Você já experimentou praticar esportes sem um aquecimento prévio? Ir até a academia, e já começar direto com um leg press 90º, ou agachamento com peso considerável, sem antes dar aquela aquecida básica para acostumar o corpo? Bom, se você já fez algo do tipo, possivelmente já pode ter sofrido alguma distensão muscular, acrescido de dores nada agradáveis que poderiam ter sido evitadas com um alongamento antes da prática. O aquecimento deve ser feito antes de qualquer prática esportiva e serve para elevar a temperatura do corpo, a frequência cardíaca, a respiração e a pressão arterial, além de provocar uma vasodilatação que vai levar mais oxigênio para os músculos e promover um metabolismo aeróbico (que consome oxigênio).
Se para os exercícios físicos o aquecimento é uma etapa indispensável, dentro do universo das festas, a mesma prática também se faz essencial. Em inglês, aquecimento é traduzido como “warm up”, um termo que já é conhecido por muitos, porém nem todos dão o devido valor a este crucial momento da noite.
Imagine você chegando em uma festa logo em seu start inicial, por volta das 23h. Os bartenders ainda estão ajustando os últimos detalhes do bar, a cenografia concluindo suas montagens finais para que tudo esteja perfeito, o corre-corre dos promoters para deixar a festa impecável para o público, e a pista um tanto vazia, recebendo seus primeiros convidados. Você acaba de entrar no local, ainda se situando, localizando alguns conhecidos e se direcionando para pegar seu primeiro drink da noite. E ao fundo, um som arrebatador e brutal, próximo aos 140 BPM. Bom, o resultado desse clima é muito próximo àquela distensão muscular que aconteceria em uma academia, porém eu diria que seria perto de uma distensão mental. Um efeito catártico, que perturba os sentidos iniciais e o pequeno público que se concentra no local passa a se sentir até mesmo desorientado.
Esse cenário, embora pareça ser aterrorizante, é o que pode acontecer quando não atentamos ao crucial papel do warm up, para o desenrolar da noite. O DJ responsável por executar o warm up é também, diretamente responsável por dar as boas vindas da festa, escrever as primeiras linhas de uma história que pode ser memorável, se iniciada de forma coerente e bem alinhada. O warm-up é o momento onde a contextualização de uma noite acontece. A introdução de uma narrativa, os primeiros capítulos de uma série que está ali para prender os olhares do espectador, mas não entregar o segredo do desfecho de uma só vez.
+++ Relembre: Aninha escolhe seus 5 DJs preferidos para o Warm Up
Engana-se também quem pensa que durante o warm-up só se toca música lenta, chata, para ficar apenas de copinho na mão, sem dançar direito. E é aí que entra o verdadeiro olhar de um bom DJ. Um bom warm up precisa ter emoção, contar uma história coesa e o mais importante, fazer dançar, mesmo que de leve, mesmo que suave. Aquela velha máxima de tocar a música certa na hora certa, é extremamente crucial para esse momento. Controlar a ansiedade, conhecer as suas músicas e entender que a noite só está começando é fundamental, para entregar a pista no ponto certo de animação para o próximo DJ.
O fato é que todo mundo quer tocar no horário de pico. Ninguém quer abrir uma festa, e correr o risco de não ter um pistão gritando no seu front. É por isso também que o momento do warm up, diz muito sobre humildade e respeito com o coletivo, e não somente uma prática individual para inflar o ego. Por isso, em geral, é mais difícil ser o primeiro DJ da noite, do que o principal. Eli Iwasa, uma das grandes estrelas do nosso cenário nacional, DJ com mais de 20 anos de carreira, e um dos pilares fundamentais por trás do Caos, Club 88 e Galeria 1212, reforça o conceito do papel do warm up, sobretudo nas pistas de seus clubes:
“Pouca gente dá o valor devido, mas o momento mais importante na evolução de uma noite é o warm up. Sempre falo que é fácil tocar no peaktime, com a energia lá em cima. O grande desafio mesmo é criar a atmosfera certa desde o comecinho, em que público se sinta acolhido e à vontade na pista, ao mesmo tempo em que dá espaço para os demais DJs mostrarem seu trabalho e construírem seus sets com liberdade.
Para mim, o grande teste para um DJ é o warm up. Perceber o feeling de tocar a música certa, nem demais, nem de menos, de ter a confiança para conquistar a pista sem pressa, e contar com um repertório mais amplo, e que vá além de músicas enérgicas ou Hits. Quantas vezes ouvi DJs reclamarem por tocarem cedo, talvez pela vontade de tocar num horário melhor; pois saiba, que todos os meus DJs favoritos são justamente aqueles que amam tocar longas horas e pegar a pista do club ainda vazio. Quem não sabe fazer warm up ou ‘queima a largada’ dificilmente volta para a cabine dos meus clubes, isso é fato. E quem me fala que ama fazer isso, ganha meu respeito na hora pq diz muito sobre o artista que é. Não importa o horário e sim, importa tocar a música certa na hora certa, compartilhar e curtir cada momento, e entender a missão do DJ nessa construção coletiva do que a noite perfeita deve ser.”
– Eli Iwasa
A verdade é que um bom DJ sabe lidar com os mais diversos momentos da pista. E o papel do warm up, não está ali para desvalorizar a sua bagagem como DJ, já que ensina o discotecário a ter sensibilidade para comandar os diversos momentos de uma história. Não importa se você tem mais ou menos tempo de carreira, saber conduzir um bom warm up é uma tarefa desafiadora.
Assim como Eli Iwasa, Dani Souto – ou mais conhecido como DJChãnceDaSilva -, é um discotecário veterano de mais de duas décadas de pista, e peça chave por trás das festas Discoteca Odara (Curitiba) e O/NDA (Rio de Janeiro). E se tem um horário que o Dani fica de olho, especialmente em suas festas, é o slot inicial. A exigência de um cuidado e uma sensibilidade para condução do warm up de seus eventos, é algo que ele valoriza e muito.
“Vamo lá meu povo… Na minha opinião o primeiro slot sempre vai ser o mais importante dentro das propostas as quais entrego. As pessoas vão pra uma festa com esperanças, com boas expectativas, sonhando com paixão, com gargalhadas e juras de amor entre amigos, com o imagético projetando algo prazeroso, e ser “salvo” do mundo lá fora, buscando sentir-se seguro. Tu chega numa festa dá aquela respirada funda, fecha os olhos e imagina todas essas expectativas. Quer paquerar, sentir o clima e a trilha sonora tem que ser aquele pano de fundo daquele filme inesquecível que você imaginou antes de estar ali.
A música é a única arte que fala por si só, e se o disc jockey acaba com teus sonhos logo de cara, porra!! O que vai ser da viagem do sujeito? Cada festa é cinema, tem drama, tem tragédia, tem romance, tem principalmente alegria, ao som de caixa, bumbo, synth e transa….tem começo, meio e fim, e quebrar com esse roteiro é muita falta de solidariedade e gentileza com a boa vontade alheia. No inicio então, é causar na maioria das vezes um dano irreversível pro rolé. O bom primeiro slot, tem um disc jockey que tem q ser ele porém, comprometido com essa solidariedade, em salvar a vida da galera e mostrar a porta de uma noite foda pra fazer as pessoas se lembrarem no seu leito de morte: ‘Caralho zoei a pampa aquele dia!’“.
– DJChãnceDaSilva
Outro engano comum em meio ao mundo dos DJs, é acreditar na máxima que o tipo de som que você toca, não permite que você faça warm-up. Retorno a afirmação aqui, warm-up não é sinônimo de música chata. É possível fazer warm-up com a grande maioria das vertentes musicais, pois nem só de lounge é conduzido o slot inicial. “Ah mas eu toco Techno, não tem como fazer um warm-up deste estilo”. Ledo engano.
Apesar do Techno, e suas vertentes, ser um estilo comumente mais enérgico, denso e acelerado, é possível montar uma estrutura de set que atenda aos requisitos iniciais de uma noite. Saber construir uma história magnética que prenda a atenção da pista, e convide o público a entrar no universo imersivo que se pretende apresentar, é o segredo para conduzir um warm-up de Techno com sucesso. Dis:order é um artista que levanta a bandeira do Techno com maestria, em meio à nova geração do estilo no cenário nacional. Residente da label party curitibana 4×4, o DJ e produtor possui uma assinatura feroz, brutal e perfeitamente inspiradora para os amantes do estilo. Porém, engana-se quem acha que a assinatura de Dis:order, jamais funcionaria para um warm-up de pista.
O artista comandou, e muito bem, a abertura do palco TimeTech da Tribaltech deste ano, entregando a cabine para ninguém menos que Enrico Sangiuliano. “Foi uma sensação alucinante, surreal. Eu sempre imaginava como deveria ser tocar num rolê desse tamanho e ficava já planejando tudo na minha cabeça, mas quando cheguei lá e vi o tamanho da estrutura, deu um frio na barriga e o plano já não parecia mais tão certo, mas logo que comecei já voltei a sentir que estava tudo sob controle. Lá de cima não dava pra ver direito quem era quem na pista e eu toquei muito focado, mas volte e meia reconhecia alguma silhueta amiga e eu me sentia mais tranquilo. No final do set quando as luzes clarearam e eu vi aquele mar de gente aplaudindo e gritando e do meu lado o Enrico Sangiuliano começando o set dele foi um sentimento único. Só de lembrar ainda me dá alegria.”
Quem acompanhou o set do artista, viu que Dis:order conduziu o aquecimento de forma reverente e à altura do poder que a Timetech proporcionou ao longo da noite. “Fazer o warm desse rolê foi legal porque consegui levar um lado da minha pesquisa que geralmente não toco em outras gigs, sons com mais foco em groove e melodias; mais constantes, retos, com menos viradas. Nas transições eu preferi fazer mixagens mais lentas e com camadas, diferente de quando toco um som mais energético e acelerado que prefiro mixar com cortes rápidos para manter a intensidade. Sempre exagero no número de tracks que levo, mas no caso da Tribaltech eu levei tudo que julguei que pudesse tocar, mesmo que a chance fosse mínima. Eu tinha uma ideia já estabelecida do set por onde queria começar e onde planejava terminar. Tudo no intervalo disso foi desenrolando de acordo com a resposta da pista e o que eu projetava fazer em seguida.” explica o artista.
+++ Relembre: Alataj Lab 085 | Dis:order
“Eu acho que em primeiro lugar é sempre respeitar os outros djs do line Up. Procurar saber o tipo de som que tem tocado, como geralmente começam e desenvolvem os sets. E isso eu penso não só para warm, mas qualquer horário que você for tocar. No caso do Warm Up, é especialmente importante ter noção do que vem depois, para que a pista se desenvolva sem ninguém atropelar ninguém. O segundo ponto que eu julgo importante é saber seu lugar. Se você foi chamado pra fazer o Warm Up, sua função é receber as pessoas e preparar a pista para a festa. Ter a noção de que as pessoas não esperam chegar no rolê e o som já estar super pesado.
O Techno é um gênero intenso e energético, é fácil se deixar levar e acabar atropelando o som. Pensar numa progressão, talvez como uma história, tendo início meio e fim. Ouvir sets de djs mais experientes sempre me ajudou a entender essa parte de construção. Artistas como Vincent Neumann, Answer Code Request, Norman Nodge, Surgeon e outros sempre fizeram sets com construções impecáveis que parecem te guiar através do som de forma natural e progressiva. Essas são as características que eu acredito que façam um Warm Up especial e bem construído.”
– Dis:order
Por fim, é sempre bom frisar que um bom warm-up é como uma boa preliminar, que antecede o momento orgástico do prazer. Para uma construção cuidadosa, é necessário que seja envolvente, e para que seja envolvente, é preciso que o DJ possua acima de tudo, sensibilidade.
A música conecta.