Em meio à uma grande coleção de discos e uma pesquisa profunda, que abrange desde pérolas perdidas nas raízes dos beats eletrônicos até as novidades da cultura underground orgânica e eletrônica, Priscilla Cavalcante é uma daquelas artistas que chamamos de Real Digger.
Brasileira cearense e radicada em Miami, além de exímia colecionadora e vendedora de discos caros, Priscilla também resgata gêneros esquecidos pela contemporaneidade através de seu projeto House of Pris, conectando a verdadeira natureza do Brazilian Bass, com vertentes do Flash Rap, Funk Melody e Freestyle e uma gama de matizes que tornam sua assinatura um tesouro que merece ser explorado.
Ainda, a artista também é uma das peças-chave por trás da multiplataforma Concreta Sala, um HUB que promove pontes criativas entre diversos artistas ao redor do mundo, além de se estabelecer como loja de discos e mais recentemente, como a mais nova gravadora para se ficar de olho em 2021. Pela Concreta Sala, Priscilla apresenta também sua compilação Proibidœ, que estará no ar em breve.
Após apresentar um set avassalador em uma das nossas edições do Vitrola, Laura Marcon bateu um papo super interessante com Priscilla acerca de sua vasta pesquisa musical, Funk Carioca, seu mindset como DJ, e novidades em torno da Concreta Sala. Acompanhe.
Alataj: Oi Priscilla, tudo bem? Muito obrigada por conversar com a gente! A pesquisa é o cerne do trabalho que você desenvolve há muitos anos e, mesmo vivendo na Europa e agora Estados Unidos, a música brasileira sempre te acompanha. Como você continua essa conexão e garimpo das nossas sonoridades à distância?
House of Pris: Sim, a pesquisa é de fato um grande pilar na minha relação com a música. Manter a conexão, mesmo que distante, é natural, por ter sido exposta a ritmos brasileiros desde muito cedo. Sobre o garimpo, a forma de pesquisa hoje pode ser feita online e offline. É possível adquirir muita informação através da internet, grupos dedicados, séries de mixtapes, etc, de forma contínua e gratuita. Fora da rede, meu garimpo é feito em lojas de discos, em viagens, no rolê com amigos de longa data, em conversas com demais pesquisadores e clientes, e livros.
Ser uma real digger é uma arte e exige um ouvido fresco, aguçado, além de uma noção histórica de gêneros, entre outras qualidades. Você tem alguma rotina ou processo que segue para realizar esse trabalho ou é algo que acontece constantemente e naturalmente?
Acredito que cada pesquisador musical tenha sua própria rotina, hábitos e motivações. Eu sou bastante intensa, respiro e vivo música vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, posso passar meses buscando fragmentos inexplorados e obscuros, de forma obsessiva.
O mercado de vinis tem crescido novamente com força em todo o mundo e as opções de garimpo e compra vão muito além de plataformas digitais. Alguma em especial que você acha interessante e com bons achados?
Concreta Sala [risos].
Concreta Sala é seu espaço físico em Miami e é um HUB que busca conectar pesquisadores e as mais diversas gerações da música. Como surgiu a ideia desse projeto?
A Concreta Sala é uma loja de discos, editora musical, selo, laboratório criativo, e tudo isso junto forma um HUB. O espaço físico em Miami surgiu à convite da fundação cultural americana Mana Contemporary, como parte de um projeto de ocupação do antigo shopping mall (777 Mall), no centro da cidade. A Sala é um lugar de convívio, onde a conexão acontece através da troca de olhares sobre a música, isso gera intimidade sonora, essa é a mágica. A incubação desse sonho começou em 2002 com o lançamento em vinil do EP Drop Your Guns do El Presidente Hi-Fi através do meu primeiro selo, The 89.
Infelizmente o universo da música eletrônica ainda é majoritariamente masculino e isso também se reflete no trabalho que você desenvolve. Em algum momento a questão de gênero impactou sua trajetória? Além de você, quais outras mulheres diggers realizam um trabalho legal?
Sim, estamos em 2021 e infelizmente a indústria da música ainda é majoritariamente masculina. A questão da desigualdade de gêneros sempre impactou a minha vida, os exemplos vão desde desrespeito profissional, onde proprietários de casas noturnas mudam frequências de equipamentos, ao “exotismo” de ser a única mãe “deejay e vendedora de discos” da classe do meus filhos. Ou ainda pior, ser convidada com a finalidade de preenchimento de cotas. Entretanto, já existe uma conscientização sobre a existência da estrutura patriarcal no universo artístico – uma pequena conquista adquirida através dos movimentos feministas. O bonde da igualdade de gêneros tem uma grande jornada pela frente, mas acredito que já arrancou.
O Funk Carioca Raiz e o Brazilian Bass são estilos que te acompanham desde o início da sua carreira e são diferentes do som que escutamos hoje que leva esses nomes. Conta pra gente um pouco da tua relação com esses gêneros e essa transformação sonora para o que é difundido hoje.
Brazilian Bass é como o Funk Carioca de Raiz é conhecido fora do Brasil. A minha relação amorosa com o “Bass” começou em 1993, em uma festa de bairro onde eu ouvi pela primeira vez um beat eletrônico através da faixa It ’s Automatic, dos americanos Freestyle. Trocando em miúdos, o que diferencia o Funk Carioca de Raiz – que abrange Funk Melody (Freestyle), Rasteiros e Montagens – e o Funk Carioca atual é a musicalidade, os recursos usados na produção que diferenciam os timbres, e a predominância de MCs nas composições.
Além da pesquisa, você também é DJ. Como funciona a sua seleção e ideia de construção na hora de colocar a música para a pista com tamanho background sonoro que você carrega?
Se for um set que envolve conexão real com o público, existe uma espécie de possessão, eu abro os canais emocionais e conecto. Quando se trata de um set virtual, uma mixtape, sem interação direta com o público, me delicio com a pesquisa e uso os canais mentais para canalizar e desenvolver. Todo set leva um pedacinho de mim.
Proibidoe é a gravadora que está próxima do seu primeiro release oficial, com lançamento em vinil. Como surgiu essa ideia? Qual é a intenção sonora por trás desse projeto?
PROIBIDŒ é a uma série de compilações lançadas através da editora e gravadora Concreta Sala.
Sabemos que existem artistas pelo mundo que são conhecidos da música eletrônica, mas afiados no garimpo de raridades escondidas. Poderia nos indicar alguns que vale a pena acompanhar?
Essa semana tocaram no meu rádio Bárbara Boeing (Brasil), Ney Faustini (Brasil), aires/D (Brasil), Frinda di Lanco (Alemanha), Ari Harari (Argentina) e DJ Ray (Miami).
A pandemia afetou todo o mercado da música e de diferentes formas. Como foi o impacto dentro dos diversos projetos que você atua?
Transformei o veneno em medicina, trabalhei mais que nunca, me reinventei, aprendi (e continuo aprendendo) o valor da vida.
Para finalizar, uma pergunta tradicional do Alataj: o que a música representa em sua vida?
Tentar explicar o que a música representa na minha vida é como “pedir ao peixe para explicar o oceano onde vive” [Risos]. Vai muito além da minha compreensão.
A música conecta.