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A música conecta

Por que o Lo-Fi faz tanto sucesso no YouTube?

Por Ágatha Prado em Editorial 18.08.2022

Ressignificar o passado através de um olhar nostálgico e contemplativo de suas estéticas, e desdobrar-se para conquistar o público contemporâneo de uma maneira peculiar. O Lo-Fi é mais do que um movimento musical, é uma cultura que resgata o sentimento lúdico noventista, caminha contra a maré estética e complexa em torno do mainstream e se consolida em uma sociedade majoritariamente conectada pela internet. Um movimento antagônico ao mundo real que vivemos hoje, e que certamente por isso, permanece conquistando os corações da geração atual.

O Lo-Fi é um mergulho virtual retroativo dentro de um tempo onde tudo era mais simples e mais fácil de lidar. Convido aos leitores que nasceram no início da década de 90, ou anteriormente a ela, a fechar os olhos e imaginar-se na sala de sua casa da época de sua infância. Tente lembrar dos objetos que o cercavam. Um telefone com fio, uma fita VHS passando em sua televisão de tubo, um radio tocando na sala, os ruídos de uma fita cassete. O cenário é familiar e ao mesmo tempo, resguarda um acolhimento que se perdeu no tempo. A sociedade, na época, não estava ligada 100% do tempo. As informações giravam de maneira analógica, o tempo aparentemente passava mais devagar. Ao abrir os olhos, você se depara com o extremo oposto. Informações em tempo real, fluxo de conexão com o resto do mundo ligados 24 horas por dia, a pressão da exposição nas redes, o ritmo dos acontecimentos transbordando os limites do efêmero.

Não é à toa que o Lo-Fi surge como contraste dessa aceleração global. É como um freio do dia-dia, transportando o ouvinte à uma paz imaginária, como uma fuga da velocidade do presente. E para isso, o movimento utiliza os subterfúgios estéticos do passado. Ruídos, VHS, a aparência de uma produção caseira simulando a imperfeição. Lo-Fi significa Low Fidelity, em português baixa fidelidade. Em tempos onde o 4k se tornou o padrão estético do momento, recuperar a estética Low Fidelity se tornou uma expressão de vanguarda.

O movimento incorpora uma máxima singular do movimento Punk, “do it yourself”, ou seja, faça você mesmo. Munido de fitas cassetes, e demais ferramentas de baixo custo, o Lo-Fi surgiu permitindo uma maior versatilidade dentro das produções musicais, de forma que uma mesma fita poderia ser usada diversas vezes, o que gerava diversos ruídos. Embora tenha nascido como o movimento musical que conhecemos hoje, somente na última década, o termo Lo-Fi já era utilizado na década de 80 para referir-se às produções fonográficas de baixa definição.

Trazendo para o contexto atual as referências do Jazz e do Soul, o Lo-fi foi reconstruindo o padrão estético em torno do ruído, das frequências mais “abafadas”, micro desafinações propositais, misturando gêneros como o Hip Hop e, posteriormente, o House. O foco se baseia em dois pontos principais: simplicidade, principalmente no orçamento do artista; e batidas eletrônicas, em loop ou gravadas de modo simplista.

A baixa definição, então, passou a ganhar seguidores fieis. O artista americano J Dilla foi um pioneiros a reinterpretar o Hip-Hop de uma maneira mais humanizada, sem o quantize mecânico, permitindo-se apresentar “erros” agradáveis durante os arranjos, além de um filtro de frequências que iria contra a o padrão de transparência cristalina dos estúdios tecnológicos. Não demorou muito para que sua música fosse o gatilho para ressurgimento do Lo-Fi, formando uma onda de inspirações em torno desse padrão contrarregra. E diante do poder de alastramento que promove a tecnologia informacional de hoje, também não foi difícil para o Lo-Fi encantar multidões, especialmente devido a uma plataforma específica: o Youtube.

Foi por lá que em 2015, um certo canal primeiramente chamado de ChilledCow surgiu. Com transmissão ao vivo e incessante de batidas aconchegantes, embaladas 100% pela estética Lo-fi, o canal passou a ganhar adeptos e, em 2017, uma nova identidade foi reconfigurada pelo colombiano Juan Pablo Machado, inspirada no anime japonese A Viagem de Chichiro. A identidade contemplava de uma menina com fones de ouvido, estudando em seu quarto, diante de um caderno. Nascia então, a icônica Lo-Fi girl a mais nova companheira digital de uma geração conectada pelas redes, a qual rebatizou o canal.

Com seleções perfeitas para relaxamento e também para se concentrar nos estudos e trabalhos, o canal se tornou um fenômeno da plataforma. Até o início do ano de 2020, o Lo-Fi Girl acumulava mais de 218 milhões de views e mais de 13 mil horas de transmissão. Durante a chegada da pandemia, o fator isolamento colaborou para uma explosão ainda maior no canal. A solidão do home-office fez com que a transmissão fosse um portal de acolhimento e companhia para o público, tornando um refúgio aconchegante ante ao caos do mundo real. E assim a premissa Lo-Fi da fuga do padrão estético convencional, e da ditadura do fluxo acelerado de informações, fez ainda mais sentido. O canal atingiu a marca de 1 bilhão de ouvintes, e se tornou o grande ritmo da quarentena.

Embora o Lo-Fi exista no Spotify, no SoundCloud e em outros serviços de música, o YouTube tinha o terreno perfeito para que o gênero prosperasse. Por lá, canais transmitem playlists ao vivo 24 horas por dia, algo parecido com o que fazem as rádios tradicionais. O potencial de transmissão infinita não exige que o ouvinte escolha o que escutar (e ele nunca será interrompido pelo fim da playlist, como ocorre no Spotify). É ideal para quem quer colocar algum tipo de som e se concentrar, e ao mesmo tempo, ideal para os que buscam companhia na solitude, já que o chat do canal fica disponível para a troca de mensagens entre os ouvintes em tempo real.

Surfando sob os mesmos fundamentos, não demorou muito para que o Lo-Fi fosse além dos limites do próprio Hip Hop, que se tornou fenômeno nas redes. O House também foi absorvido pelas estéticas Low Fidelity, e utilizando dos mesmos padrões “chilled”, “filthy” e “noised”, bem como os mecanismos de sampleamento e filtragem de frequência, também conquistou um grande fandom na internet, desde que surgiu em 2016. Há de se destacar um movimento interessante do subgênero aqui – ele nasce conquistando o público virtual, e rompe as fronteiras das redes como uma nova subcultura underground dentro dos clubes e das ruas, aderindo-se especialmente, ao gosto dos amantes do Old School.

Ross From Friends certamente é um dos principais expoentes dessa estética Lo-Fi dentro do House. É justamente o fascínio pelo padrão primordial da velha guarda, que molda a natureza identitária do artista. A faixa Talk to Me You’ll Understanding, se tornou uma das mais clássicas da sub vertente, marcada por texturas difusas, batidas abafadas, ruídos que resgatam o charme do analógico e cortes de vocais pontuais, carregados de saturações corrosivas. A marca estética do artista inundou os ares britânicos, trazendo o Lo-Fi House como marca underground da região, e mundialmente difundida.

É notável também o trocadilho do nome do projeto: Ross From Friends, personagem icônico da série noventista que marcou uma geração. Assim, os nomes dos projetos também se projetam como uma performance à parte. Ao lado dele, temos DJ Seinfeld, DJ Boring – com a clássica Winona -, 1-800 Girls – criador do “hit” underground U, Me and Madonna -, DJ ÆDIDIAS – com a faixa Real Friends – , além de Computer Data, DJ poolboi, e centenas de outros talentos que navegam através da versatilidade estética do Low Fidelity.

E claro, o que seria da imersão sem o apelo visual complementar do movimento? Em geral, grande parte dos lançamentos escoados nos canais, sobretudo através da plataforma principal, Youtube, vem acompanhados de um vídeo que enfatiza as estéticas Lo-Fi: recursos que emulam fitas VHS com imagens dessaturadas, remetendo à uma cena nostálgica do passado. Em especial, o canal EELF reúne um acervo dedicado ao estilo, seja através de novos lançamentos, ou re-uploads de faixas clássicas do Lo-Fi House.

A música conecta.

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