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A música conecta

Panelinhas ou coletividades? Um convite a repensar o conceito de “panela”

Por GB em Editorial 28.07.2022

Um tema de extrema relevância para entendermos o desenvolvimento do cenário de música eletrônica no Brasil — assim como qualquer outro cenário artístico e cultural, em toda parte, diga-se de passagem — é a formação das coletividades que dão sustentação para a cena. É evidente que, para além dos núcleos, das labels, das festas, que são a consolidação da cena em forma de projetos, os cenários artísticos são formados por pessoas. Artistas, produtores/as, pesquisadores/as e entusiastas que compartilham um mesmo espaço e tempo, cada um com suas bagagens e histórias de vida, mobilizados em torno de propostas estéticas, pautas políticas e com um forte desejo de fazer acontecer é o que constrói uma cena musical.

Aftermovie do retorno do coletivo Arruaça às ruas de Porto Alegre depois de dois anos sem festas

Quando o assunto é a festa, que é uma dimensão fundamental do cenário de música eletrônica de pista, as coletividades ganham uma importância ainda mais destacada. Sendo os/as DJs a principal via de expressão e escoamento da produção artística do cenário eletrônico, e a pista de dança o maior laboratório criativo, fica fácil perceber como a conjunção destes dois expoentes, DJs + pista, dão a base para a construção da cena através de um conjunto de festas, que depois se desdobram no surgimento de coletivos, núcleos, labels, rádios, agências, clubs etc. A festa é a matéria prima que consolida a cultura de pista e serve de inspiração para as produções posteriores.

Quando a House Music surgiu em Chicago, nos anos 1980, as pessoas que fizeram parte daquele cenário estavam completamente envolvidas na sonoridade e na experiência de pista vivenciadas no club Warehouse. Mas a sonoridade não teria como se desenvolver sem a energia produzida na pista de dança, assim como essa energia não teria como ser produzida sem a performance inspirada dos artistas que tocavam nas festas. É a relação de reciprocidade entre DJ e pista que faz emergir uma coletividade efêmera que reverbera de maneira intensa para além da festa e produz as conexões necessárias para que o cenário surja e se desenvolva. 

A renovação do cenário vivenciada recentemente no Brasil, com o surgimento de vários coletivos de festa de rua, que depois migraram para locações alternativas nas cidades, passou por um processo semelhante. As festas do coletivo Voodoohop, de São Paulo, inspiraram o surgimento de outras festas e núcleos em todo o Brasil, a partir da última década, tendo como mote um certo desvio estético em relação ao padrão hegemônico da época e a articulação de pautas políticas que reivindicavam o direito à cidade, espaços mais plurais e com maior liberdade para os corpos, tudo isso na cadência rítmica da música eletrônica: primeiro Downtempo, depois Techno e House, e hoje explorando uma infinidade de outros estilos: Breakbeat, Funk, Grime, Juke etc.

Essa breve introdução é importante para salientar que é a relação entre as pessoas que constrói o cenário. Pode parecer óbvio, mas quando vemos uma cena já consolidada, com vários projetos acontecendo, é fácil naturalizarmos a existência de alguns atores e perdermos a dimensão de construção necessária para que esses projetos se consolidassem. São as coletividades envolvidas no cotidiano do cenário que fazem com que ele emerja. No entanto, o fato de serem sempre coletividades as responsáveis pelo desenvolvimento das cenas não significa que elas próprias, as coletividades, estejam livres de críticas, reflexões e sujeitas a transformações nos seus modos de funcionar.

É muito comum para quem está recém chegando em um cenário já consolidado, alguém que esteja com muita vontade de fazer parte de maneira mais intensa e destacada desse cenário, um sentimento de exclusão e dificuldade de acesso aos círculos de influência — ou seja, quem monta os line ups. Mais do que isso: é comum a sensação de que será impossível adentrar tais grupos. Qualquer olhar superficial para os line ups locais em cada cidade permite perceber a formação de algo que é popularmente chamado de panela: artistas que se repetem em diferentes festas, núcleos que hegemonizam a programação da cidade e uma “casta” já consolidada onde é muito difícil de penetrar.

Registro da primeira edição da Batestaca, coletivo pernambucano

Mesmo sendo os projetos frutos de articulações e esforços coletivos, é impossível negar que é extremamente comum o surgimento de panelinhas que impedem, de certa forma, o surgimento de novos atores, seja através de um boicote mais intencional, seja através de redes de relações que fazem isso sem intenção. É muito difícil entrar em grupinhos já consolidados, convenhamos. Essa dinâmica ficou ainda mais evidente a partir do movimento de denúncia de grupos sociais subalternizados, as chamadas minorias — mulheres, comunidade LGBTQIAP+, pessoas negras —, que, com muito esforço, escancararam que as panelinhas são, na imensa maioria das vezes, formadas por corpos padrão: homens cis, brancos e hétero. 

A movimentação dos grupos que fogem do padrão hegemônico do cenário, tanto a nível de Brasil como mundial, já conquistou uma alteração significativa na composição dos line ups e das próprias coletividades. Ainda assim, nosso cenário segue sendo dominado por homens brancos, cis e heterossexuais que não querem abrir mão de seus privilégios. É uma luta que está longe de terminar, mas que já apresenta alguns resultados interessantes. De todo modo, a luta por mais diversidade na composição do cenário não dá conta de resolver de maneira efetiva a formação das panelinhas. Isso ocorre porque, muito provavelmente, o tipo de relação necessária para a criação e o desenvolvimento dos projetos seja uma relação de intimidade.

Set gravado em uma das edições da BRASA, coletivo LGBTQIAP+ baseado em Florianópolis

Assim, caímos em um grande dilema difícil de resolver. Quem já produziu algum rolê e quem já participou da construção (ou renovação) de um cenário sabe que é preciso intimidade para dar corpo aos desejos que nos movimentam em direção ao cenário da forma como sonhamos. As coletividades que se constituem nesse processo são formadas por uma liga muito intensa e, de fato, é muito raro que sejam abertas para novas composições. Mesmo os coletivos que fazem um esforço para abrirem espaço e dialogarem com novos atores fazem isso com muita dificuldade. É preciso ter essa postura quase como um horizonte político para que seja efetiva. Mesmo assim, sabemos que, na maioria dos casos, recursos materiais, facilidades de acesso e outros privilégios costumam falar mais alto.

Então, voltamos em uma distinção importante: o fato de existirem panelinhas — grupos de pessoas com um grande nível de intimidade e uma história comum na construção do cenário — e de essas panelinhas serem algo que faz parte da constituição da cena, não muda o fato de que grande parte dessas panelinhas refletem uma série de privilégios e desigualdades de acesso que são históricas e estruturais. É normal que durante o surgimento e desenvolvimento do cenário alguns grupos de pessoas tenham protagonismo e que construam ao seu redor uma zona de influência que centraliza o poder de decisão e o prestígio. Uma postura de abertura e de fomento de novos atores não é a regra, mas é algo necessário para que a cena mantenha um frescor e não perca o brilho.

Vídeo de uma das edições da MASTERplano, coletivo artístico e festeiro belorizontino 

Uma das possíveis soluções para o problema de engessamento do cenário em torno de panelinhas é a aposta nas próprias movimentações coletivas. É fundamental para quem está começando criar e fazer parte de suas próprias coletividades. Evidentemente, é importante que os grupos já consolidados abram espaço para quem está chegando, mas, infelizmente, não é possível contar com isso. Somente a criação de novos coletivos, animados por estéticas e pautas próprias, tem força suficiente para se afirmar no cenário e garantir seu espaço. É uma ilusão triste, mas muito comum, a ideia de que eu mereço ser chamado para tocar porque sou um/uma bom/boa DJ. O cenário de música eletrônica tem um número infinito de artistas bons, e não há nenhum tipo de meritocracia envolvida na construção de um line up — sejamos francos.

Vídeo do encerramento oficial do projeto sócio-educativo de fomento à arte e cultura promovido pelo coletivo Turmalina

Investir em construções coletivas permite uma soma de energias capaz de transformar os sonhos em realidades e superar uma trajetória solitária, o que pode ser muito frustrante. Juntar amigos e amigas com posicionamentos e gostos em comum é a maneira mais fácil de participar do cenário. Agora, isso não nos exime de estarmos atentos para as formações já viciadas que surgem de maneira naturalizada. O cenário reproduz as relações de poder que constituem a sociedade. Portanto, é muito mais fácil para quem tem acesso aos equipamentos, recursos financeiros e contatos fazer seus projetos acontecerem. A cena ainda é dominada por homens cis, brancos e hétero, isso é um fato, e a composição de novos coletivos não muda esse quadro por inércia: é preciso uma postura ativa na construção de um cenário mais diverso e igualitário, para além das panelinhas tradicionais.

Set de Victin para a vortex, plataforma que mapeia artistas e produções independentes que baseiam seus trabalhos na experimentação musical

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