Há muito mais música no mundo do que as pistas puderam dar conta até 2020.
Todo DJ, ao executar uma faixa, deixa outras 5, 10, 20 de fora em um set. E quando ele toca de novo, não necessariamente executará aquelas que deixou de fora na ocasião anterior – porque neste meio tempo já surgiram outras 50 que ele também gostaria de tocar. De modo que todo DJ vai deixando um lastro de tracks não executadas em seu case, anos e anos a fio. Em 25 anos de música eletrônica, possivelmente há tracks que nunca foram executadas publicamente por ninguém. Podem ser muito boas, podem ser ruins – é difícil saber. Mas o que é interessante pensar é que, para além da dimensão mais reconhecida ou compartilhada da música produzida nas últimas duas décadas, há outras tantas quanto possíveis aguardando serem exploradas.
Este texto abre uma colaboração mensal minha aqui no Alataj em que me dedico a sets comentados, feitos exclusivamente com material de um único artista por vez, buscando explorar meandros da sua produção que talvez não tenhamos prestado muita atenção. Será uma escolha particular e arbitrária entre favoritos e os próximos meses dirão o que vem por aí.
Para começar a jornada, escolhi um artista a que me dedico faz bastante tempo, e que, arrisco dizer, fez mudar meu repertório e meu modo de tocar.
A discografia
Acompanho a produção de Fred P desde 2014, pouco antes de ele vir ao Brasil, em 2015. Se você se dedica a analisar os releases do Fred no Discogs, verá uma lista ampla de títulos que se distribuem entre LPs, EPs, coletâneas, CDs, bem como pseudônimos mais ou menos conhecidos, como Black Jazz Consortium, Anomaly, FP197, FP-Oner e DJ P.Funk (que acabei de descobrir neste exato momento, quando revisitava os dados para este texto). Este, aliás, é um movimento bem normal quando você começa a estudar a produção desse DJ que cresceu no Brooklyn, hoje migrado para Berlim: os títulos proliferam como por partenogênese, sempre tem mais – e ainda sequer falamos dos releases apenas em versão digital, que nos últimos meses ocuparam principalmente a sua página no Bandcamp, quando Fred passou a soltar uma parte de sua produção inédita, como a série Endless Network, em dois volumes, com tracks produzidas em aeroportos e quartos de hotel ao redor do globo.

A discografia de Fred P inclui 11 LPs (alguns duplos, outros triplos), 38 EPs, 18 coletâneas, mais de 60 remixes em labels diversos e naqueles sob a sua gerência: o extinto Soul People Music e o atual Perpetual Sound, além dos muitos sets e podcasts que compõem sua timeline do Soundcloud. Estou fazendo questão de detalhar porque, se você fizer as contas, por alto, verá que nos últimos 13 anos Fred P publicou ao menos um release por mês, seja de que natureza for. É muita coisa – e isso significa um espaço amplo de pesquisa e descoberta, porque o que se tem aí é um mapa da música eletrônica produzida na última década.
Reshape Project
Durante muito tempo achei as tracks do Fred difíceis de tocar, de encaixar nos sets. Por diversos motivos: muitas vezes a percussão quebrada, a arquitetura de compassos diferentes, a tonalidade, a ambiência – acho que esse era o fator principal, uma sonoridade deep muito particular que sempre surgia para além daquilo que eu estava tocando.
Por outro lado, ao mesmo tempo em que sua produção tem uma consistência singular em um panorama amplo (House, Deep e Techno), seus sets, para quem já teve chance ver e ouvir, são plurais, polissônicos. Como ninguém, Fred P mistura gêneros de um modo que você considera o resultado algo completamente natural. Essa pluralidade ficou ainda mais evidente após suas experiências aqui no Brasil, a ponto de o álbum Evolution of Light, de dezembro de 2019, trazer diversas tracks produzidas com músicos brasileiros, sob um prisma exótico das melodias que brotam daqui.
Mas voltando: como eu achava as tracks do Fred difíceis de tocar nos meus sets – e mesmo assim tocando várias, sempre –, passei a fazer sessões, em casa, tocando apenas os seus discos, submergindo nesse universo distinto. E de repente tudo fazia muito sentido, tudo se encaixava, progressões, regressões, assonâncias e dissonâncias de uma arquitetura sonora muito consistente.
Mas e daí, no caso desta coluna, o que separar do Fred P? O que separar dessa lista enorme de títulos, o que faria sentido mostrar neste novo espaço?
Poderia ser um set com as minhas favoritas, mas sinceramente não sei quais são. Poderia ser um set especialmente dedicado aos releases do Black Jazz Consortium ou do Anomaly. Poderia ser um set apenas considerando as coletâneas, apenas os vinis ou apenas versões digitais, talvez apenas selos A ou B ou ainda apenas os anos X ou Y. Sem hesitar muito, decidi separar os remixes de Fred para outros artistas, que ele intitula como FRED P RESHAPE (ou Fred P Reshape Project, como ele chama no EP Please Me, de dezembro de 2017, assinado por Cassy & Demuir). É longa a lista de produtores a que Fred se dedicou desde 2007.
Mas por que reshape e não simplesmente remix?

Porque reshape é um conceito que implica, literalmente, remodelação. No mix que segue, baseado em reshapes entregues por Fred a mais de 50 produtores, é possível ver como alguém imprime sua própria linguagem sobre o trabalho de outra pessoa. Mesmo separadas por ciclos ou circuitos distintos da música eletrônica dos últimos 15 anos, estas tracks mostram uma mesma identidade, um mesmo prisma por trás, em frente ou junto a elas, e mostram também como um procedimento de criação, adaptação e remodelagem foi amadurecendo ao longo do tempo.
O set
Minha pesquisa nesse território foi ganhando corpo principalmente nos últimos quatro meses. Um pouco à toa, lancei um desafio gratuito a mim mesmo: tocaria todos os reshapes de Fred P juntos – apenas para “ver” e ouvir como ficava. Meu receio era de que isso pudesse se tornar um set de 10 horas… mas que acabou ficando em cinco horas e meia [risos]. Quanto à ordem das tracks, deixei o acaso e minha sensação de harmonia fazerem o seu trabalho.

Com muito prazer, o resultado está aí, minha homenagem ou tributo a este artista que admiro há mais de cinco anos. Segue tracklist detalhada para quem quiser explorar mais este ou aquele release. É importante dizer que além de reshapes e remixes, incluí o que Fred P chama unreleased em seu Bandcamp e também algumas tracks produzidas sob o pseudônimo FP197, cujas potências me chamam especialmente a atenção. A introdução do mix é o primeiro registro que se tem do Fred em vinil, assinado Fred Peterkin, intitulado Mis Information: Organized Contradictions, que inclui 72 monólogos de diversos artistas e desconhecidos. O final é também um monólogo do disco Electric Blues, de 2011: “In the darkness, man, you can’t see nothing…”
Boa audição e até o próximo.
Tracklist
00. Fred Peterkin – A34 War (Mis Information: Organized Contradictions) [Slow To Speak, 2008]
01. Prof. Delacroix – A2 Build Her (Fred P Reshape) [Deepblak, 2011]
02. Kosme – B1 Main Landing (Fred P Reshape) [Cosmid AD, 2014]
03. Dance Spirit – Insight (Fred P Reshape) [Supernature, 2014]
04. Fred P – B2 In Between Gates (Fred P Reshape) [Soul People Music, 2011]
05. Wareika – B2 All Little Things (Fred P Reshape Spirit Dub) [Visionquest, 2013]
06. Naoki Shinohara – B2 Dimension (Fred P Reshape) [Soul People Music, 2014]
07. Art Department feat. Seth Troxler – B1 Cruel Intentions (Fred P Reshape) [No.19 Music, 2014]
08. Art Department feat. Seth Troxler – B1 Cruel Intentions (Fred P Beats Edit) [No.19 Music, 2014]
09. Basic Soul Unit – B1 Night Heat (Fred P Reshape) [Mule Electronic, 2010]
10. Voiron – B1 Radome (Fred P Reshape) [Concrete Music, 2014]
11. Pol_On – Open Your Arms (Fred P Reshape) [Freerange Records , 2012]
12. Efdemin – B1 Nightrain (Fred P Reshape) [Dial, 2011]
13. French Fries – A1 Change The Past (Fred P Reshape) [ClekClekBoom Recordings, 2014]
14. Pascal Viscardi – B1 Wise Man’s Decision (Fred P Reshape) [Traxx Underground, 2015]
15. Blackhall And Bookless – B2 Morgans Freeman (Fred P Reshape) [Jaunt, 214]
16. Daso – B1 Why Try (Fred P. Reshape) [Nsyde, 2010]
17. Dadame – B2 Piano 99 (Fred P Reshape) [The Monkey Bar Records, 2013]
18. Bartellow – B2 Raw Material (Fred P Reshape) [City Fly Records, 2014]
19. Brooks Mosher – A2 Get Ready (Fred P Reshape) [Release Sustain, 2013]
20. Fred P – Strangers [XLR8Rplus, 2018]
21. Isaac Basker – A2 Resilience Sans Relapse (Fred P Reshape) [Play It Say What Records, 2013]
22. Dj Qu – A1 Party People Clap (Anthony Parasole & Fred P Remix] [Desconstruct Music, 2009]
23. Sascha Dive – B2 The Get Out Of The Ghetto Blues (Fred P Remix) [Deep Vibes Records, 2012]
24. Cassy & Demuir – B1 Please (Fixation Mix Fred P Reshape Project) [Kwench Records, 2017]
25. Ed Davenport – A2 New Yorkshire (Fred P Reshape) [NRK Sound Division, 2011]
26. Fred P – A1 Come This Far (Fred P Reshape) [Soul People Music, 2011]
27. Reagenz feat. Fred P- A1 Keep Building [Workshop, 2009]
28. Truss – B1 Redbrook (Fred P Reshape) [Prime Numbers, 2013]
29. Kate Simko – B1 Polyrhythmic Theme (Fred P Reshape) [Last Night On Earth, 2015]
30. Satoshi Tomiie – B1 Landscapes (Fred P Reshape) [Abstract Architecture, 2015]
31. Yogg – B2 Know To Be (Fred P Remix) [Parallax, 2014]
32. Niro – A2 Agachoo (Fred P Reshape) [Unclear, 2012]
33. Jenifa Mayanja – B1 Time Waits For No-One (Black Jazz Consortium Refab Mix) [Underground Quality, 2015]
34. Deetron feat. George Maple – B1 Rescue (Fred P Reshape Dub) [Music Man Records, 2014]
35. Fur – Cocoon (Fred P Reshape) [UNO, 2012]
36. Ryo Murakami – B2 In Chain (Fred P Reshape) [Curle Recordings, 2011]
37. Julie Marghilano – B2 Cosmic Karma (Fred P Reshape) [Sol Asylum, 2016]
38. JC Laurent – A2 From Nice To Berlin (Fred P Rmx) [Hidden Recordings, 2013]
39. Michael Gracioppo – B1 My So-Called Friends (Fred P Reshape) [MCDE, 2013]
40. FP197 – Grease (Unreleased) [2017]
41. Fred P Reshape – A1 All The People [Studio R°, 2014]
42. Johannes Albert – A1 People Say (Fred P Reshape) [Frank Music, 2013]
43. Lapien – B2 Anvers (Fred P Reshape) [Bliq, 2012]
44. Ceri – A2 Life Holstee (Fred P Reshape) [Find Your Own, 2017]
45. Donato Dozzy – B1 Cassandra Fred P Remix [Claque Musique, 2016]
46. Lady Blacktronika – A2 Lil Re Re (Fred P Reshape) [Sound Black Recordings, 2012]
47. Cem Orlow feat. Annabella Wagner – A2 Momentum Island (Fred P Reshape) [Soul People Music, 2015]
48. Seuil – B1 MPC Two (Fred P Reshape) [Eklo, 2012]
49. Kasper – B1 Jaia (Fred P Reshape) [Bass Culture Records, 2013]
50. Alex Danilov – B2 Unknown Numbers (Fred P Reshape) [Arma, 2016]
51. Cassy & Demuir – A1 Please Journey Mix (Fred P Reshape) [Kwench Records, 2017]
52. FP197 – Star Walker (Unreleased) [2017]
53. Dana Ruh – A2 Mawan (Fred P Reshape) [Brouqade Records, 2013]
54. FP197 – Comes With Fries [Finale Sessions, 2012]
55. Dance Spirit – Insight (Fred P Reshape Dub) [Supernature, 2014]
56. Marc Miroir feat. Elif Biçer – A1 Let Me Go (Fred P Reshape) [Paso Music, 2015]
57. Bravik – B2 130314 (Fred P Reshape) [Dept., 2015]
58. Black Jazz Consortium – A1 Essential Paradise feat. Slikk Tim (Fred P Reshape) [Perpetual Sound, 2018]
59. FP197 – Early Light (Unreleased) [2017]
60. Jon McMillion – B1 Don’t It Make You (Fred P Reshape Dope Version) [Nuearth Kitchen, 2015]
61. Joy Wellboy – The Magic (Fred P Remix) [BPitch Control, 2015]
62. Cem Orlow – B1 Lightfield (Fred P Reshape) [Soundscapes Records, 2015]
63. Nina Kraviz – D1 Voices Fred P Remix [Underground Quality, 2009]
64. Fred P. – In The Dark [Deepblak, 2010]
65. Black Jazz Consortium – Message [Deep Explorer, 2011]
A música conecta.
