Através de um resgate minucioso e preciso de uma das pérolas da música popular brasileira, renasce, como uma fênix, o trabalho de Maria Rita Stumpf. A artista gaúcha possui uma força musical que atravessa os limites do tempo, uma sensibilidade criativa que conecta histórias e culturas e composições que nos trazem esperanças de um futuro diferente. E certamente foram essas as características que despertaram os olhares de Millos Kaiser e Augusto Olivani, para o resgate de Maria Rita Stumpf após mais de duas décadas de hiato. O sucesso de Cântico Brasileiro nº 3 (Kamaiurá), já disse tudo. Maria Rita Stumpf está de volta, agora no lugar e no momento certo.
E agora, após a remasterização do clássico álbum Brasileira e Inkiri Om (2020), a artista emplaca mais um full-lenght de tirar o fôlego. Ver Tente apresenta dez faixas, entre regravações de suas peças originais e um grande clássico da MPB, tudo isso com a participação de uma constelação de instrumentistas. Danilo Caymmi, Farlley Derze, Danilo Andrade, Marcos Suzano, Lui Coimbra, são alguns dos ilustres artistas que integram a reverência do novo disco. “O nome do álbum, veio de última hora, inspirado no nome da música que compus nos anos 80, sei que antes de 84, mas não tenho certeza de quando exatamente. No dia em que gravei a versão de 2022 de Vertente, no estúdio de Kassin Kamal, no Rio de Janeiro, me veio o nome do álbum. Um convite e um desafio a abrir bem os olhos e ver. Tudo o que temos para ver em diferentes âmbitos nossos, no espírito, na mente, no meio ambiente que habitamos.” explica Maria Rita.
A seguir, confira os detalhes minuciosos de cada faixa do álbum, comentados pela própria artista:
Vertente | A versão de 2022 gravada com Danilo Andrade, músico com quem tenho uma conexão fina e profunda, Kassin Kamal iluminando os graves e Orlando Costa, personagem doce e por demais criativo nas percussões, indicado pelos dois anteriores para esta versão, traz na sua primeira frase a essência de todo o álbum. Calar o som que não verte luz é a frase, que depois de 40 anos faz sentido na terra das fake news e outras bobagens. Quando comecei a compor pensei que esta primeira frase quase me obrigava a dar a composição terminada por ali mesmo. Encontramos no arranjo conduzido por Danilo e finalizado em estúdio uma atmosfera hipnótica que encheu de cores a melodia original. É um loop que tem por base uma milonga.
Mata Virgem | A canção de Raul Seixas em parceria com Tânia Menna Barreto é a única que cantei até agora deste mestre da criação brasileira. Exala pureza, frescor e natureza. O arranjo surgiu a dois, numa parceria iluminada com Lui Coimbra, que toca violão, charango e cello, criando um som que se derrama e se espalha nos nossos sentidos. Como comer uma manga proibida, como abrir-se para a grandeza do amor e do afeto.
Troca de Dono | Outra composição que tem alguns bons anos mas não sei quando nasceu. A letra trata dos desmandos que nos levam ao que chegamos, como um sonho ruim. Optamos por instrumentação eletrônica e orgânica na mesma medida, assim como ritmos que podem ser chamados de telúricos, como a quase milonga que se ensaia, se transforma e acaba em um quase rock eletrônico. Voz usada como instrumento e criadora de sons que se justapõem para criar um clima de sonolência, quase impotência, sem restos de esperança, no final depois da anunciada dor que provoca a troca de dono. Jonas Bustince, Chico Maffei e João Gosto ou Jhonny Boaventura até que ele troque de nome de novo, os três de Caxias do Sul, onde gravamos esta música, se juntaram a Matheus Câmara, nosso Entropia Entalpia, que desenhou a sonoridade final com guitarras, sintetizadores e diferentes efeitos.
O Vento | De Dorival Caymmi e Eugene Raskin, composta em 1959, teve a luxuosa presença de Danilo Caymmi cantando comigo e tocando flauta, sobre o colchão harmônico criado por Marcos Suzano com diferentes instrumentos de percussão. Foi gravada em 1993 e remasterizada para integrar o álbum Ver Tente. É um chamado ao vento, ao mar, aos pescadores, universo de Caymmi em todas as suas cores, sonoridades e belezas.
Melodia de Veludo | Canção que compus sobre um único acorde nas cordas do violão tocadas para diante e para trás, nunca se repetindo. Feita para o pai de meu filho Mateus, aqui ganhou um arranjo de extrema delicadeza, criada pelo meu mais antigo parceiro musical, Ricardo Bordini, o padrinho do Mateus. Cristina Braga derrama seu imenso talento na harpa criando a base para José Batista Júnior desfilar os sons da clarineta que sola lindamente e para que Gretel Paganini traga o som arredondado e tranquilizador do violoncelo. Eu acho de uma lindeza sem fim este arranjo. O amigo, arranjador e maestro Gil Jardim mixou a gravação em todos os seus mínimos detalhes e esteve presente na colocação da voz, dando o suporte que só a amizade e o afeto podem dar.
Pavão Mysteriozo | Essa música lenda de Ednardo foi gravada em duas etapas. Os dois primeiros minutos em 1993, com Farlley Derze que toca tudo menos a melodia da música. O Hino da Bandeira, a Nona de Beethoven e alguns sons mais são a base para a voz cantar esta parte. Em 2022, Danilo Andrade parte da nota mais aguda deixada por Farlley e vai descendo até chegar ao tom em que digo “me poupa do vexame de morrer tão moço “… Parece que Ednardo adivinhava no final dos anos 70, plena ditadura as mortes precoces injustificadas de tantos jovens … Gravamos juntos, cada um em uma sala, um vidro no meio para isolar o piano da voz, mas que não impediu a total sincronia e cumplicidade que completa os dois últimos minutos deste Pavão que foi criado em época muito delicada que agora parece vilmente tentar se repetir. Baseado num cordel, o pavão é a arma secreta que o herói encomenda para livrar a donzela presa no castelo, na verdade, nossa democracia à época. Era preciso muito talento para driblar os censores do regime. Gravei e lancei para espantar o fantasma que tenta se instalar outra vez, de uma vez por todas.
Açaí | De Djavan, aqui encontra-se uma interpretação que conta mais que canta. Sons eletrônicos de Farlley Derze vão pintando a paisagem desta manhã de solidão e certo susto. O baixo acústico de André Santos borda o que o eletrônico não tem para oferecer de veludo, para compor a cena que Djavan criou. O silêncio torna-se instrumento e o besouro vem nas asas do violino de André. Mais do que uma canção torna-se uma pintura no espaço.
San Vicente | Esta canção de Milton Nascimento é um hino à nossa às vezes negada latinidade. Então, nesta gravação de 1993 exacerbamos tudo o que de latino temos, com o bombo legüero tocado por Otavio Garcia e charango tocado por Lui Coimbra. Farlley Derze desfila um teclado meio órgão, que cria a atmosfera inicial numa igrejinha de interior, vai crescendo com a voz e tomando volume e forma para apresentar o coro de uma catedral.Uma homenagem aos 80 anos do Bituca.
Vertente 1993 | Afora em uma gravação ao vivo em um festival no interior do Rio Grande do Sul este é o primeiro registro de Vertente, onde ela surge sobre o caos urbano entrelaçado com gritarias de alegre criançada. É um arranjo incidental que mistura gritos, buzinas, sons de tráfego engarrafado com o flautim de Eduardo Neves associado ao violino de André Santos para trazer alguma poesia entrelaçada ao som de água corrente. Arranjo orientado por Farlley Derze e criado coletivamente com as crianças no estúdio.
Cantico Brasileiro No. 3 (Musicanto 1984 Live) | música que foi criada em 1978 quando acontecia um conflito grave na terra dos Kaingang, rodou o mundo na versão do lendário grupo Uaktí, gravada em 1988 e que abria o lado A do meu primeiro LP, o Brasileira. Descoberta por DJs, foi regravada em 2017 em São Paulo por mim e Paulo Santos, fundador do Uaktí, que toca comigo desde sempre e com participação dos DJs da Selvagem e Carrot Green. Esta versão presente no álbum Ver Tente foi gravada ao vivo no palco do festival Musicanto, um dos mais importantes do Rio Grande do Sul, em 1984, na segunda edição. Participaram desta versão Zé Caradípia, compositor gaúcho, autor de Asa Morena e muitas outras, que faz as vozes selvagens e toca vagem, Mauro Podolak tocando tumbadora, e os irmãos Dmitri e Negendre Arbo, tocando flautas, garrafas e atabaque. A música saiu em um LP do Festival lançado pela Som Livre e somente agora chega ao ambiente digital. Aqui todos os instrumentos são naturais.
A música conecta.