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A música conecta

Afinal, por que o Funk incomoda?

Por Carolina Souza-Cruz em Editorial 12.05.2022

Quando eu tinha 16 anos em 2007, comecei a escrever sobre música para mim mesma, acreditava piamente e erroneamente que sabia tudo. Aquela radicalidade adolescente quando temos um novo tema para ficarmos obcecados, sabem? Ganhei os meus primeiros discos aos 6 anos, e a primeira lembrança musical que tenho foi The Robots, som de umas das bandas alemãs precursoras da música eletrônica, Kraftwerk, do álbum Man Machine.

A minha avó teve por anos uma agência de modelos, onde fazia desfiles conceituais, e tinha um diretor musical com um repertório de dar inveja aos music geeks até hoje. Herdei todos esses discos que tocavam nos desfiles, entre eles Pet Shop Boys, Afrika Bambaata, Donna Summer, Depeche Mode, Johnny Cash, Beatles e por aí vai, o melhor do melhor em cada gênero musical. Ou seja, eu tinha a faca e o queijo na mão para ser uma chatonilda blasé.

A minha mãe, em contrapartida, era uma romântica com alma extremamente brasileira. Enquanto cantava Marisa Monte para mim, escrevia poemas e cartinhas citando músicas da Gal. Quando me buscava no colégio, colocava Daniela Mercury e Olodum na fita cassete e dançáva-mos até chegar em casa. Então, cresci tendo muito respeito por diversas categorias de música, pessoas e artistas. 

Fiz toda essa introdução para entrar em um assunto que, na última semana, me deixou extremamente atordoada. Aliás, não somente eu, mas diversos amantes da música em geral, não de estilos musicais específicos. Trabalho hoje em dia numa revista britânica chamada Pilot como Head of Music, o meu trabalho consiste basicamente em escrever sobre música, tendências, playlists e ter inúmeras referências musicais para incluir nas matérias — um amontoado de muitos anos pesquisando organicamente sons e artistas. Sempre incluo sons brasileiros, não só clássicos do Samba, mas sugerindo novos nomes nas minhas seleções musicais, assim como na minha página pessoal.

Em uma das minhas playlists do ano passado, inclui um som feito aqui no Brasil que mantive, on repeat – uma track extremamente bem-feita e original. O meu atual companheiro é britânico e tem um trabalho bem conceituado como DJ e produtor musical, mais conhecido por um dos seus inúmeros projetos, como residente da DC10 em Ibiza e, por ter tocado nos clubes e festivais mais conceituados do mundo, pelo nome Acid Mondays. O som que mantive em casa on repeat foi Se ta Solteira, faixa produzida por FBC & VHOOR e MC Julia, artistas mineiros, de Belo Horizonte. Meu parceiro ouviu esse som e pirou! Fez um edit em questão de horas, um pouco antes de tocar na primeira festa pós-pandemia no Rio de Janeiro. Quando ele tocou, foi alucinante, a galera amou.

Um amigo nosso em comum, o DJ americano Seth Troxler, ao vir para o Brasil nesse segundo round de carnaval em Abril, ouviu o edit de Se ta Solteira e admirado com o som — como um bom amante de música brasileira e especialmente do funk brasileiro — tocou a track no Rio de Janeiro na festa do Circoloco, e foi muito bem recebido. Geral foi a loucura mais uma vez. Porém, o burburinho começou após ele tocar a track no TimeWarp, o festival alemão que teve uma edição na última semana aqui em São Paulo.

O festival postou um vídeo de Troxler tocando Se Tá Solteira, em sua página oficial no Instagram. Eu estando lá, do lado na hora, o que vi foram pessoas na pista dançando, filmando e curtindo muito. Porém, a reação foi totalmente diferente dos comentários no vídeo. Mais de cem comentários apedrejando, dizendo coisas como “um DJ tão bom tocando funk” ou “quem vai em um festival desses, vai para ouvir música eletronica”. O que, honestamente, me deixou perplexa e confusa. Além dele, a DJ e produtora russa Nina Kraviz, no mesmo horário em outra pista, também foi questionada por incluir um edit da funkeira carioca MC Nick em seu set.

Primeiramente, no caso de Se tá Solteira a tag correta seria Miami Bass, um estilo de som que provavelmente muitos dos DJs que a galera que estava xingando admira, e que em algum momento já devem ter consumido, consomem ou no mínimo já escutaram e respeitam. Se você nunca ouviu Salt-n-Pepa ou Gucci Crew, sugiro pausar aqui a leitura e colocar Push It aí no som agora mesmo. Independente disso, o funk brasileiro também é música eletrônica. Mas os haters não estão nem aí para história musical e suas vertentes.

A reação do público, que provavelmente não estava lá, falando que “não ia em festival de música eletrônica para escutar esse lixo que toca nas rádios do Brasil” o que eles queriam mesmo “era ouvir techno” foi um choque esquisito.

Primeiramente, eu fiz o edit do FCB, VHOOR e MC Júlia porque é uma faixa brilhante e eu queria muito tocá-la na Festa Rara no Rio de Janeiro. É sempre um prazer compartilhar boa música via DJing e também sabia que muitos dos meus amigos DJs iriam adorar a track. Acho absurda a ideia de que algumas pessoas não querem ouvir uma faixa de funk em uma festa ‘techno’.  Funk, como Techno, é música eletrônica. Cada um deles veio de seu próprio ramo de influências e expressões mas nascem da mesma árvore: a música e cultura negra. Forjados em condições igualmente desafiadoras e opressivas, esses estilos realmente têm muitas semelhanças. O Techno foi criado a partir do espírito de inovação, tentando empurrar a cultura para a frente, criando algo novo, em vez de apenas repetir e copiar a mesma coisa que todo mundo estava fazendo. Então, quem reclamar de ouvir algo diferente deve ir fazer sua lição de casa e entender o que o Techno realmente representa, já que definitivamente não se trata de usar camisetas pretas, ouvir gêneros específicos de música em uma festa ou se conformar com ideias pré-concebidas

— Daniel Ward do duo britânico Acid Mondays.

Algumas das pessoas nos comentários do vídeo que o festival postou em sua página oficial, – todos brancos, por sinal – em suas pages do Instagram, se denominam no perfil como produtor/DJ.  E há anos venho dizendo que, provavelmente, só não temos uma vasta gama de DJs e produtores brasileiros fazendo muito sucesso internacionalmente porque boa parte tem medo das suas origens, de usá-las e desbravá-las a seu favor. Pegar todo aquele suposto mal gosto da adolescência e misturar com o som que a sua mãe ouvia e colocar um beat bonzão no topo, talvez seja sim, a fórmula mágica. Os brazucas que o fazem, estão sendo bookados na Berghain, porém, geral nem flagra e ao mesmo tempo cultuam o clube e sonham em estar lá.

Pesquisa musical e conhecimento musical no geral em diferentes gêneros podem fazer um artista se tornar genuíno e apto a desbravar outros mares, fazendo o som chegar na gringa e ser respeitado. Não copiar ou tentar se parecer com eles. Está mais do que na hora de acabarmos com essa ignorância musical, especialmente quando se trata de música eletrônica. Tem um mundo a ser desbravado e te vou dizer: não é questão de gosto, é respeito. Ninguém é obrigado a ouvir o que está na rádio. Mas saber diferenciar o produto de boa e má qualidade que está na rádio, saber distinguir isso, vai provavelmente ser um plus para o currículo dos que trabalham com música, refinando nossos ouvidos assim como refinamos nossos prazeres — para assim, não os tornar vulgar. 

Essa faixa tocada na TimeWarp por Seth Troxler, assim como o da MC Nick que Nina Kraviz tocou, são sons underground, assim como os uniformizados de preto se denominam. E não me entendam mal, não faz mal usar preto não, só digo que isso não faz ninguém mais sério e mais fiel ao suposto movimento.

Funk é música eletrônica, e melhor ainda, é música eletrônica brasileira. Seja no House, Techno, Breaks, Electro ou qualquer outra vertente, a inclusão de vocais e beats de funks trazem autenticidade e invocam uma brasilidade que todos aqui deveriam se orgulhar e incentivar. Temos que aprender a nos valorizar para sermos valorizados, aprender a enxergar a beleza que existe em nossa cultura. Atualmente conta-se em uma mão (talvez um pouco mais) artistas brasileiros que estão nos grandes circuitos de música eletrônica mundial, e temos SIM artistas excepcionais que estão aptos a dividirem os palcos com nomes super hypados da cena internacional.

Lorio, DJ/Produtor carioca de Techno por trás das festas Neblina e Clubinho

O fato de ter artistas pretos, periféricos com um gênero musical totalmente marginalizado em um evento de elite sendo tocados por DJs mundialmente famosos e conceituados deixou a elite enfurecida. Deixou muitos dos caras ricos de uniforme Pantone Techno no festival, muitos que se denominam produtores e DJs na realidade, com inveja.

Imaginem só, o DJ que eles viajaram pela Europa toda e assistem há anos em suas viagens, o cara que eles vêem no after e pedem uma foto, tentam ficar brother, esperar para ter um brecha para falar que também produz música, tocando som de periferia e não o som deles?

Fica aí uma lição de humildade e autenticidade. Quem é de verdade reconhece quem é de verdade, independente do estilo musical. E esse texto todo não é pra encher o saco e metralhar quem reclamou, muito menos falar que tem que gostar de Funk. É uma chamada para pensar, estudar e levar nossa música de qualidade, sendo eletrônica ou não, independente do beat ou letra, mais longe e com mais prestígio para outros países. 

Esse tipo de situação só deixa todos nós da música, mais longe de sermos reconhecidos lá fora. E pra ser reconhecido, reconheça de onde veio, sem vergonha, misture suas influências e esquisitices. Valorize os artistas que conseguiram conquistar espaço na cena, porque acredite, raramente é por acaso — geralmente teve muito trabalho envolvido, e como chegou no gringo, sendo orgânico ou não, pouco importa. E esses que “chegaram lá” tem uma coisa em comum: sabem quem são e não tentam ser outra coisa. Essa percepção e conscientização não há dinheiro ou a CDJ mais incrível do mercado que compre, meus queridos.

Apoiem a música feita no Brasil, por brasileiros, porque lá fora já o fazem.

A música conecta.

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