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A música conecta

Editorial | Um mergulho na história do Kwaito

Por Ágatha Prado em Editorial 30.03.2021

Nem só de Afro House são feitos os ritmos da África do Sul. Aliás, o gênero na verdade é uma síntese contemporânea de algumas raízes que compõem as atmosferas dançantes do país e que, por sinal, são muito mais extensas do que essa pequena porção que se popularizou mundo afora. Do tribalismo ao Zouk, Bubblegum, Jaiva, Zulu, Mbaqanga e inúmeras outras vertentes trazem uma história pra contar muito além de suas letras e seus ritmos. Hoje vamos falar de um dos estilos sul-africanos que não somente influenciou musicalmente uma das bases do que conhecemos hoje como Afro House, mas também revolucionou politicamente o comportamento e a visão de vida de toda uma nação. 

O ano era 1994. Nelson Mandela era eleito presidente da África do Sul em sua primeira eleição democrática, marcando oficialmente o fim do trágico período de 46 anos sob o regime do apartheid. No mesmo ano, um renomado grupo musical, Boom Shaka, lançava seu primeiro álbum com o single de sucesso It’s About Time, apresentando uma combinação mais lenta da House Music com ritmos urbanos advindos do street dance africano, sensual e guiado por letras declamadas. 

No exato momento em que o país comemorava o fim do apartheid, um novo gênero musical se fortalecia entre os jovens sul-africanos, se consolidando para além das simples definições de estética ou tendência sonora. Estamos falando do Kwaito, um estilo que se tornou um verdadeiro movimento de celebração à liberdade e à união de uma sociedade.

A palavra Kwaito tem sua origem na língua Afrikaans, derivada da palavra kwaai que possui um significado similar ao “quente” na língua portuguesa – ou “hot”, na inglesa. Quando a House Music chegou à África do Sul, a gíria Kwaito era utilizada nos guetos do distrito de Soweto para se referir ao quão “quente” eram aquelas batidas cheias de grooves. Ao mesmo tempo, outra derivação da palavra kwaai também pode ser entendida através da palavra gangster, associando assim, a relação entre o Kwaito e o gangster life-style.

Bebendo da forte influência da House Music, o Kwaito, visto de maneira mais simplista, pode ser considerado o primo mais novo e mais slow do estilo de Chicago. Com batidas mais arrastadas, melodias vibrantes desenhadas por timbres de pianos e sintetizadores, o Kwaito traz a essência pura do Soul em seus vocais de letras declamadas e sensuais. Além da clara influência da House Music energizante, o movimento sul-africano também trazia as raízes swingadas do Reggae, adequando suas batidas para condução de uma boa pista de dança em plenas ruas, ou qualquer lugar que fosse possível se reunir. 

O Hip-Hop também compõe parte da receita estética do gênero que embalou a juventude sul-africana na década de 90. Porém, embora o Kwaito tenha sido rotulado por muitos como o Hip-Hop africano, o gênero carrega uma essência genuína, sobretudo quando nos aprofundamos e conhecemos o âmago de seu significado.  A proveniência, a política, a economia e o estilo que contextualiza o movimento do Kwaito fornecem a distinção no momento em que comparamos o estilo com o Hip-Hop norte-americano. Embora o estilo também tenha sua origem no gueto, a complexidade política em torno do Kwaito aprofunda nossa compreensão de identidade e resistência de uma sociedade no contexto da taxonomia racial e da história política sul-africana.

Muito além da estética sonora, um manifesto político

Mais do que um gênero musical, o Kwaito iniciou um movimento de empoderamento para o jovem negro sul-africano, permitindo o resgate de sua liberdade no pós-apartheid e a redecoberta dos prazeres e possibilidades em ritmo de celebração. Ao voltarmos nosso campo de compreensão para uma sociedade que passou 46 anos sofrendo uma segregação opressora, discriminada e com seus direitos violados em detrimento de uma minoria branca e racista, entendemos o Kwaito como uma manifestação da liberdade. Uma liberdade que permitiu a ascensão de uma identidade cultural até então sufocada, e que passou a ser reconhecida dignamente não apenas pela totalidade do próprio país, como por todo o mundo. 

O Kwaito era um paradoxo ante aos outros estilos musicais que cultuavam uma resistência política mais intensa, chegando a ser classificado por militantes políticos como “um tipo de música que infecta nossa juventude com imprudência”. Na verdade, era um movimento dos jovens sul-africanos que nasceram e cresceram no fim de um doloroso período, e que naturalmente despertava resistência aos que viveram uma memória de luta, muitos anos antes.

A economia em torno do Kwaito chama a nossa atenção tanto para o seu materialismo cultural quanto para seu poder como ato político. As escolas de distritos menos favorecidos não conseguiram financiar programas como aulas de música para aprimorar a experiência de aprendizagem de seus alunos. Como o Kwaito não exigia um conhecimento formal de teoria musical ou grandes espaços para ensaiar e instrumentos caros, era facilmente acessível aos indivíduos dessas comunidades oprimidas.

As estrelas do Kwaito

A globalização pós-apartheid que passou a influenciar a economia, o comportamento e a cultura sul-africana, favoreceu a popularização e a internacionalização do gênero, incluindo o trabalho de artistas que protagonizaram os grandes hits do estilo. O Kwaito teve como pioneiro o grupo Boom Shaka formado por Junior Sokhela, Theo Nhlengethwa, Thembi Seete e Lebo Mathosa, que se consolidou como uma das maiores estrelas do estilo. It’s About Time e Thobela são os hits de maiores sucesso da história do grupo, conferindo a Boom Shaka o símbolo da música pela liberdade sul-africana na década de 90. 

Ao lado de Boom Shaka, Arthur Mafokate também marcou o pioneirismo histórico do movimento, sendo ele o padrinho de muitas outras estrelas que viriam a seguir. Mestre do oldschool Kwaito, quando Arthur emplacou Amagents Ayaphanda uma revolução sonora derrubava os paradigmas de Johannesburgo. A faixa abriria portas para os hits avassaladores que surgiriam a seguir, como Kaffir, que vendeu mais de 500 mil cópias.

Porém, foi através dos trabalhos de Mandoza, que o mundo de fato conheceu o Kwaito na virada do milênio. O artista nativo de Soweto foi um dos nomes mais populares do estilo sul-africano, e teve seu talento descoberto por Mafokate. Com hits que alcançaram discos de platina e premiações no cobiçado South African Music Awards, Mandoza conquistou o sucesso entre o povo negro e o povo branco africano, sobretudo através da faixa Nkalakatha, que transcendeu as ruinas da segregação conferindo ao artista a coroa de “rei do Kwaito”.

O Kwaito foi e permanece como o hino da liberdade de um povo. Uma prova de que a ruptura das amarras de um longo período de sofrimento, fora também emancipado através da música, da dança e da arte como ato político. 

A música conecta.

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