Muito antes do funk se consolidar como símbolo pop e exportação cultural, o gênero enfrentava – e ainda enfrenta – barreiras profundas ligadas à estrutura social do Brasil. Estigmatizado por sua origem periférica e criminalizado por anos, o funk carioca sempre foi, ao mesmo tempo, trilha sonora e ferramenta de resistência.
Em novembro de 2011, no contexto das primeiras Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e das tensões crescentes entre cultura de favela e políticas de controle urbano, uma ação coletiva rompeu o silêncio simbólico do centro do Rio: a realização do primeiro Rio Parada Funk. O evento teve forte atmosfera de intervenção política, sonora e espacial, uma resposta direta à exclusão histórica do gênero dos espaços formais da cidade.
Idealizado por produtores, DJs e MCs em parceria com a Secretaria de Cultura do Estado, o Rio Parada Funk reuniu dez equipes de som, dezenas de artistas e milhares de pessoas numa maratona sonora de oito horas, realizada inicialmente como ato de ocupação da Avenida Rio Branco. A seguir, resgatamos o belíssimo relato da pesquisadora Alexandra Lippman (publicado originalmente no blog Pirate Anthropologies em 2011) que esteve presente no evento e registrou com sensibilidade os sons, tensões e potências que atravessaram aquele dia.
Após as cervejas do fim do expediente na sexta-feira, o Centro do Rio de Janeiro esvazia. A região mais movimentada da cidade, repleta de técnicos, secretárias, zeladores, políticos, camelôs e turistas, se transforma em uma zona temporariamente abandonada. Algumas pessoas dormem sobre pedaços de papelão nas calçadas de pedras portuguesas em frente a edifícios históricos monumentais do Brasil. Anos atrás, mudanças na percepção sobre o centro urbano — visto como perigoso e sujo — levaram muitos moradores a buscar condomínios fechados e bairros afastados como Barra da Tijuca e Recreio. Guias turísticos até hoje recomendam evitar o Centro nos finais de semana.
No entanto, naquele domingo, uma batida grave e abafada ecoava por quarteirões. Cheguei ao primeiro Rio Parada Funk pouco depois do meio-dia. Havia 50 DJs, 40 MCs, dez equipes de som e vários dançarinos programados para se apresentar entre o meio-dia e 20h. Oficinas e palestras haviam ocorrido das 10h ao meio-dia. Um MC que eu conhecia chegou de moto com a esposa na mesma hora que eu. Trocamos dois beijinhos e ele me indicou a entrada de acesso dos “de dentro”. Recebi uma pulseira branca de “produtora” e entrei. Jovens ainda empilhavam caixas de som — segundo me disseram, muitos não dormiam desde a desmontagem dos bailes de sábado.

Dez equipes de som, com paredes entre quarenta e cem caixas empilhadas — uma delas formada por sistemas de som automotivos — conduziram uma jornada pela história do funk por mais de oito horas. A tarde começou com freestyle, electro e Miami Bass, evoluiu para as montagens que misturavam as raízes norte-americanas do funk com rimas brasileiras, ritmos do candomblé e frases de filmes de bangue-bangue nacionais. Terminou com o funk mais cru e beatboxado da geração PC, DJs que produzem com FL Studio, Sound Forge e Acid, trocando loops piratas via MSN.
Por volta das 14h, me afastei dos amigos para caminhar e gravar o evento. Comecei pela Soul Grand Prix, equipe mais antiga, na esquina da Rua Carioca com a Avenida República do Paraguai, e segui em direção à Avenida Rio Branco. Cruzei a multidão dançando e passei por oito das dez equipes de som, cujos palcos improvisados se posicionavam entre as muralhas de caixas. Big Mix e Furacão 2000, potências do funk carioca, estavam afastadas das demais, com palcos maiores instalados na praça, próximos ao palco principal que receberia as atrações principais no fim da tarde. No Cash Box e no próprio Big Mix — cada um com cerca de cem caixas — era impossível ficar próxima dos DJs. Estou acostumada ao grave que vibra na pele, no peito, nas costelas. Mas a qualidade das caixas trazia uma gama sonora muito mais ampla. Os agudos quase faziam meus ouvidos sangrar.
Uma semana antes do evento, o IPHAN anunciou que vetaria sua realização na região histórica do Centro. Alegava que os graves poderiam danificar janelas de prédios como o Theatro Municipal e a Biblioteca Nacional. Os organizadores haviam aceitado os limites de volume impostos, mas o IPHAN manteve sua decisão, obrigando a mudança para uma rua menos prestigiada e mais popular, ainda no Centro. Curiosamente, o bloco de carnaval Cordão da Bola Preta — que atrai milhões de foliões — passa pelo mesmo percurso sem restrições sonoras há anos.
A proposta da Parada era transformar o centro histórico em uma celebração de dez equipes de som, afirmando o lugar do funk na vida urbana. Com os bailes das favelas sendo encerrados pelas chamadas ações de “pacificação”, tomar a Avenida Rio Branco — antiga passarela do samba — teria um significado claro: projetar o funk na mesma jornada simbólica que um dia levou o samba de expressão marginalizada a ritmo nacional. Dias antes do evento, a prefeitura novamente alterou a localização, deslocando-o para uma grande praça mais próxima da Rio Branco.
Nas reuniões que antecederam o evento, organizadores como Mateus, do Eu Amo Baile Funk, orientaram DJs e MCs a não falar com a imprensa sobre preconceito contra o gênero, e sim enfatizar o caráter celebrativo da Parada. Um MC respondeu: “Funk é igual ao samba. Estamos aqui pra mostrar que funk é cultura”. O evento, que contou com apoio da Secretaria de Cultura, teria sido impensável alguns anos antes.
A Parada também marcou o fim do meu trabalho de campo. Reuniu em um só lugar vários amigos, MCs, DJs e donos de equipes de som que conheci ao longo da pesquisa. Durante o ano, muitos me receberam em seus estúdios, casas e festas, concederam entrevistas e compartilharam refeições, cervejas e Red Bulls. A Parada reuniu todos esses afetos e memórias no mesmo espaço.
Com o passar das horas, a multidão cresceu — jornais estimaram entre 14 mil e 100 mil pessoas — preenchendo a praça e as ruas ao redor. Em dança, escuta e memória, os funkeiros celebraram sua história sonora e reafirmaram a força de um gênero que segue em constante transformação e luta por legitimidade no coração da cidade.
