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A música conecta

Editorial | Um guia para começar a entender o Psy Trance

Por Mohamad Hajar Neto em Editorial 17.08.2021

O Brasil tem uma relação muito especial e peculiar com o Psy Trance. A cena eletrônica nacional de hoje deve muito ao estilo, bem como a cena mundial do estilo tem, em solo brasileiro, um dos seus principais pilares atualmente. Mesmo assim boa parte dos adoradores de música eletrônica do nosso país pouco conhecem sobre o Trance psicodélico, que vai muito além de suas características musicais e representa hoje uma verdadeira cultura à parte, com filosofias e práticas diferentes das vividas nos clubs e festivais de outros estilos.

Primeiro, uma viagem no tempo

Mas para entender o que é o Psy Trance, é preciso antes entender de onde ele veio. Nossa história começa em Goa, região indiana que é um verdadeiro caldeirão cultural, tendo sido disputada por muçulmanos e hindus por séculos, passando por períodos de colonização portuguesa e inglesa, até ser finalmente anexada à nação que hoje conhecemos como Índia nos anos 1960. Nessa época a região recebeu uma onda de hippies que vinham dos EUA e da Europa, em busca da atmosfera espiritualizada e das belas praias.

Essa foi a fórmula para a criação das primeiras festas de Goa no final dos anos 1960, que ainda não tinham conexão com a música eletrônica. Nessas festas os DJs tocavam bandas como Grateful Dead, Pink Floyd, The Doors, The Eagles. Foi apenas nos anos 80 que DJs como Goa Gil, Fred Disko e Ray Castle começaram a promover a música de Goa com influência da música eletrônica europeia. Nascia ali o Goa Trance, filho do Rock psicodélico com o Acid House, concebido nas terras sagradas da Índia. Sua musicalidade era peculiar, pois misturava o transcendentalismo hindu, com a psicodelia hippie, com o apreço pela tecnologia da cultura raver, explicitada pelo uso da clássica TB-303. Embora atualmente o Goa Trance seja considerado uma vertente do seu herdeiro direto Psy Trance, seus valores são praticados e multiplicados até hoje.

O Goa Trance original experimentou um verdadeiro boom nos anos 90. O público nas festas aumentou visivelmente, cada vez mais pessoas iam para Goa, especialmente de Israel e do Japão. Com o aumento do número de turistas que chegavam para dançar, consumir drogas e viver uma vida livre, todo o sentimento underground começou a desaparecer, e a própria música começou a se tornar cada vez mais popular. Em 1993 veio ao mundo a compilação que é considerada um dos grandes marcos do estilo: Project II Trance, da Dragonfly Records.

Conforme a década de 1990 avançou, o Goa Trance viajou o mundo, fundando cenas locais em países da Europa, na Austrália e aqui no Brasil, entrando pelas belas praias de Trancoso e rapidamente chegando a São Paulo, onde nasceu a XXXperience, um dos principais festivais do país que por muito tempo foi dedicado exclusivamente a essa cultura. Nessa época despontaram grandes nomes que cimentaram a base da cena Psy que existe até hoje, como Simon Postford, Dickster, Laughing Buddha e James Monro, esse último tendo sido não só DJ mas também fundador da Flying Rhino, uma das mais importantes gravadoras desse momento primordial.

Uma curiosidade: devido ao calor e aos palcos comumente expostos ao sol, antes do CD os DJs de Goa Trance utilizavam fitas para tocar, já que discos de vinil não resistiam às temperaturas elevadas. Goa Gil as utiliza até hoje, em long sets que podem chegar a mais de 24 horas de duração!

Na virada do século o Goa Trance começou a dar espaço para sua versão mais adaptada ao futuro digital que estava chegando: o Psy Trance. Com menos melodias, graves mais curtos e maior ênfase nos elementos psicodélicos, o novo estilo consolidou-se no começo do milênio como uma cena global independente, sendo inicialmente dividido em três vertentes: Full On, Progressive e Dark. Atualmente o Dark já se transmutou em Hitech e Forest, e o Progressive também possui suas sub-designações. O próprio Full On há quem divida em Full On Morning e Full On Night, mas mais importante do que tentar entender as nuances que segmentam o estilo é compreender as características e valores que o mantém unido.

Você pratica o PLUR?

PLUR é a sigla para Peace (paz), Love (amor), Union (união) e Respect (respeito), é uma ideologia herdeira dos ideais hippies (paz e amor) e da cultura Hip Hop (respeito), que popularizou-se entre os ravers dos anos 90 e hoje está bem associada à cena Psy Trance. É um tipo de “código de ética” dos frequentadores que determina o seguinte:

Paz – Evite conflitos e emoções negativas

Amor – Pratique atos de bondade e compartilhe bons sentimentos com os outros

União – Aceite a todos em nossa sociedade, independente às diferenças pessoais

Respeito – Mostre sensibilidade pelos sentimentos alheios, aceite-os com tolerância e sem julgamentos

É claro que é utópico pensar que 100% dos frequentadores vão seguir ou até mesmo conhecer tais filosofias, mas é fato que elas estão entranhadas o suficiente para que haja algo de muito especial nas experiências que podem ser vividas em um festival de Psy Trance. Inclusive, um festival de longa duração provavelmente vai ser muito mais raiz nesse sentido do que uma festa de algumas horas, devido à vivência em comunidade proporcionada pelo fato de que todos estão temporariamente “morando” juntos dentro do evento, usando as mesmas estruturas e cuidando uns dos outros.

Esse senso comunitário também fortalece a essência artística para além da música, expressada de diversas maneiras, como em intervenções cênicas, artes plásticas, produtos artesanais. As decorações são realmente impressionantes e construídas de tal forma que, aliadas à música e a espetáculos visuais de luzes e projeções, fazem com que a experiência seja altamente imersiva e marcante. Entre os principais festivais do mundo que promovem esse estilo de vida podemos destacar o Boom Festival, em Portugal, o VooV Experience, na Holanda, e o Ozora Festival, na Hungria.

No Brasil, sem dúvidas, o Universo Parallelo é a grande referência há mais de duas décadas, mas podemos citar o Adhana Festival, o Mundo de Oz, e o Pulsar como alguns dos eventos que estão expandindo o alcance e elevando o nível do que é feito em nosso país. Cada um possui suas peculiaridades, alguma vertente que privilegia mais, alguns serviços e intervenções específicas, mas em essência todos promovem a conexão com a natureza e com nosso interior a partir da arte psicodélica, especialmente da música eletrônica psicodélica.

Gostei, por onde começo a ouvir?

Os eventos ainda não voltaram, mas se você ficou interessado(a) em curtir uma experiência no Psy Trance, baseado no que você já gosta é possível achar as vertentes que vão te agradar mais!

Gosto de moer na pista!

Se você é do dale mesmo e quer dançar como se não houvesse amanhã, o Full On é a sua pedida. O BPM fica ali na casa dos 145, as músicas são intensas, com synths altamente hipnotizantes e build ups de tirar o fôlego. Dele vieram lendas como Tristan, Pixel e o brasileiro Burn in Noise.

Sou mainstream, com orgulho

Toda cena tem seu lado comercial e isso está longe de ser um problema. Se você é da linha do EDM provavelmente já conhece o Vini Vici; se prefere uma pegada mais nostálgica GMS é o nome; se procura um produto nacional com certeza vai gostar do Vegas. Se o seu saudosismo é o do Rock, procure clássicos como 1200 Micrograms, Raja Ram e Skazi.

Prefiro som cadenciado

Se você gosta de sets progressivos, transições sutis, sub-graves envolventes e BPMs mais lentos, o Progressive Psy Trance é a sua pedida. Mas cuidado: lento, aqui nesse contexto, ainda está na casa das 135 a 140 batidas por minuto! Os mais clássicos possuem bastante semelhança com o Full On, como Ace Ventura e Zen Mechanics, enquanto outros que já possuem um pé no Techno, a exemplo de Loud, Captain Hook e Freedom Fighters, se encaixam na próxima vertente.

Eu curto Techno, tem algo parecido?

Existe um estilo de Psy Trance mais minimalista, embora esse termo pouco seja utilizado. A vertente também é conhecida como Prog Dark ou Zenonesque, uma referência à Zenon Records, gravadora que fundou o movimento há duas décadas. A musicalidade soa como uma fusão entre o Psy Trance e o Techno, misturando elementos psicodélicos a atmosferas industriais. Os principais expoentes são, em grande parte da Oceania, como Ryanosaurus, Grouch e Merkaba. No Brasil o experiente Fabio Leal é a grande referência.

Eu gostei mesmo de Goa, ainda existe?

Embora ele tenha dado origem ao Psy Trance, hoje o Goa Trance é uma vertente do estilo, com grande força em Israel e partes da Europa, sendo mantida por produtores que resgataram as raízes de Goa nos anos 2000, como Ethereal e Filteria. O som não é exatamente o mesmo que era ouvido nos anos 90, mas se aproxima bastante.

Sou bruxão, quero conhecer os mais brabos

Se você gosta de sons mais pesados e rápidos, o Psy Trance tem uma família de vertentes acima de 150 BPM que podem ser a sua casa. Inicialmente era tudo Dark Psy, com atmosfera sombria e bizarra e bastante uso de samples improváveis, em construções rápidas e trabalhadas com bastante criatividade. Hoje em dia o Dark tem dois filhos: o Hitech, que herdou o lado freak e tecnológico, representado por nomes como Virtual Noise, Rawar e Highko, enquanto o Forest segue a linha mais soturna e orgânica, representado por artistas como Farebi Jalebi, Derango e Giuseppe. No entanto, ainda caminham juntos, com uma cena alternativa de festivais dedicados exclusivamente a essa linha de psicodelia!

É claro que esse guia é apenas um resumão, o ponto de partida para que você possa sozinho descobrir as nuances do estilo e, principalmente, qual será a sua conexão com ele. Com a volta dos BPMs altos no Techno e o crescente intercâmbio entre cenas artísticas, o Psy Trance está em alta e muito provavelmente você ainda vai ouvir muito dele no decorrer desta década. Abra sua mente e permita-se viver as grandes experiências que ele poderá te proporcionar!

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