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A música conecta

Editorial | Como a TribalTech conectou estilos e ajudou a moldar um novo panorama para cena nacional

Por Laura Marcon em Editorial 21.07.2021

O ano era 2006, mais especificamente em junho, e esta pessoa que vos escreve era apenas uma garotinha do interior que tinha recém desembarcado na capital para viver uma das experiências mais engrandecedoras da sua vida. 17 anos, morar sozinha, faculdade, tudo novo. Além da cautela excessiva que me foi orientada/ordenada pelos meus pais, eu vivia uma dualidade com a vontade de explorar tudo o que poderia ser diferente para mim e, pra falar bem a verdade, a música eletrônica não estava tão inclusa nesses planos. Até que fui convidada por dois amigos para ir com eles a uma TribalTech.

Eu não fazia ideia do que estavam falando. O que eu sabia é que teria completado meus 18 aninhos e esta era a oportunidade perfeita para provar um pouco do gostinho da tal liberdade da maioridade longe dos pais. Dia 19 de agosto chegou e lá estava eu, indo na minha primeira rave e me apaixonando real por tudo aquilo. Era completamente diferente de qualquer coisa que já havia experimentado: o horário para chegar ao horário para ir embora, a decoração, a energia, atmosfera e principalmente os estilos musicais. 

Três artistas que não esqueço até hoje: Gustavo Bravetti, Dino Psaras, Talamasca e Claudinho Brasil com a participação da Orquestra de Maracaeté. Um sneak peek desse momento passando pela sua tela agora:

Diferente, né? Bom, para mim foi, já que as sonoridades psicodélicas não faziam parte da minha vida até aquele momento. Depois de 2006, esta pessoa aqui garrou amor pela TribalTech e nunca mais ousou perder uma edição. A cada TT (como é carinhosamente chamada) que eu comparecia percebia uma evidente evolução sonora na curadoria, com a chegada de novos palcos – destaque para vertentes ligadas ao Techno e House e temáticas que evidenciavam um desejo de fusão de culturas e públicos -, em uma grande celebração à música em suas mais diversas estéticas. 

Falei até agora em primeira pessoa, pois a história da TribalTech está diretamente conectada com a minha evolução enquanto amante, curiosa e hoje profissional no mercado da música eletrônica. Assim como ela impactou minha vida, também impactou fortemente todo o cenário eletrônico brasilero, através de uma intenção inovadora e ousada dentro de um segmento de evento que sempre teve o Trance como a espinha dorsal de sua existência e crescimento, transformando raves em grandes festivais de música, além de um espaço para oportunidades e valorização de artistas nacionais e internacionais fora do eixo mainstream. 

A TribalTech – que já sugere uma mistura de culturas logo no nome – chegou na minha vida em 2006, mas sua história começa de fato em 2004. Idealizada por Jeje e Dudu Marcondes, a TT tinha em seu propósito unir tribos e trazer novos ares musicais às festas de música eletrônica. Em uma conversa com Jeje, ele relatou que “em 2004, quando pensamos na Tribaltech, entendemos que outras sonoridades estavam crescendo e precisávamos de um evento mais democrático e que mostrasse outros estilos. O nome da TT tem a ver com isso, inclusive”.

No início, caminhou através das vertentes mais psicodélicas, predominantes nas festas open air, mas logo nas primeiras edições mostrou seus ares disruptivos e a intenção de apostar em diferentes vertentes musicais. Priscila Prestes, sócia-fundadora da agência Alliance Artists e integrante da produção da TribalTech por muitos anos, lembra com carinho da apresentação do duo italiano Presslaboys, um dos momentos marcantes que indicam os primeiros passos do projeto:

“O Jeje, como DJ, já havia migrado para outras sonoridades fazia algum tempo, e essa foi a primeira vez que eles arriscaram introduzir um som mais lento (qualquer coisa abaixo de 140 BPM era lento na época, rs), mais houseado, no fim do evento. Foi uma experiência absolutamente inesquecível! A pista pegou fogo, todo mundo sorrindo e agindo de forma extremamente amigável. Acredito que ali ficou claro que era possível uma aposta em outras sonoridades e que existia uma parcela do público aberta para experimentar algo novo”.

Foi também nessas primeiras edições que a turma apostou em uma segunda pista dedicada a estilos alternativos ao Trance. Nasceu então a TimeTech, um palco que apresentou um line-up majoritariamente nacional com nomes como Gui Boratto, Aninha, Fabrício Peçanha, entre outros, e era acessível apenas para quem adquirisse um ingresso especial. A experiência foi bem sucedida e, pouco a pouco, a festa foi aproximando cada vez mais estilos como Tech House, Minimal, Techno e House em seus eventos, não apenas nas pistas alternativas, mas também adicionando novas vertentes no main stage.

Cinco anos após a primeira TribalTech, o evento já dava ares de festival, com três pistas e uma mescla de sonoridades interessantes da música eletrônica. Foi quando decidiram avançar em seu propósito e, em 2009, chega a edição Multiculti, que recebeu um palco de música orgânica, com bandas de diversos estilos, e também um espaço de cinema, que valorizava artistas audiovisuais. Para Priscila, “foi o turning point na história do festival (e na minha também, pois foi a primeira edição em que trabalhamos juntos). Foi incrível a oportunidade de presenciar em um mesmo evento, artistas como Nação Zumbi, Eddie, D-Ramirez, Maetrik (que atualmente conhecemos por Maceo Plex) e Catz n Dogz”.

É claro que uma atitude ousada e transformadora como essa não seria recebia com os braços tão abertos assim, principalmente quando falamos de um cenário que mantinha suas vertentes e devidos públicos bem nichados, e a TribalTech passou a enfrentar o intenso desafio de fazer o público compreender que este não era apenas o propósito da marca, mas também uma visão de futuro dos grandes festivais do Brasil. “Depois de termos colocado estilos diferentes na cena eletrônica, era a hora de colocar estilos mais orgânicos, com diversas bandas alternativas. Mais uma vez foi um passo à frente e sofremos muito preconceito por isso, pessoas não entendiam que poderiam ir para um festival e aproveitar e conhecer diversas sonoridades”, conta Jeje.

O desafio se aprofundou ainda mais quando da decisão de transferir as vertentes voltadas ao Trance psicodélico do palco principal para uma pista alternativa totalmente dedicada a essa linha, dando ao Techno, House e suas adjacências o protagonismo musical da TribalTech. Mohamad Hajar Neto, DJ, produtor musical e de eventos, que participou da história do festival através do trabalho realizado na T2, também acompanha e estuda a festa desde 2007 e relata que “foi um momento difícil porque foi alvo de muitas críticas, principalmente pelos seguidores mais antigos da marca, que se sentiram diminuídos, digamos”.

Mas 2012 chegou e com ele o evento que acredita-se ter cristalizado a concretização dessa transformação. Com a ideia de que seria a última edição da TribalTech, a entrega foi absolutamente impressionante. Cinco palcos, cada um com uma proposta diferenciada, oportunidades para novos talentos, destaque para uma pista apenas com artistas regionais, um palco alternativo de Psy Trance produzido com muito carinho, House muito bem recebido através de nomes como a banda Crazy P, Wildcats, NTFO e a pista Black Tarj sendo protagonista com nomes como Dubfire, Dave Clarke e Magda, para muitos, a melhor apresentação de toda a festa. A TribalTech The End acabou por ser apenas o começo de uma nova fase, mas ainda é, por uma boa turma, a edição mais elogiada de sua história. Eu assino embaixo. 

Um ano de descanso e a TT volta com a trilogia Reborn, Evolution e Escape e mais uma série de comportamentos inovadores em termos de produção e curadoria. Reborn trouxe um festival gigantesco com 14 pistas de dança do Hip Hop ao Trance que abraçou desde núcleos regionais e nacionais até palcos com lendas absurdas da música eletrônica como Kevin Saunderson, Anthony Rother, Radio Slave e Nastia. Destaque para a pista de Trance VuuV, que contou com um sistema de som 3D, com subgraves posicionados em uma torre circular no meio da pista, enquanto médios e agudos ficavam acoplados à estrutura da tenda, nas extremidades da pista. Uma experiência sonora impressionante.

A edição de Evolution tinha como objetivo crescer ainda mais e então a TribalTech se dividiu em dois dias, com menos pistas, mas outro line-up carregado em conceito. Carl Craig, Mathew Jonson, DOP, Roman Flügel, Rødhad, ANNA e Ellen Allien foram apenas alguns dos nomes que passaram por lá. A edição ficou marcada por uma forte e quase ininterrupta chuva por muitos dias que dificultou não apenas a produção, mas também o andamento do evento naquele final de semana, inibindo o público do comparecimento, mas também mostrando que tem muita gente que não tá nem aí pra água e lama e fez questão de fazer muito barulho em todas as pistas. 

Escape veio com uma das propostas mais corajosas da história da TribalTech, a transferência do evento do campo para a cidade, da tradicional Fazenda Heimari para o novo e desconstruído complexo Usina 5, que abrigava diversos galpões e espaços que foram tomados por sete palcos e intervenções artísticas. O palco de bandas Organic Beat volta a integrar a festa com atrações como Criolo, Bixiga 70 e Pedra Branca e a novidade fica por conta dos palcos TimeTech, que abordou linhas mais minimalistas e o SuperCool, pista dedicada aos sons mais brasileiros e muita House Music.

A edição Enlighten, em 2018, também apresentou sete palcos, uma atenção mais carinhosa ao palco de Trance e destaque para artistas como Vera, Ben Klock, Fred P, Planet Hemp, Mano Brown entre outros. A fórmula trazida em 2017 foi seguida pelos organizadores, ainda que muitos não tivessem aprovado a mudança de local. Aliás, se tem algo que podemos enaltecer a TribalTech é a coragem de arriscar por um ideal que demorou para ser compreendido pelo público e, honestamente, até hoje sofre críticas. “Foi uma longa e dura caminhada até a grande massa entender o que queríamos. Todos eram muito focados em um só estilo, por isso foi difícil introduzir o que queríamos, mas aos poucos as pessoas foram entendendo e principalmente atualizando-se nos estilos musicais”, diz Jeje.

“Acredito que todo processo de inovação é recebido com certo ceticismo, em qualquer área. Com o festival não foi diferente. Quando a pista principal deixou de ser dedicada ao Psytrance, por exemplo, houve muitas críticas. E mesmo a Organic Beat – cujo line-up sempre foi de altíssima qualidade – não foi instantaneamente abraçada pelo público padrão daquelas bandas e artistas. É difícil trabalhar contra a segmentação, pois você realmente depende da disponibilidade do público para a experimentação. Eu acredito que o timing da Tribaltech foi essencial nessa construção, pois atualmente – com muitas opções de festivais de marcas internacionais disponíveis em nosso calendário – eu sinto que o público poderia ter optado por se manter em seu nicho de preferência”, complementa Priscila Prestes.

Foto por Gustavo Remor

Mohamad acredita que ao longo dessa história de transição “o maior desafio foi comunicar tudo isso, fazer as pessoas entenderem qual era o objetivo, mas também montar uma curadoria que fosse condizente com a cabeça da época. Era preciso uma transição, não dava para ousar demais, apresentar um nome conceitual e de grande renome na cena europeia, sendo que ainda estavam acontecendo os primeiros passos para a mudança”.

Desaprovação de alguns, mas deleite para muitos outros. Assim como eu, uma gama expressiva do público consumidor de música eletrônica – principalmente do sul do Brasil – foi, a cada edição, conhecendo novos artistas, novos estilos, provando outras sonoridades, ambientes e opiniões. Bastava ter a mente aberta para receber o novo e cada TribalTech era uma experiência não só divertida, mas principalmente educativa artisticamente. Foi nela que tive catarses musicais ao som de artistas como Maetrik, Mathew Jonson, Magda, Ellen Allien, Margaret Dygas, Fred P, Roman Flügel e muitos outros, além de me acabar nos shows de Criolo, Bixiga 70 e Planet Hemp, por exemplo.

Foto por Gustavo Remor

Vale destacar aqui que essa miscelânea de estilos eletrônicos em um lugar só, e também a chegada do palco Organic Beat, trouxe a possibilidade de aproximar públicos diferentes da música eletrônica para experimentar novos estilos. Essa ideia de união de tribos sonoras, dentro e fora da música eletrônica, também passou ao longo dos anos a ser abordada por outros eventos de outras regiões, que antes também tinham o Psy Trance como maior protagonista das festas open air. 

Mohamad acredita que “sem dúvidas a TT teve uma importância muito grande nesse movimento que já estava acontecendo no Brasil inteiro. Os principais festivais e raves da época, como XXXperience, Tribe, Kaballah, também já tinham palcos alternativos direcionados a outros estilos que não o Psytrance, mas a TribalTech foi pioneira no movimento de tirar o Trance do palco principal e isso acabou acelerando o processo das outras festas”. “Acredito que iniciamos um movimento onde pessoas entenderam que não só um estilo pode fazer a festa e a variedade é importante. Muita gente fez isso, mas essa era a tendência natural, nós só percebemos antes”, diz Jeje.

O impacto da TribalTech também foi expressivo no mercado eletrônico como um todo. Fez girar uma engrenagem essencial do cenário ao dar espaços importantes aos artistas regionais e brasileiros em todos os eventos, e colocando artistas internacionais no mapa brasileiro pela primeira vez, permitindo mais possibilidades aos profissionais e aos artistas de tocarem em outros lugares, ou até mesmo retornar ao Brasil mais vezes. 

“Nós sempre buscamos apoiar artistas das diferentes cenas locais, e isso foi essencial para que pudéssemos integrar esses públicos, pois esses núcleos também nos retornavam com o seu suporte. Era surpreendente ver como a pista de talentos regionais sempre estava cheia e os dj sets tocados nela continuavam reverberando após os eventos”, comenta Priscila. “O que a TribalTech fez e segue fazendo é observado por todo Brasil, mesmo por pessoas que nunca tiveram a oportunidade de ir na festa, pois apenas por acompanhar as divulgações, feedbacks e vídeos, elas acabam por serem influenciadas”, complementa Mohamad.

Foto por Gui Urban

Acima de tudo, a TribalTech é um dos maiores pilares do cenário eletrônico do Sul do país, que não apenas educa e impacta a evolução musical do público que a acompanha, mas também faz crescer e tornar possível o sonho de muita gente de trabalhar com música eletrônica e viver dela. Para Prestes, “a Tribaltech foi uma grande escola, onde eu conquistei muitas ferramentas que são essenciais nas ações que executo atualmente. Se não tivesse aprendido como produzir um evento, talvez não tivesse arriscado a criar a Discoteca Odara, por exemplo. Tampouco teria a segurança e know how para cuidar das turnês internacionais em minha própria agência. Por isso tudo, serei eternamente grata. Longa vida à Tribaltech!”.

O ano agora é 2021 e essa que vos escreve tentou uma carreira tradicional que pais cautelosos desejam, mas felizmente eu sou uma das pessoas que tirou de muitas experiências vividas em tantas edições da TribalTech o empurrão necessário para se arriscar no cenário da música eletrônica e hoje tem o prazer de trabalhar dentro dele. Que a sede pela inovação e a ousadia nunca se acabe aos que também têm paixão pela música, pelos encontros e pela maravilha que é a diversidade. Obrigada TribalTech, espero me encontrar com você em breve.

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