É raro encontrar pessoas que não gostem de música alguma por aí. Claro, para toda regra há exceção e isso também se aplica à música. Mas a maioria, ao contrário, não só gosta como tem diversas delas classificadas como suas músicas preferidas. Ficou fácil hoje, basta colocar uma estrela, fazer uma playlist. São aquelas músicas que marcaram um momento especial, um acontecimento, pessoas, viagens, festas ou simplesmente porque são um deleite aos ouvidos. Agora, imagine ter a sua música. Não a que você produz, mas uma feita para representar a trilha sonora da sua vida, que condense preferências sobre você e crie algo novo, único e inimaginável. Pois é, parece estranho, mas é só a tecnologia agindo outra vez, através da Inteligência Artificial. Aquele termo que parecia algo distante e com pinta de filme de ficção científica, já faz parte da nossa realidade.
Essa não é a tecnologia da forma como a conhecemos no dia a dia, mas uma programação de máquinas e softwares que interagem para que elas aprendam, percebam coisas, conectem conhecimentos e cheguem a conclusões. Com base nisso, um robô ou computador pode ser capaz de realizar operações mais complexas, como planejar, calcular riscos e inclusive, tomar algumas decisões sem precisar do nosso comando. Tudo bem quadrado, frio e calculista, mas capaz de transformar criatividade em algoritmo e criar a partir daí. E isso nem mesmo é novidade. Em 2017 foi apresentada ao mundo a música Hello Shadow, produzida pelo grupo formado pelo francês Benoit Carré, vocais da cantora Kiesza e um programa de inteligência artificial desenvolvido pela Sony, o Flow-Machine. As letras e os vocais são feitos por humanos, mas o arranjo foi feito pela máquina, veja só que colab inusitada:
O avanço dessa história culmina com um fato recente. AIVA foi criada, através da inspiração que seu criador, Pierre Barreau, teve no filme Her, onde a IA Samantha cria músicas para captar momentos, como fotografias. Essa mais recente criação é capaz de criar milhares de trilhas sonoras através de uma combinação algorítmica que faz a leitura de mais de 30 mil partituras. E aí que a mágica acontece: através de redes neurais profundas, ela procura padrões nas partituras através de compassos e passa a tentar deduzir quais serão as próximas notas.
No momento que suas previsões, em uma estratégia de tentativa e erro – bem humana só que não -, passam a ser boas, ela gera um conjunto de regras matemáticas para determinado estilo de música e voilà: cria suas próprias composições. Combinações que para nós levariam décadas, para ela levam somente algumas horas. E para chegar no blend ideal para determinada pessoa, ela absorve o algoritmo de mais de 30 categorias diferentes para cada partitura em seu banco de dados. Essas categorias trazem estados de espírito, como alegria ou tristeza, e também a intensidade da nota ou estilo do compositor ou a época em que foi escrita, tudo para chegar em uma música única, particular. Neste vídeo é possível entender mais profundamente a explicação de Pierre e ouvir as músicas que AIVA compôs.
Outro ponto interessante e um pouco creepy é a possibilidade de criar músicas que supostamente seriam feitas por artistas que já se foram. Algo que rolou há alguns meses atrás quando uma IA criou músicas inéditas do Nirvana, Amy Winehouse, The Doors e Jimi Hendrix para uma campanha de conscientização sobre a importância do apoio à saúde mental. As faixas surgiram de uma análise de até 30 músicas de cada artista e gravadas por cantores famosos por seus covers.
Para Drew Silverstein, CEO e co-fundador da Amper Music, startup que atende empresas ao redor do globo criando músicas únicas e customizadas, a IA não vai substituir os seres humanos porque temos dois tipos de música: a artística e a funcional. A música artística é insubstituível e humana. Ela é valorizada pela colaboração e pela criatividade envolvida em sua criação. Já a música funcional tem seu valor pela sua aplicabilidade e amplitude – que é o caso de AIVA.
Nela, a ideia é personalizar a música de tal forma que todos indivíduos no mundo possam ter acesso à uma trilha sonora personalizada, baseada em sua história e personalidade. Além disso, tem também a possibilidade de criar trilhas infinitas adequadas para situações que demandam esse tipo de atividade, como nos games. O uso dessa tecnologia avançada no processo de criação musical gera uma série de possibilidades e ao mesmo tempo questionamentos sobre a forma de produzir música e o papel do artista nesse processo. Porque para poder criar, no mínimo, a máquina precisa ser “alimentada” de referências para fazer as combinações.
O que pensar? Vivemos em mundo tecnológico cada vez mais frio e acelerado, algo que parece imparável e que ainda não sabemos no que irá resultar. Pensando em música, é natural que haja certa resistência, já que quase todos nós temos uma tendência ao saudosismo daquilo que representa “começos”. Na música eletrônica e sua massiva quantidade de lançamentos, talvez a IA seja dispensável por agora. Humanos já dão conta do recado e isso poderia alimentar ainda mais essa quase-obsessão por demandas da indústria, que tudo precisa se mover muito rápido, o que gera um tempo de vida muito curto para as músicas. Ainda que a música seja muitíssimo boa, seu efeito não é mais o mesmo, do que rolava há 10, 20 anos. Será que no futuro distante poderemos ter máquinas criando sets harmoniosos e milimetricamente mixados que superem a nossa capacidade? Black Mirror, é você?
A música conecta.