Dos bailinhos da Zona Sul aos embalos refrescantes da discothéque brasileira, do Rock nacional ao sucesso da cultura eletrônica underground. A cidade maravilhosa, sempre cheia de suas belezas naturais, com seu clima tropical e liberdade de corpo, mente e comportamento, abria as portas para o clima noturno algumas décadas antes de se tornar uma das cidades referências para a música eletrônica nacional. Repleta de talentos, e da magia cultural que unia música, liberdade, moda e arte, o Rio de Janeiro foi a porta de entrada para a House Music em território nacional, razão talvez que muito se deva ao clima de encontro entre o mar e a natureza propício para o casamento de uma sonoridade leve e carregada de energia, além da alma despojada e good vibes do velho e bom carioca.
Hoje, porém, não só de House vive o Rio de Janeiro. A diversificação e o fortalecimento da cultura clubber na capital carioca transformou o Rio em um dos principais centros de referência do movimento em nível nacional e internacional. Claro que levando em conta suas particularidades, suas raízes, sua identidade, que diferenciam seu cenário e sua história das culturas eletrônicas de outras tantas capitais do Brasil.
Para refrescar a memória de muitos que já estão nesta caminhada desde os primórdios, e ilustrar um pouco das histórias e experiências para quem chegou a pouco tempo neste mundo tão rico e recheado de cultura musical, comportamental e artística, convidamos Maurício Lopes, David Tabalipa, Gustavo Tatá e Roberto Pedroza para contar um pouco de suas lembranças, recordações e insights sobre o começo da cultura eletrônica no Rio de Janeiro. Nossa edição do Memórias faz uma viagem ao túnel do tempo, passando pelos saudosos flashes da Crepúsculo Cubatão, Dr. Smith, Val-Demente e demais pistas gloriosas que marcaram a história da cidade nas décadas de 80 e 90.
Da Discothèque ao Crepúsculo
Vamos voltar um pouco, alguns anos antes do conceito de música eletrônica vir a se popularizar no Brasil. Lá trás, ainda na década de 70, o Rio já tinha sua vida noturna muito bem desenhada, com uma juventude adepta ao que se conhecia como Discoteca. Era o boom da Disco Music, e sobretudo no Brasil o estilo chegava ainda acompanhado de uma mistura com o Funk, Soul e Black Music.
Sempre é bom relembrar e contextualizar que o Rio de Janeiro sempre foi marcado como uma das cidades mais culturais e musicais do Brasil, desde lá no começo do século XX com as rodas de Samba, posteriormente com a Bossa Nova, e demais correntes musicais genuinamente nacionais. Então, não era surpresa que a onda Disco se instalasse na cidade maravilhosa, ganhando força e misturando raízes e qualidades tropicais, popularizando o movimento da discothèque brasileira. Clubes como Hippopotamus e Sotão, já contavam com o protagonismo da figura do disc – jóquei, frente às pistas embaladas pela Disco Fever de DJ Amandio e Ricardo Lamounier – um dos primeiros DJs brasileiros reconhecidos internacionalmente.
Toda a atmosfera sob o globo espelhado, chão de luzes, brilho e meias coloridas, e um misto entre Embalos do Sábado à Noite e Dancing Days, criaram o terreno perfeito para a construção oitentista de uma nova era da cultura underground. O frenesi da Disco Music gradativamente cedia lugar a novos movimentos, ligeiramente mais sombrios, sofisticados e vanguardistas, do Pós Punk e New Wave, que adentravam pelos cantos da Zona Sul. Junto ao Rock Nacional, as pistas eram invadidas por uma sonoridade mais sintética e reverberante que tomava conta de lugares como o famigerado Crepúsculo de Cubatão, num subsolo de Copacabana.
Sob um clima meio gótico, um grupo de jovens que dançava virados para a parede e algumas performances nada convencionais que reuniam um grupo alternativo, diverso e libertário, o Crepúsculo de Cubatão deu a largada para o comportamento underground no Rio de Janeiro. Por lá passaram nomes como o de José Roberto Mahr, um dos grandes responsáveis por importar sonoridades que ninguém conhecia até então, transformando os decks em verdadeiros laboratórios musicais, sendo hoje considerado o artista que carrega a grande memória das noites cariocas.
Dr. Smith e a Jovem Guarda Underground
O prenúncio da cultura eletrônica carioca começava ali, em meio ao turbilhão alternativo e ao mesmo tempo sofisticado, misturando o público LGBTQI+, amantes de Pós Punk e EBM, e demais figuras da cultura noturna carioca. Na exata transição da década de 80 para 90, o subsolo dark do Crepúsculo de Cubatão dava lugar ao colorido futurista do Kitschnet. No mesmo lugar, porém já incorporando o comportamento diferenciado da cultura clubber, o Kitschnet se transformava no novo reduto underground, recebendo o pioneirismo da música eletrônica da época.
Lá em pleno Kitschnet, em 1992, estreava Maurício Lopes, hoje um dos maiores ídolos da música eletrônica carioca e nacional, dono de uma assinatura vanguardista com personalidade sem igual, e viajante experiente dos caminhos do Techno e do House. “Eu considero que a minha carreira começou na primeira vez em que eu toquei pra uma pista “de verdade”, como DJ, com nome no flyer, e tudo mais. Foi em janeiro de 92, no Kitschnet, que abriu no mesmo subsolo/garagem de um prédio em Copacabana onde antes era o Crepúsculo de Cubatão, um clube ícone da cena underground do Rio. Essa virada do Cubatão pro Kitschnet foi bem simbólica e tanto na programação musical quanto na decoração marcou bastante essa passagem dos 80 (cinza/gótico) pros 90 (cores/futurismo). Foi por aí que ‘boate’ virou ‘clube’ [risos], que a cultura clubber começou a se estabelecer e definir um lifestyle”, relembra Lopes.
Porém, o subsolo quente e fervilhante do Kitschnet não duraria para sempre. Ao fim de suas atividades, a juventude órfã logo se acolhia em um novo e promissor reduto no Botafogo: Dr. Smith, a herdeira do saudoso Crepúsculo de Cubatão. Lá começava de fato a música eletrônica como predominante das pistas, com idealização e gestão de Roberto Pedroza, e grandes festas sob curadoria de Felipe Venâncio.
Roberto Pedroza voltava de uma viagem para Los Angeles, e sob influência das noites norte-americanas, dava start ao projeto que marcaria os primeiros passos da cultura eletrônica do Rio. “Comecei produzindo pequenas festas, e depois de passar uma temporada em LA – onde a cena estava fervendo -, voltei para o RJ em 90, e com um grupo de amigos abrimos o Dr. Smith. O Rio na época estava carente já que o Crepúsculo de Cubatão, único lugar alternativo com bons DJs, já havia fechado”, explica.
Dentro da Dr. Smith havia um único andar com duas pistas, uma na sala de estar voltada para House e vertentes correspondentes comandadas por Felipe Venâncio e DJ Edinho, e outra em pleno banheiro misto do local, onde já se experimentava o Techno através de festas embaladas por Maurício Lopes.
“Um dos méritos do Smith foi ter colocado o Rio em contato com DJs internacionais de extrema importância, como Little Louie Vega, Armand Van Helden, Tony Humphries, Josh Wink, Laurent Garnier, entre outros. Além disso, o espaço ofereceu aos Djs locais uma plataforma para mostrar o seu trabalho”, comenta Pedroza.
Dr. Smith foi também berço de muitos artistas e talentos que davam ali seus primeiros passos. David Tabalipa é um deles, com sua pluralidade e diversidade de bagagem musical e cultural, seu nome de destacou além das fronteiras do House e Techno que predominavam nas pistas. Tabalipa transmitia para os diversos cantos da cidade as atmosferas do Soul, Acid Jazz e Black Music, culminando em sua contribuição para o grande boom do Drum N Bass e Big Beat carioca.
Entre flashes e memórias da década de ouro Tabalipa relembra: “Comecei a tocar na capital em 95, e minhas gigs mais marcantes no Rio foram na Dr. Smith, quando abri a noite para o DJ Ricardinho NS (…) Naquela época o público também estava em busca de novas experiências na noite, além dos clubs. Começaram então a surgir festas em galpões e lugares mais inusitados e a música eletrônica em ascensão no Rio foi o que favoreceu o começo da cena. E foi nessa época que o Mercado Mundo Mix começou a acontecer no Rio. Sem dúvida ele foi importante para a cena em relação à moda e comportamento. Em meados dos anos 90, começava também a segmentação das pistas do Rio. Além das festas de House e Techno, surgia também as primeiras festas de Drum and Bass: a Febre e a Broken Beats (minha festa junto com o DJ Mario Bros)”.
Tanto Demente quanto Extravagante
Já corria o meio da década de 90. O House Music se consolidava com força no Rio de Janeiro, enquanto que em São Paulo o Techno dominava. Foi quando que, em 94, iniciava-se um forte movimento de festas que cruzavam as fronteiras fixadas em clubs das noites cariocas. Neste contexto, a Val-Demente fez história, com lúxuria, extravagância e pluralidade artística nas icônicas dependências da Fundição Progresso na Lapa.
Fundada por Valéria Braga (Val) e Fábio Monteiro (mente por trás da grife Demente Criatura), a Val-Demente se iniciava como uma despretensiosa festa de aniversário sob a trilha sonora de Felipe Venâncio, e seguiu-se pelos intensos três anos que a tornaram uma das principais festas dos primórdios da música eletrônica carioca.
Além de Felipe Venâncio, Mau Lopes também dominava as cabines da Val-Demente e recorda que “definitivamente era a festa mais importante pra consolidação da cena clubber carioca. A primeira edição, ainda meio despretensiosa, foi em um sobrado antigo em Botafogo e, mais uma vez, bombou tanto que precisaram procurar outro endereço. A mudança foi pra Fundição Progresso (uma antiga fábrica revitalizada, no centro) e com esse upgrade na locação, com soundsystem mais potente, cenografia, laser, etc, a festa ganhou a cara de ‘Warehouse Party’, o que a fez famosa. A Val-Demente reuniu na Fundição um público que a cena do Rio nunca tinha visto, tanto em quantidade como na mistura do povo: apesar de ser basicamente uma ‘festa gay’ – a grande maioria na pista -, reunia os ‘simpatizantes’ curiosos, os clubbers, DJs de outros circuitos, alguns globais/famosos, etc. A música, é claro, foi outro enorme diferencial da Val-demente: foi a primeira grande festa carioca focada na House Music, que tirou o House do gueto/clubinho, digamos assim. O Felipe tocava a noite toda (era o normal) e os sets dele ali realmente fizeram escola: lançava tudo que saía de mais legal, do NY Garage mais classudo, muitos vocais e divas, tribal e a quebradeira acid de Chicago. Com a entrada forte do ecstasy nessa época, a festa foi um verdadeiro marco na cena, um clássico, divisor de águas”.
E é claro que, assim como Dr. Smith, a Val-Demente foi palco de exímios talentos a partir de suas festas. Gustavo Tatá era um deles. Apesar de já estar envolvido desde 89, em sua pré-adolescência, dando seus primeiros passos como DJ junto com aos primórdios do movimento clubber, Tata veio a se consolidar como profissional das noites alguns anos depois se tornando um dos residentes da X-Demente, festa da Val-Demente.
Tatá acompanhou as grandes mudanças e principais transformações do cenário carioca, das festas da Fundição Progresso aos festivais da Skol Beats, estando até hoje na ativa em cabines de diversas festas pelo Brasil. Para ele, o grande ponto para a consolidação do cenário da música eletrônica carioca foi o investimento e o romantismo dos apaixonados pela cultura, além da grande influência da configuração da noite paulistana para a difusão do Techno em solo carioca: “Embora o mercado aqui no Rio esteja mais profissional e difundido, nunca houve uma consolidação no mesmo nível de SP. A falta de apoio público e privado para a produção mais elaborada de festas é um grande empecilho. O que existe aqui, e sempre foi assim, é uma galera bastante romântica e apaixonada pela música, que faz a cena acontecer. (…) A cena paulistana era mais Techno e o Hell’s Club mudou a vida e a percepção das pessoas em relação à música. Dali saíram todos os núcleos que ficaram famosos no Brasil. No Rio também se escutava Techno de qualidade, claro, só ver a importância do Maurício Lopes na história e no mercado ainda hoje. Mas havia uma atmosfera House, gay, desnuda, as barbies musculosas, o calor. Tudo colaborava para você ser bem gay e ferver muito numa almôndega cheia de caras gostosos”.
Bunker do novo milênio
Entre o fim da década de 90 e a virada do milênio, novos outros espaços marcariam uma seguinte e importante etapa para o cenário da música eletrônica underground carioca. Nesse contexto, a Bunker 94 ficava em Copacabana, com idealização de um grupo de investidores italianos e comandada pela mente engenhosa de Cabbet Araújo – que em 2004 daria start à icônica Fosfobox, que até os dias de hoje faz fervilhar a noite eletrônica carioca.
Na Bunker o Techno já ganhava força pelos cantos da Zona Sul, bem como convergia num público mais consolidado e consciente da sonoridade. Mau Lopes também estava lá, com seu punhado de fãs fidelizados esperando o set começar: “Fui residente, com outros DJs, nas noites de sábado (Cubik – House/Techno). O Bunker foi também um marco na cena carioca, numa época em que o Techno estourou e atingiu um público bem maior do que já tinha”.
Junto com Mau, David Tabalipa também compunha a residência das festas da Bunker que transmitia a atmosfera de sua sonoridade plural e diversificada entre as festas de House e DnB do local, ao lado de outras grandes celebridades do eletrônico carioca: “os momentos memoráveis da minha carreira foram vários, mas a época da Bunker 94 em Ipanema foi a fase mais intensa e memorável. Lá pude dividir as pistas com muito DJs tops além de muitos que surgiram na mesma época que eu, como Asian Dub Foundation, Les Rythmes Digitales, Nepal, Maurício Lopes, Ricardinho NS, Markinhos Meskita, Renato Baractho… Uma noite memorável foi a que eu abri pro Patife. Foi a primeira apresentação dele no Rio, para lançar o Sounds of Drum and Bass, pela Trama”, relembra Tabalipa.
Com o espaço que proporcionava a agitação em duas pistas diferentes – além do lounge – o Bunker 94 finalizou a década de 90 com chave de ouro, fortalecendo o cenário underground carioca e abrindo um importante espaço para tudo que viria depois, incluindo as grandes Fosfobox e Dama de Ferro.
Sem dúvidas poderíamos ficar mais algumas horas – e muitas páginas além -, para retratar a complexidade e importância do cenário carioca, para o fortalecimento da cena nacional como um todo. Porém, através do legado que permanece vivo, podemos compreender cada transformação e significância de sua nobreza, que hoje desfruta de tantos nomes de destaque em nível mundial, e permanece como palco de diversos movimentos que colocam a cultura eletrônica como um ato de resistência artística e social.
A música conecta.