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A música conecta

Editorial | Arabic Disco, RAI, Habibi House: A influência fascinante do Disco do Oriente Médio

Por Ágatha Prado em Editorial 08.06.2021

Entre alaúdes, nays, darbukas e rebabas, um groove peculiar e curiosamente instigante emerge da região compreendida entre o leste do Mediterrâneo, golfo pérsico e o norte da África.Tão rica quanto sua história milenar, a cultura musical do Oriente Médio é um tesouro pouco conhecido pelo público ocidental, porém sua influência e seu legado permanece latente pelas mãos dos real diggers e de escavadores contemporâneos que buscam, nessas raízes, a propagação desta herança cultural que é tão distinta quanto fascinante.

Hoje, mergulharemos no riquíssimo universo do Arabic Disco, suas vertentes, subgêneros regionais, raízes e evoluções, que atualmente são resgatados, reverenciados e recombinados às estéticas contemporâneas de pista, seja do próprio Nu Disco, ou até mesmo do House e Indie Dance. 

O Oriente Médio é uma região que compreende 15 países – Arábia Saudita, Bahrain, Catar, Emirados Árabes, Iêmen, Irã, Iraque, Palestina , Israel, Jordânia, Kuwait, Líbano, Omã, Síria e Turquia – e o Norte da África, outros seis países – Argélia, Egito, Sudão, Marrocos, Líbia e Tunísia -, cada qual com sua particularidade cultural, sua identidade, e sua história singular, mas compartilhando de uma trajetória musical de travessia milenar. Isso mesmo, há quem diga que uma das músicas mais antigas do mundo foi composta na região onde hoje compreende a Síria.

Pois bem, conectado a essa trajetória a música árabe da chamada “época de ouro” é coberta de melodias vibrantes que transbordam poesia e sentimentalismo, protagonizada pelo magnetismo de instrumentos típicos da cultura como qanun, mijwiz, rebabas, zurnas, violinos e darbukas, elementos esses que foram incorporados ao fenômeno da Disco Music, que invadiu a região no final da década de 70.

https://youtu.be/0yMfOWzrVdU

Absorvendo a essência da discoteca, mas preservando a percussividade e os aspectos melódicos intensos da região, a fusão das atmosferas resultou num tipo de groove completamente único e contagiante. Sobretudo nas regiões do Cairo e Beirute, o Arabic Disco se consolidou através da experimentação proto-eletrônica,  de sintetizadores com floreios eletrônicos complexos, funk hard-disco e melodias inovadoras baseadas em formas tradicionais.  Distinta de todas as subvertentes da Disco Music que se alastrava pelo mundo, a estética do Arabic Disco veio do impulso de uma geração que estava em busca de uma nova identidade, resultando em uma alquimia de tudo o que irradiava das discotecas europeias e americanas, aprofundada num diálogo histórico particular.

Um dos grandes fatores que impulsionou a propagação do Arabic Disco, bem como de artistas que apostavam em uma estética até então diferente, foi o surgimento da fita cassete. Antes deste formato de mídia física se popularizar, os artistas precisavam assinar com grandes gravadoras para que sua música fosse ouvida no rádio e no vinil, e essas gravadoras tinham um certo gosto e visão musical que dificilmente davam espaço para novos estilos. Mesmo com certa dificuldade de disseminação além das próprias fronteiras da região, nomes como  Hamid Al Shaeri, Farid Al-Atrash, Fairouz, Ziad Rahbani, Ahmed Fakroun são pilares dos primeiros passos da Disco Music do Oriente Médio. O pioneirismo de Fakroun, por exemplo, conferiu ao artista originário da Líbia, o título de “pai da música árabe moderna”, com trabalhos que quebraram os paradigmas estéticos através de encontros instrumentais futuristas e influências do Funk e Europop, e que seguem em constante reinvenção nos dias de hoje. 

Na edição de 2019 do Dekmantel, Ahmed Fakroun estrelou nas pistas do festival em Amsterdam com um live concert que deixou o público em êxtase com seu psicodelismo, sua energia, e seu groove inconfundível.

Paralelo ao Arabic Disco, mas não muito distante, o Raï – gênero popular da Argélia -, também ganhava sua reincidência e transformação nos finais da década de 70 e começo dos 80. Primariamente originário da década de 20, a vertente musical que abordava questões políticas e sociais ainda nos seus primeiros passos, ganhou uma combustão diferenciada e pós-moderna 50 anos depois. 

Misturando instrumentos tradicionais com sintetizadores e adaptando as antigas melodias com a modernidade, o primeiro festival de Raïs foi celebrado em Oran em 1985,  conquistando o entusiasmo da juventude argelina. Mesmo após o governo da Argélia reconhecer oficialmente o Raï como música nacional, muitos artistas do gênero foram perseguidos e até mesmo assassinados, por alguns grupos radicais islâmicos, como o caso de Cheb Hasni.

Com estética que traz uma lembrança do Bubblegum africano, e até mesmo com as verves do Kwaito, pode-se dizer que o Raï moderno também refletia as nuances do proto-House, porém logicamente com sua estrutura e interpretação ultra particular sobre a cultura urbana de sua região. 

https://youtu.be/QxvwewWipD4

Um dos responsáveis por tornar o Raï moderno, um estilo mundialmente conhecido foi Cheb Khaled, ou mais conhecido como simplesmente Khaled. No Brasil em especial, Khaled foi responsável por um dos hits mais tocados nas rádios da virada do milênio, e arrisco dizer que certamente grande parte do nosso país tenha dançado ao som de El Arbi

Está lembrado? Até no Domingão do Faustão, Khaled se apresentou! Aliás, se você estava realmente antenado nas rádios brasileiras entre 1999 e 2000, certamente deve ter adquirido a compilação Arabian Nights realizada pela Som Livre, e que vinha recheada de clássicos do Rai e até mesmo do Electro House que já estava em alta no Oriente Médio.

 O resgate contemporâneo e a roupagem para as pistas atuais

Um tesouro que merece ser revisitado e propagado, a cultural musical árabe vem ganhando presença nas pistas contemporâneas, sobretudo nos dancefloors e rádios do velho continente. Os grooves encantadores dos gêneros que vão do Disco ao Rai têm sido redescobertos não somente por seletores de raridades, mas também por artistas que apostam na disseminação de suas culturas, integrando as raízes de suas sonoridades em suas identidades musicais. 

A dupla nativa de Bahrain e hoje radicada em Londres, Dar Disku, traz um caldeirão de referências musicais de seu país de origem para sua assinatura dentro da Disco Music. Formado por Mazen AlMaskati e Vish Mhatre em 2018, o projeto que também atua como gravadora, se tornou uma referência quando o assunto são pérolas perdidas da musicalidade do Oriente Médio. 

Crescer no Oriente Médio não apenas permite que você absorva toda a música e arte que existe, mas também participe de sua presença viva e vibrante. Festas de rua, casamentos, festivais e celebrações são lugares onde a música ganha vida, evocando uma eletricidade que balança e sacode a todos. Há uma característica hipnótica nessas músicas, muitas vezes guiando pessoas em floreio de tambores ensurdecedores. É tão evocativo que quase posso ouvir as pessoas batendo palmas, assobiando e batendo os pés enquanto o descrevo. Acho que remonta à música folclórica tradicional criada por escavadores de pérolas e tribos viajantes. É esse tipo de energia que gostamos de trazer para a nossa música, especialmente os componentes percussivos, combinados com Pop egípcio contemporâneo, Funk libanês e música Rai. Muito do nosso trabalho de sintetizador visa emular os descendentes dessas eras junto com os derivados mais distorcidos e modulados do Electro Shaabi”, comenta a dupla. 

A Dar Disku Records, além de colecionar um acervo de edits de faixas da década de 70 do Norte da África e Oriente Médio – assinado por nomes como Moving Still, Tjade e Aaron Maple – e também hosteia um programa na britânica Noods Rádio, chamado Radio Laziz, onde contam com convidados que compartilham um pouco das raízes musicais árabes em seus sets voltados para Funk, Disco e Hi-NRG.

Ao mesmo tempo, tem sido uma jornada de autodescoberta nos ajudando a entrar em contato com nossas raízes e nos conectar com a comunidade de pessoas, cada uma com suas próprias narrativas e cultura. A música sempre foi uma força unificadora, mas é particularmente potente quando encontramos um esforço da comunidade para encontrar a arte de eras passadas, compartilhar música uns com os outros e, de certa forma, montar um quebra-cabeça de histórias de como todos nós conseguimos para onde estamos hoje, como comunidades e indivíduos” completam.

Às beiras do Mar Vermelho, diretamente de Jeedah, na Arábia Saudita, Jamal Sul, mais conhecido como Moving Still, também vem representando a bandeira da musicalidade árabe, através das faces contemporâneas da música eletrônica. Hoje radicado em Dublin, ele é um dos nomes quentes do cenário irlandês, sobretudo por sua assinatura influenciada por pérolas da musicalidade do Sudeste da Ásia e Norte da África, conquistando os catálogos da Jive Hive Records, Lobster Theremin, The Nail Shop e Dar Disku.

Muitas vezes acabo me baseando pelo Pop dos anos 80 influenciado pelo árabe. Eu acho que é divertido virar uma música que pretendia ser um slow jam e reimaginá-la como um HINRG disco banger(…) Quando se trata de original mix, eu meio que gosto de misturar e combinar gêneros diferentes dentro da área SWANA / MENA – desde os claps de Dabke até a percussão do saudita Mizmar ou até mesmo um tradicional Saidi egípcio da velha guarda. Eu geralmente procuro por algo tão pequeno quanto um loop de 4 compassos, seja um vocal ou bateria, ou até mesmo um lead. Depois de colocar minhas mãos nele, passarei algum tempo equalizando, cortando e transpondo, dependendo do que for certo para a faixa. O resto vem organicamente, já que nunca sei realmente que direção uma música vai tomar”, explica Jamal sobre como incorpora as referências em suas produções.

Moving Still também é anfitrião da rádio palestina Al Hara e na Dublin Digital Radio, onde ele se delicia com suas descobertas dentro dos subgêneros oitentistas.

Para mim é importante manter vivos os tesouros da minha cultura e posso mostrar isso fazendo edições ou tocando-as no rádio. Sempre foi um sonho meu fazer um show no café da manhã para ter a oportunidade de compartilhar músicas que eu não necessariamente tocaria em um club. É bom tocar coisas que eu ouviria no dia a dia e Sabah Il Noor (meu programa da Radio Al Hara) é uma forma de mesclar todas as minhas coisas favoritas em um programa”, completa. 

Não é necessário procurar tão a fundo para encontrar outros bons nomes do cenário atual que seguem representando a riqueza musical do Arabic Disco, Egyptian Pop ou Rai. Os real diggers Habib Funk e Disco Arabesco trazem seleções que são verdadeiros registros históricos das subvertentes árabes. A dupla Acid Arab, mesmo sendo francesa, traz os ilustres elementos da cultura do Oriente Médio em suas produções, sendo um dos nomes mais influentes do estilo no cenário atual.

Ainda, seguindo num estilo denominado Habib House, o DJ e produtor egípcio Abu Ashley formatou uma assinatura peculiar através de uma síntese de batidas melódicas sombrias com elementos árabes clássicos. Soando como uma possível revolta sub-cultural da juventude árabe moderna, o Habibi House é uma mistura do tradicionalismo com as batidas extravagantes do House, resultando num groove de frescor revigorante. 

Poderíamos ficar horas e mais horas traçando o caminho fascinante que a cultura musical do Oriente Médio e do Norte da África tem percorrido em suas origens e em sua contemporaneidade. Um magnetismo que segue se reinventando e expandindo através de seus descendentes e admiradores do mundo inteiro. 

A música conecta.

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