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A música conecta

Pista segura: a urgência de criar e manter ambientes responsáveis em festas, clubes e bares

Por João Anzolin em Editorial 03.02.2023

A recente prisão na Espanha do jogador de futebol Daniel Alves sob acusação de estupro mobiliza pauta considerável da mídia neste início de ano. Um dos fatos do caso que chama atenção é a grande agilidade dos funcionários do local onde tudo aconteceu – a casa noturna Sutton, em Barcelona – ao adotar medidas que foram fundamentais tanto para a agilidade da investigação como para a segurança da vítima e do processo. Eles observaram orientações do “Protocolo de Segurança Contra Violências Sexuais em Ambientes de Lazer“, material publicado pela Generalidade da Catalunha (o Governo da comunidade autônoma).

Criado em 2019, o protocolo é um didático documento de 54 páginas que estipula diversas ações a serem tomadas e é voltado tanto para funcionários de controle de acesso e segurança, como para os proprietários dos estabelecimentos. A justificativa para sua criação é o fato de que “Nos últimos tempos, o debate se intensificou sobre a violência sexual, estimulada especialmente por certos fatos ocorridos no contexto de festas populares e outros espaços de lazer, onde ocorreram graves atentados contra a integridade sexual das mulheres” e “a fim de evitar que qualquer conduta que ameace a liberdade e a integridade sexual fique impune”.

A existência do Protocolo e a adesão a ele por uma casa tradicional na vida noturna de Barcelona (a Sutton abriu suas portas em 2001), demonstram um novo e bem-vindo olhar sobre a importância da estruturação e observância de boas práticas no meio do entretenimento. Mais do que isso, traz à tona a urgência de medidas mirando criar e manter ambientes responsáveis em festas, clubes e bares.

Uma pesquisa feita em 2022 no Brasil pela startup Women Friendly, em conjunto com a Johnnie Walker, aponta que dois terços das mulheres relatam já terem sofrido assédio em bares e restaurantes do país. Ela também revela que mais da metade das mulheres já deixou de frequentar eventos noturnos por medo de sofrer assédio.

O estudo se converteu no programa Bares Sem Assédio. Através dele, a marca de uísque vai custear a certificação de 40 estabelecimentos das cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Recife com o selo Women Friendly,  a fim de certificar empresas, bares e festivais como ambientes amigos da mulher e livres de assédio. A marca também vai oferecer, gratuitamente, capacitação de 1.000 profissionais da área – bartenders, garçons e gestores dos bares – que tenham interesse em obter informações sobre como tornar os ambientes mais seguros para as mulheres.

O problema está longe de ser exclusivo do Brasil. Em 2016, foi criado na Inglaterra o programa Ask for Angela (em tradução livre, “Chame a Angela”). O nome da iniciativa é a própria senha para que mulheres em situação de risco possam denunciar de forma discreta para atendentes de bar ou qualquer pessoa presente numa festa, que está em perigo. Apesar de ser difícil mensurar com precisão o êxito da campanha, em 4 anos foram feitos quase 13 mil downloads do material explicativo da ação, que ganhou adesão em outros países como Estados Unidos, Bélgica e Austrália. 

Capacitação de equipes para lidar com situações de risco, treinamento e adoção de rotinas para casos de assédio e violência, criação de códigos de conduta (e também de códigos de ética) e publicidade de todas estas ações são apenas algumas medidas que bares, clubes, festivais, produtoras de evento em geral e toda a cadeia de trabalhadores do meio podem – e devem – adotar.

Se até pouco tempo este vocabulário parecia restrito ao mundo corporativo, a incômoda realidade é que boa parte do setor cultural, do lazer e entretenimento presencial se movimenta timidamente em torno de práticas não apenas de prevenção ao assédio, como também de governança como um todo, já corriqueiras em outros segmentos. Grandes players do mercado, com atuação nacional e estruturas administrativas mais sólidas, têm mais facilidade para adotar medidas deste tipo. Um cenário que deve mudar o quanto antes e abranger empresas de pequeno e médio porte. 

Dentre os poucos clubes e bares brasileiros que já tinham políticas neste sentido, o James Bar, de Curitiba, foi um dos pioneiros e criou seus protocolos em 2015. Ana Raduy, uma das sócias do bar, diz que além da redução nos casos de assédio, “as pessoas ficaram mais cientes de que podem fazer as reclamações para nossa equipe e que tomaremos uma atitude. Muitas vezes elas não falam nada porque não acreditam que alguma coisa vá ser feita“.

O episódio envolvendo o jogador brasileiro ganhou repercussão e parece ter estimulado uma onda educativa no Brasil: desde o começo do ano estão em andamento uma série de iniciativas de lei inspiradas no protocolo catalão. 

O caminho para que finalmente tenhamos ambientes seguros em festivais, festas, clubes e bares é longo, e passa por atitudes de todos os envolvidos nos ecossistemas dos eventos e da música (empresários, artistas, funcionários, fornecedores e público). Desafios que passam por processos de cultura organizacional e governança corporativa e que tem estreita conexão com responsabilidade social e ambiental – tema de uma próxima conversa!

A música conecta.

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