia em um local diferente. Escolhido o local, sobe um mastro alto que leva um coração iluminado na ponta indicando sua posição e em seguida vê-se milhares de bicicletas e pessoas fantasiadas, livres, prontas para dançar ao som de uma variedade de ótimos artistas. O line-up, bem como os horários das apresentações, são divulgados dias antes do festival e não é uma informação tão fácil de se encontrar. O negócio é chegar e se surpreender com que vier.
Além do Robot Heart, o festival também abriga a White Ocean, outra pista de dança conhecida e que também é palco de apresentações emblemáticas. Outras pistas também se formaram ao longo dos anos e lá você poderá escutar desde artistas bem conceituados como Acid Pauli, Lee Burridge, DJ Tennis, entre outros, até mesmo a galera mais comercial como Diplo e Alok. Tem para todos os gostos. Um dos destaques da experiência é que não existe sistema de iluminação no deserto, não é? Então além de fantasiado, o público está sempre recheado de adornos iluminados para que as pessoas possam, além de se divertir, enxergar o que está acontecendo à noite. Outro ponto alto é, sem dúvida, o nascer e pôr do sol, uma experiência que provavelmente fica guardada na memória para sempre.
Acho que falei demais e nem trouxe um pedacinho de tudo o que gostaria, confesso. Mas vou chegando em minhas últimas linhas e não poderia deixar de contar que o Burning Man, apesar de desaparecer no deserto depois do seu encerramento, continua suas atividades fora dele, através de um lindo movimento artístico, de apoios comunitários, incentivo à geração de conteúdos no festival e, principalmente, um movimento cultural do amor, diversidade, inclusão e valorização do intangível.
Bom, como estamos em tempo de pandemia e a ansiedade e os grandes preparativos não estão acontecendo, o Burning Man preparou um evento online que acontecerá no período em que o festival estaria rolando, do dia 30 de agosto a 6 de setembro. Uma experiência virtual multiversa foi criada com instalações artísticas, sets, eventos das comunidades existentes e outras possibilidades. Você pode experimentá-la no site do festival. O evento termina com o Burn Night: Live from home, que reunirá artistas do mundo todo para apresentações online.
Depois de conhecer um pouco mais sobre esse evento surreal, termino esse Around the World com a mesma frase que comecei esse texto: “meu sonho é ir para o Burning Man”.
A música conecta.