Skip to content
A música conecta

Preto em Branco: racismo estrutural e o embranquecimento da House Music

Por Duda Rezende em Editorial 23.06.2022

Meu primeiro contato com a música eletrônica foi em 99/00, através das rádios e TVs do Brasil. Quando comecei a ir em festas, era impossível olhar ao redor e não contar nos dedos quantas pessoas pretas estavam curtindo e, principalmente, tocando. Na época em que dei início à minha carreira como DJ, em 2007, não conhecia e muito menos tinha contato com outros DJs pretos. Minha mente bugava várias vezes. Ficava pensando como poderia curtir tanto a House Music e ao mesmo tempo não ter nenhuma representação? 

A resposta veio um tempo depois em uma fala de Frankie Hutchinson, co-fundadora do coletivo Discwoman: “Mesmo as pessoas que fomentam essa cultura preferem culpar aqueles que são excluídos do que realmente ter a consciencia de como é foda ter um festival de House e Techno com mais de 100 artistas e com apenas 5 ou nenhum artista preto.”

Quando a House começou, no início da década de 80, foi difícil sacar o que o movimento se tornaria e até onde iria. Surgida na cena underground, feito por e para pessoas pretas e LGBTQIA+ em Chicago, essa mistura de Disco, Soul e muitas outras referências sonoras, foi criada por DJs e produtores pretos, dando voz e espaço para que grupos minoritários se expressassem. Dessa forma, todos os artistas considerados fundamentais para o surgimento da House são pretos. 

Porém, ao ecoar pelo mundo, a House acabou intermediada pelos brancos de classes sociais mais altas, descaracterizando toda a cultura e dando a impressão para o público de que foram eles os criadores do gênero. É lindo ver a evolução do gênero ao assistir o documentário Pump Up The Volume, produzido pelo Channel 4 da BBC. Mas um detalhe passa despercebido: a House passa de música de gueto para o mainstream a partir do momento que DJs brancos levam a música para a Europa. Parece familiar? 

Não é novidade que o processo de apropriação cultural (eu prefiro o termo saque) acontece há décadas. Quase todos os artistas brancos culturalmente relevantes dos últimos 50 anos “se inspiraram”, para ser educado, em artistas pretos. Essa realidade é bastante familiar e dolorosa, exatamente porque sou DJ e produtor, com inúmeros singles lançados.

Kaytranada fez história ao ganhar o prêmio de Melhor Álbum Dance/Eletrônico no 63º Grammy . Sua conquista foi icônica porque ele foi o primeiro homem preto e gay a ganhar este prêmio. Essa vitória histórica também destacou o quão distante a música eletrônica se tornou de suas origens minoritárias pelo mundo.

Kaytranada, em entrevista para a revista Papermag com o comediante Jaboukie, fez o seguinte comentário sobre a inspiração para o seu segundo álbum Bubba:Quando eu estava fazendo meu último álbum, eu estava realmente inspirado pelos primeiros DJs de House, porque agora quando os DJs de House realmente surgem, são realmente aqueles DJs brancos e as pessoas não pensam em DJs negros no sentido de tocar House music.”

Acredito que a representação artística preta na música eletrônica é prejudicada por questões existentes no movimento: a capacidade do pertencimento não ser questionado nestes espaços culturais, somado a outros fatores como o racismo estrutural, a indústria cultural dominante e a apropriação (eu já falei que prefiro saque?), que monetiza produções que originalmente pertencem a grupos minoritários e que continuam esquecidos ou marginalizados. A iniciativa de oferecer protagonismo para a população preta e outros grupos marginalizados socialmente no cenário da música eletrônica, surge então como um resgate necessário para a reparação histórica da House Music.

Dúvida? Basta olhar para a lista do Top 100 da DJ Mag e ver quantos DJs pretos estão na lista. Spoiler: são menos de 10 e o Kerri Chandler, pasmem, não está lá. Kaytranada, ganhador do Grammy de melhor álbum de música eletrônica, também não. É por causa desse tipo de disparidade que os coletivos de música eletrônica preta estão surgindo com força em diversos lugares do mundo. Um bom exemplo é o Discwoman, citado ali no começo do artigo. O coletivo atua não só em favor de artistas negros, mas também de outras minorias.

E não é só fora do Brasil que este movimento está ganhando corpo. Aqui, já pipocam coletivos como os incríveis Escola de Mistérios do Rio de Janeiro, o Ayô de Belo Horizonte, ou o Turmalina do Rio Grande do Sul. Em um artigo que eu li recentemente sobre esses coletivos, uma fala da DJ Quimera (nome artístico de Júlia da Costa) me chamou a atenção: “acho que essa é a diferença que queremos trazer na cena, construir outros tipos de festa e de espaço de convivência onde a gente se sinta protegido, seguro e compartilhando essa energia boa que é estar dançando junto. É importante para nossa saúde mental e física estar com pessoas que compartilham esse sentimento coletivo.”


Ainda assim, precisamos entender por que a comunidade preta não se identifica com a House Music no Brasil. Eu arrisco dizer que a falta de acesso à informação e o racismo estrutural contribuem para que a cena nacional continue como está. Para se ter uma ideia de como isso é enraizado, eu mesmo e outros amigos descobrimos que house era som de preto com amigos brancos. Inexplicavelmente, amigos que curtem Soul, Funk, Disco e outros gêneros não ouvem House e Techno por acharem que é “som de playboy”.

A realidade é que o preto dentro da música eletrônica no Brasil está mal representado por diversos motivos, e o caminho para a representação adequada está só começando. É necessário fugir do estereótipo: perdi a conta de quantas vezes eu fui tocar em rolês de house e vieram me perguntar se eu ia tocar rap ou funk, isso quando não duvidaram de que realmente era o DJ da festa. House se define pelo acrônimo P.L.U.R.: traduzindo, Paz, Amor, União e Respeito. Só resgataremos de verdade esses valores quando tornarmos (de novo) a House tão inclusiva quanto no seu início.

A música conecta.

A MÚSICA CONECTA 2012 2024