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A música conecta

Editorial | O super quebra-cabeça que ajuda a explicar o DNA musical de Ben UFO

Por Laura Marcon em Editorial 06.07.2021

Nunca fui fã de quebra-cabeças. Nunca terminei um. Talvez por ser uma mulher relativamente impaciente, quando chego num determinado ponto em que não consigo avançar, rapidamente desisto e vou fazer qualquer outra coisa. Mas, quando o quebra-cabeça é sobre música, ou, mais especificamente, sobre a música de Ben Thomson aka Ben UFO, trato de vestir minha melhor capa de paciência, um sorriso largo, e não vejo o tempo passar na hora de brincar de encaixar as peças. 

Afinal, está aí um artista que tem um que de mistério muito sedutor e vale a pena entender melhor. Considerado o DJ favorito de muitos dos seus DJs favoritos, Ben UFO possui uma das visões sonoras mais amplas já vistas na história da música eletrônica e justamente por isso é, para muitos, o maior representante do real significado da palavra “seletor musical”. Até mesmo porque ele concentra 100% da sua energia na arte da pesquisa e discotecagem, sendo um dos únicos artistas de todo o cenário da música a não atuar no campo da produção musical. Cem por cento DJ e verdadeiro abastecedor do experimental e desconhecido. Suas construções são tão sutis e evasivas que muitas das vezes é praticamente impossível descobrir os gêneros que você está ouvindo.

Entre recortes do passado e fragmentos do presente, Ben é capaz de desbravar as áreas mais inexploradas e esquecidas da Dance Music, navegando habilmente entre uma linhagem sonora da cultura underground do Reino Unido e dos difundidos House e Techno globais, misturando esses universos de forma excepcional, através de uma mixagem de técnica ímpar, sem praticamente nenhuma consideração por fronteiras geográficas ou cronologias sonoras. 

Ouvir um set de Ben UFO é estar em uma bolha que combina experiência sonora a inúmeros sentimentos como de excitação, curiosidade e surpresa em uma sequência completamente imprevisível, mas muito dançante. Daí que quando você está imerso nesse universo é simplesmente impossível não se pegar pensando algo como “de onde vem essa genialidade toda?”. É justamente essa pergunta que vou tentar responder nos próximos parágrafos e quem sabe colocar o artista em algum lugar da Terra – pois volta e meia me pego dizendo que este ser veio de outro planeta.

Miles Davis, Loefah, Spencer Kinsey, TRG, Kode9, Skream, David Kennedy, Kevin McAuley… cada um desses artistas fazem parte desse quebra cabeça complexo e delicioso que é Ben UFO. A começar pela sua infância, em Londres. Seu pai era do mundo da música clássica, mas também um grande fã de Jazz, então cresceu envolto a esse mundo. Começou tocando violoncelo e bateria, mas logo na adolescência conheceu a música eletrônica através das noites de Drum’n Bass, Hardcore, Dubstep, UK Garage, Grimes e outras sonoridades que vieram desse universo.

Foi justamente em uma dessas noites, no famigerado club FWD >>, que conheceu David Kennedy, mais conhecido hoje como Pearson Sound. Ambos descobriram que estudariam na mesma faculdade em Leeds, e a partir daí passaram a dividir sua paixão pelas sonoridades underground do Reino Unido. No segundo ano da faculdade entra em cena Kevin McAuley, hoje conhecido como Pangea, a única pessoa que tinha um par de toca-discos e, daí pra frente, o fascínio pela discotecagem dessas sonoridades só aumentou e o mundo da experimentação não teve mais fim.

De horas e horas virando discos bons, outros ruins, surgiu a vontade de transformar essas sessões de discotecagem em um programa de rádio e aí vem duas grandes peças desse quebra-cabeça todo: a rádio e a Hessle Audio. Ben, David e Kevin conseguiram espaço em uma rádio online e transmitiam seu programa do quarto de Kevin. O nome do programa era Ruffage, em homenagem ao nome da faixa de Dubstep criada por Loefah. O trio se encontrava em um lugar onde essas sonoridades eram pouco difundidas na pista de dança, mas ainda assim ganharam espaço rapidamente por conta da explosão do estilo na capital da Inglaterra. 

+++ Case | Hessle

Pouco a pouco, produtores passaram a enviar suas faixas para que o time tocasse em seu programa e, em um caminho muito natural, nasceu a gravadora Hessle Audio, em 2007. Assim como na curadoria dos programas da rádio, os artistas também buscaram levar à Hessle uma sonoridade que fosse estranha aos ouvidos do público. E não se incomode com essa palavra pois é essa mesma que eles gostam de usar quando escolhem os trabalhos para compor o catálogo. É claro que, como bons amantes do Dubstep, a Hessle é comumente confundida como uma gravadora direcionada ao estilo, assim como também já foi considerada de Techno tempos depois, mas para Ben UFO a palavra estranha soa muito atrativa.

Para ele, a ideia de lançar músicas que ninguém consegue definir, mas que ainda se encaixa nas convenções daquilo que é Dance Music, é a chave do negócio. Seu interesse é nulo em tocar sets ou lançar faixas que se enquadrem em parâmetros tradicionais e isto vem justamente do fato de se sentir estranho à cena que participou desde sua adolescência, onde entrou em um ambiente House e Techno com um background UK Garage, Dubstep e todos os estilos que derivam destes. Daí que esse amplo espectro sonoro deu a ele a segurança e liberdade para brincar com qualquer estilo que quisesse.

Mais do que isso, esse cenário à margem a que se sente inserido lhe coloca em uma vantajosa posição de conforto em não corresponder a nenhuma expectativa de gênero musical, trabalhando sempre na tangente daquilo que é comum, sabendo que o público que o escuta está realmente esperando o inesperado, a surpresa. Imagine só você poder trabalhar com essa liberdade toda? Seria o sonho de todo o artista? 

Na verdade, acho que não. É preciso ser muito ousado, desprendido e despretensioso para trabalhar de forma tão ampla. Ben UFO tem o prazer de tocar coisas estranhas, principalmente quando percebe que está em lugares onde a maioria dos ouvintes não sabe quem ele é, pois enxerga esses lugares como uma plataforma para avançar nas experimentações. Em uma entrevista, Ben contou que “é muito gratificante quando você vê muitas pessoas reagindo em choque a algo que não estavam esperando, acho que você acaba tendo momentos realmente interessantes dessa forma. As pessoas começam a interagir umas com as outras de forma diferente, é muito bom quando você vê isso acontecer”.

Mas, para ele, um dos maiores pilares de sua carreira é, sem sombra de dúvidas, os programas de rádio, que mantém há 14 anos, primeiramente Sub FM, e hoje na Rinse FM. É, na visão dele, a coisa mais valiosa na construção de carreira de um DJ. “Quando você está tocando em clubs semana após semana, você está tocando para públicos muito diferentes, em lugares muito diferentes. Isso pode confundir e pode fazer você questionar, eu acho, o que você procura na música que está tocando para as pessoas. As respostas podem ser tão diferentes que eu acho que pode fazer você questionar um pouco suas próprias respostas à música. Com o rádio, toco para o mesmo público, mais ou menos, toda semana. (…) Eu realmente gosto do fato de que as mesmas pessoas escrevem para o show semana após semana, ouvindo a música que estou tocando, me dizendo o que pensam dela, me dizendo o que gostam, ocasionalmente o que eles não gostam. Mas sim, meio que enraíza o que estou fazendo, acho que me dá uma base que eu não teria de outra forma”.

Hardcore, traçando a música do Reino Unido do final dos anos 80 até agora, passando pelo Acid House, Techno, todas as variantes de Garage, Jungle, até Dubstep e Grime. Tudo junto de uma forma estranha, principalmente do ponto de vista da discotecagem. Ben UFO busca mesmo é a magia que pode acontecer quando um artista e o público se conectam de forma simbiótica. Aquele momento de surpresa que tira o ouvinte completamente do eixo e levanta multidões. Ele quer recontextualizar uma faixa de uma forma que faça o público experimentá-la de uma forma jamais vista antes. Ele quer tocar aquela faixa que os DJs descartam ou tem medo de usar.

Tive o prazer de ouvir Ben UFO ao vivo em duas oportunidades. Seu set por si só é um baita quebra-cabeça. Em cada apresentação ele transformou a pista de dança em uma experiência completamente diferente. Ele consegue derrubar as distinções entre o que é acessível e o conceitual, o comercial e o experimental, tornando qualquer tipo de hierarquia e convencionalismo completamente irrelevante. Agora, tentando encaixar as peças do seu trabalho, vejo que esse é um quebra-cabeça em eterna construção e que, pela primeira vez, me deu, e continuará dando, o maior prazer de montar.

A música conecta.

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