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A música conecta

Sneak Peek | Sampa The Great

Voltamos com mais um capítulo importante na existência dessa jovem coluna. Quando a Sneak Peek nasceu, a ideia era promover uma experimentação musical a quem vem até aqui. É para aumentar o leque, abrir os olhos, cativar ouvidos e inspirar de diversas maneiras. Por isso, não é só sobre ler um texto, é preciso vir aqui com tempo e presença. Hoje, minha escolha não é sobre uma banda ou projeto com uma longa trajetória, repleta de condecorações. É sobre uma mulher que furou a bolha, mesmo diante de todas as dificuldades que encontrou pelo simples fato de ser quem é. E isso sempre será louvável. O projeto artístico da vez é daqueles que vai impactar nos primeiros segundos, não tenho dúvidas. Justamente por isso mudarei o roteiro e vamos direto à música. Minhas recomendações? Assista, escute e esteja presente. E aí, volte aqui para conversarmos.

Ok, nesse momento você está aí com a boca levemente aberta pensando “uau”. Tá tudo bem, é assim que fico toda vez que vejo esse vídeo. Essa potência africana, preta e feminina, representando o Rap com uma riqueza musical incrível, chama-se Sampa The Great. Liberdade é o que ela clama toda vez que começa a cantar e em sua fusão haverá diversidade, representatividade, afrofuturismo, ancestralidade, muita musicalidade e claro, empoderamento feminino. Isso porque, sempre que uma mulher se sobressai em um universo masculinizado saiba que há garra, medo e dor por trás dessa camada forte que é visível aos olhos. Quem dirá quando se é negra, mas não é algo sobre o qual posso falar, posso apenas honrar.

Sampa Tembo é compositora e rapper nascida no Zâmbia e faz parte da nova safra de artistas que traz o Hip Hop em sintonia com outros designs sonoros da Black Music, como o Soul, Jazz e R&B e tem moldado a estrutura das coisas – se você viu o vídeo, você entendeu bem. A artista cresceu em Botswana e adorava escrever poesias em seus cadernos. Sua evolução ao lidar com as palavras era precoce. Um belo dia, um grupo local de Hip Hop, só de meninos, se apresentou em sua escola e ela decidiu que queria isso. Ela foi desencorajada. O motivo? “Você é uma menina”, mas quase sempre isso é absorvido por nós, mulheres, de outra forma. A menina Sampa sentiu-se desafiada.

Anos depois, decidiu peitar o mundo e estudou na Academy of Art University, em São Francisco. Lá, ela realizou alguns pequenos shows e slams, um formato de poesia falada que promove uma provocação frente às questões problemáticas da sociedade, como, por exemplo, misoginia, homofobia e machismo. Um adendo: procure conhecer os grupos de slam do Brasil, você vai cair pra trás. Após concluir seus estudos, ela decidiu ir para a Austrália desbravar seu estilo musical. Não demorou muito tempo por lá para perceber que havia algo errado. “A cena não refletia a multicultura. Algo que eu não via eram artistas negras”. Foi a partir disso que ela começou a mudar a história. Sampa ainda não chegou nem aos 30 anos, mas ela não veio a esse mundo a passeio.

Prova disso é que ela estudou engenharia de áudio na SAE Institute, em Sydney. “A indústria é dominada por homens brancos, o que foi muito interessante para mim”, disse ela em uma entrevista. Em 2014, no mesmo ano que chegou, já inseriu o sufixo The Great em seu nome e em 2015 lançou o The Great Mixtape, no formato free download e chamou atenção por isso. Lançou mais alguns singles e EPs em sequência e aí em 2017 fechou uma collab que mudaria o ritmo das coisas: Everybody’s Hero, com a cantora Estelle. Em 2018, lançou o single Energy com o multiartista Nadeem Din-Gabisi e, mais para frente, Final Form, ambos sucessos que não deixaram dúvida alguma sobre seu talento. Basta ver os clipes, que no caso dela, são sempre incríveis:

Em 2019, a artista lançou seu primeiro álbum, The Return, com 19 faixas. O álbum basicamente é sobre se conectar às suas raízes, trazendo ao mundo a força africana. Nos anos de Austrália, ela percebeu que, por vezes, sua descendência era negada e nem sequer mencionada. A faixa-título possui 10 minutos e foi composta ao lado de artistas africanos que detalharam suas experiências na antítese do pertencimento e do exílio em outros países, alguns como refugiados. Sampa comentou em imprensa que ao terminarem de gravar, todos choraram juntos e isso é realmente potente demais para se deixar passar. As faixas apresentam-se em vários idiomas em uma mistura de gêneros com a pulsação rítmica da música Kwaito da África se misturando aos sons.

Para ela é importante ter sintonia entre o passado, presente e futuro. Trazer o Hip Hop dos mundos que ela percorreu, mas também levantar temáticas como a diáspora, descontentamento, saudades de casa e honrar sua ancestralidade, sem negar de onde veio.  Por isso, sua jornada mistura momentos alegres com cortes contemplativos sobre a realidade de seus conterrâneos, incluindo o fato de ser mulher africana rapper em outro continente e agora se tornando mundialmente conhecida e o que isso acarretará. Sampa já  conquistou algumas premiações importantes, como por exemplo, foi a primeira artista a vencer Australian Music Prize duas vezes.

Sampa The Great quis mudar a condução do Hip Hop na Austrália, porque para ela os temas abordados se distanciam da narrativa que esse movimento traz e decidiu apresentar uma nova ótica que merece ser ouvida. Preste atenção em suas letras, é um convite à expansão da consciência e à desconstrução que todos precisamos passar. Termino com uma citação dela que resume tudo perfeitamente:

“Eu não escolho fazer nenhuma música política, minha vida é política. Essa é a experiência de vida de uma mulher negra e, como não há muita representação no Hip-Hop, será automaticamente política.” 

A música conecta.

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