No mês passado, iniciamos uma série especial e temporária aqui no Alataj chamada Diggin Essence. Como só tivemos uma edição por aqui, vale a pena reforçar: esta é uma série que presta tributo a artistas que construíram suas carreiras essencialmente como DJs, agregando e muito a esta arte que é tão complexa e por vezes subestimada. De Agosto a Dezembro, no primeiro sábado de cada mês, traremos uma análise especial tendo alguns nomes em foco e os destacando a partir de tópicos que fazem de suas jornadas tão singulares. Em agosto, tivemos Omoloko pelas palavras de Isabela Junqueira. Agora seguimos rumo de Currais Novos rumo a Paris.
Laurent Garnier recebe as honras a partir de agora e decifrá-lo é uma tarefa sutil e extremamente profunda quase ao mesmo tempo. Muitos dos grandes seletores musicais que temos na atualidade não estão presos a um estilo de som específico. São nomes que passaram por House, Techno e suas vertentes ao longo de décadas, ora mais ancorado em algum movimento, outrora flutuando entre vários. Vários DJs muito promissores perderam sua essência neste caminho, às vezes por seguir demais tendências ou simplesmente por não conseguir equilibrar tanta informação musical ao longo do tempo. É aqui que a genialidade de Laurent começa a prevalecer. Mas para entendê-lo, é importante um rápido olhar para o começo.
Sua história como DJ começa nos anos 80, mas não exatamente na França. Por volta de 1984, Laurent se mudou para Londres com a missão de trabalhar na Embaixada Francesa do país. Dois anos depois ele chega em Manchester, onde influenciado por DJs locais, começa a discotecar. Em 87 se aproxima de Mike Pickering, um dos residentes do Haçienda, club lendário onde ele reconhece que sua carreira começou de fato. Um ano depois, para cumprir obrigações militares, Garnier retorna à França, mas sua caminhada pelo mundo precisava de um pouco mais de estrada antes de um retorno em definitivo ao país.
Ainda no fim da década de 80, Laurent passaria uma temporada em Nova Iorque, onde se conectou com ninguém menos que Frankie Knuckles, justamente em um momento de efervescência criativa enorme dado o surgimento da House Music. Suas atenções retornam à França no começo dos anos 90 e já com uma bagagem de vida e música muito rica, sua carreira começa a se desenvolver intimamente com a cena de Paris. Daí em diante, o que se testemunha é uma das histórias mais ricas e importantes que a música eletrônica já registrou, com trabalhos que atravessam gerações e algumas particularidades incríveis no que diz respeito a sua identidade e personalidade artística, as quais listamos 4 desses destaque a seguir:
Biblioteca musical
Lembra o que falamos sobre artistas que não possuem sua identidade atrelada a um único estilo? Laurent Garnier vai muito além disso, pois sua atuação dentro da música eletrônica pode ser resumida quase como uma grande enciclopédia. Ou melhor, uma biblioteca musical, formada por vários livros e capítulos. Laurent é um dos nomes chaves para o sucesso estrondoso do French House, mas você pode conversar com historiadores do House, Progressive House, Acid House e do Techno que eles reconheceriam sua importância também. Para além disso, há também notório reconhecimento de sua figura para formatação da cultura que existe em torno do DJ nos dias de hoje, fruto de esforços que são muito mais longevos do que imaginamos. Laurent Garnier é House, é Techno, mas muito além disso, é música, no sentido mais amplo que ela pode oferecer: Rock, Reggae, Jazz, Soul, Disco, New Wave, Punk… até o ponto onde tudo se mistura e recomeça.
F Communications
Gravadoras lendárias da nossa cena tem algo em comum: a visão criteriosa de um grande DJ sob suas curadorias. Criada em 1994 por Garnier e seu colega Eric Morand, a F Communications é um dos selos de maior importância da indústria e também um dos pilares da carreira de Laurent Garnier. Foi dentro de sua própria gravadora que ele lançou alguns de seus trabalhos mais relevantes, entre eles The Man With The Red Face e Crispy Bacon. Como em outras histórias sobre artista e gravadora, há um entrelaço de identidade aqui. Laurent é FCom, FCom é Laurent. Não há dúvidas que a gigantesca importância histórica do selo só é tão notória por conta do cuidado que seus curadores tinham com a sua discografia, o mesmo cuidado que um grande DJ coloca em suas apresentações.
Viajante explorador
Você já parou para pensar como a música eletrônica se espalhou a partir de seu surgimento, em uma época onde a internet simplesmente não existia como a conhecemos hoje? Esse fenômeno de expansão cultural tinha alguns pilares: lojas de discos, revistas e claro, artistas e público. Ser um DJ na década de 80 e 90, era ser responsável por levar essa nova cultura que estava surgindo, para novas cenas. Também por isso, Garnier é reconhecido como um dos grandes responsáveis por popularizar a Dance Music na Europa e seu legado é de extrema importância neste processo. Diferentemente de conquistas como álbuns ou prêmios, há um toque mais discreto aqui, mas que deve sim ser lembrado e celebrado na jornada de um DJ como ele.
Atitude
É comum que alguns artistas com belíssimas obras encontrem um lugar de maior acomodação com o passar dos anos. Isso raramente é positivo e pode se manifestar em uma perda de profundidade musical ou acomodação perante a problemas ou temas sensíveis relevantes à comunidade. Para além de sua música, mas com um impacto notório sob ela também, um dos fatores de maior admiração dos fãs de Laurent, é justamente como ele se manteve sendo um artista e profissional com atitude, dentro da cabine de DJ, mas fora dela também, participando de debates que ajudam a construir um cenário de evolução para a comunidade.
Se a sua carreira se resume nesses 4 destaques? Com certeza não, mas sua essência como DJ, passa totalmente por esses pontos, oferecendo aquela complexidade que é inerente a grandes lendas da arte de discotecar.