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A música conecta

A rota do empreendedorismo na música eletrônica mudou? Um novo olhar sobre o caso

Por Alan Medeiros em Editorial 12.12.2025

Em julho de 2024, o Alataj publicou um editorial que observava como a cena de festas de música eletrônica no Brasil vinha passando por um processo acelerado de profissionalização e concentração, com a entrada cada vez mais decisiva de grandes marcas e festivais internacionais ao longo dos últimos 10 anos. Naquele momento, a pergunta central não era se esse movimento era inevitável, mas quais tensões ele começava a produzir em um ecossistema historicamente construído por artistas, coletivos e iniciativas independentes.

Um ano e meio depois, o cenário não apenas se manteve, como ganhou novos contornos. A presença de estruturas corporativas mais complexas se tornou ainda mais visível, debates éticos passaram a atravessar festivais tradicionalmente associados à vanguarda cultural e a lógica de mercado passou a ocupar um espaço mais explícito nas decisões que moldam a cultura de pista. Este texto retoma aquela reflexão inicial, não como correção ou contraponto, mas como aprofundamento: uma tentativa de entender o que muda quando a cena de música eletrônica passa a estar cada vez mais próxima dos modelos de venture capital — e quais consequências estruturais esse deslocamento pode trazer para o ecossistema no médio e longo prazo.

Durante muito tempo, nossa cena se organizou a partir de artistas, DJs e entusiastas que encontraram nos eventos uma extensão direta de suas relações com a música, com a pista e com os contextos locais onde atuavam. Muitas dessas festas não surgiam como produtos formatados, mas como desdobramentos naturais de trajetórias culturais, cenas específicas e afinidades estéticas entre pessoas que tinham outras profissões e abraçavam a música eletrônica sim como um novo trabalho, mas muito como uma forma de expressar preferências e estilo de vida. Era um ecossistema instável e potencialmente precário, mas sustentado por vínculos simbólicos e por uma lógica de pertencimento.

Nos últimos anos, esse modelo passou por uma inflexão gradual, porém consistente. Grandes corporações e marcas internacionais passaram a ocupar um papel central na economia noturna brasileira, operando com estruturas de capital mais robustas, estratégias de expansão global e modelos de gestão próximos aos adotados por fundos de investimento e grupos de entretenimento.

Essa transformação não pode ser lida apenas como uma avaliação de avanço ou retrocesso, mas como uma mudança de paradigma. Se antes o risco era assumido majoritariamente por indivíduos ou coletivos orientados por afinidades culturais, hoje ele tende a ser calculado, diluído e incorporado como parte de estratégias de marca, muitas vezes cotadas em cifras completamente diferentes e com lucros visíveis somente no longo prazo. A curadoria, nesse contexto, também passa a funcionar menos como algo autoral e mais como ferramenta de controle de risco e previsibilidade. O que ajuda a formar artistas superstars, mas prejudica e muito o espaço para talentos que não se adequam ao padrão. 

O que se consolida é um modelo que dialoga diretamente com a lógica do venture capital: expansão acelerada, padronização de formatos testados, line-ups desenhados para maximizar previsibilidade e a criação de eventos âncora que concentram recursos, atenção e poder simbólico. O evento deixa de existir apenas como um território de experiência cultural e passa a funcionar como ativo dentro de um portfólio maior — onde identidade, curadoria e risco deixam de ser fins em si e passam a ser variáveis de uma equação financeira complexa. 

Esse processo não é exclusivo da música eletrônica. Festivais como Primavera Sound, Lollapalooza, Rock in Rio e CCXP operam hoje sob estruturas corporativas complexas, muitas vezes ligadas a conglomerados internacionais de entretenimento. No entanto, no caso da música eletrônica, essa transição entra em fricção com uma cultura historicamente associada à autonomia, à experimentação e a circuitos alternativos.

Um dos efeitos mais perceptíveis dessa financeirização está no impacto sobre cachês e dinâmicas de mercado. Grandes players conseguem operar projetando prejuízos significativos, entendidos como investimentos estratégicos de médio ou longo prazo. Para produtores independentes, essa lógica é, na maioria das vezes, inviável. O ambiente resultante tende a ser menos favorável à experimentação e à assunção de riscos criativos.

O caso recente do Sónar ajuda a evidenciar essa tensão. Um festival historicamente associado à vanguarda cultural e tecnológica passou a ser questionado publicamente a partir de suas conexões com a KKR, fundo de investimento envolvido em controvérsias éticas. As reações de artistas e do público não se limitaram a um debate moral, mas apontaram para um incômodo mais amplo sobre o tipo de estrutura que vem sustentando grandes eventos culturais no âmbito global da música eletrônica. 

Situações como essa indicam que a discussão deixou de ser apenas estética ou curatorial e passou a ser estrutural. Quem define o que é viável dentro desse modelo? Como o risco é distribuído? E quem mantém poder de decisão quando a cultura passa a ser organizada como ativo financeiro? Essa lógica também se reflete na experiência do público. Ingressos mais caros, formatos mais homogêneos e a percepção recorrente de que muitos eventos entregam experiências previsíveis. Em um contexto de aumento do custo de vida e inflação, a equação entre preço e experiência se torna cada vez mais sensível.

Outro efeito colateral é a compressão do espaço para diversidade. Quando a sustentabilidade de um evento depende de planilhas infladas e margens estreitas, a tendência é recorrer aos mesmos nomes, às mesmas fórmulas e às mesmas narrativas. A diversidade permanece no discurso, mas encontra dificuldades para se materializar estruturalmente.

Diante desse cenário, iniciativas independentes que não pretendem competir diretamente com grandes conglomerados precisam operar a partir de outras estratégias. A construção de comunidade, a confiança na curadoria e o vínculo simbólico com o público passam a funcionar como ativos centrais. Se você tem uma festa, preocupe-se em estabelecer uma conexão genuína com o seu público, pois dessa forma ele vai querer ir na sua festa pelo o que ela é. Sem isso, há uma ultra dependência de headliners e aí você vai precisar disputar cachês com players que tem muito mais dinheiro para oferecer. 

O desafio que se impõe à cena eletrônica contemporânea talvez não seja escolher entre crescimento ou autenticidade, mas compreender como equilibrar escala e significado. Entre capital e cultura. Entre eficiência e risco. Sem esse ajuste, o crescimento pode se sustentar economicamente, mas perder densidade cultural. E isso é um risco imenso para o futuro. 

A música eletrônica sempre se estruturou em torno de encontros, rupturas e formas alternativas de organização. Se essas camadas se esvaziam, o crescimento passa a ser medido e desejado por métricas de pessoas e corporações que não tem o menor interesse genuíno na cultura em si. Há 20 anos nos perguntávamos sobre o potencial da música eletrônica se tornar mainstream, hoje os questionamentos estão sob quais condições isso está acontecendo e, principalmente, quais as consequências disso.

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